Bárbara Melissa Santana e Luciane de Paula
“O ser humano contemporâneo se sente seguro, com inteira liberdade e conhecedor de si, precisamente lá onde ele, por princípio, não está, isto é, no mundo autônomo de um domínio cultural e da sua lei imanente de criação; mas se sente inseguro, privado de recursos e desanimado quando se trata dele mesmo, quando ele é o centro da origem do ato, na vida real e única. Ou seja, agimos com segurança quando o fazemos não partindo de nós mesmos, mas como alguém possuído da necessidade imanente do sentido deste ou de outro domínio da cultura.” (Para uma filosofia do ato responsável, Bakhtin)
Do início, o ponto de partida da dúvida: quem somos nós? Sujeitos constituintes e constituídos por uma sociedade composta por modelos, padrões e diversas ideologias. Valores incutidos a determinadas formas de pensamento que geram e regeneram pontos de vista de grupos, partes configuradas em um complexo cultural com perspectivas dominantes e cotidianas, bem como por defensores autônomos de “verdades”, muitas vezes, impostas, aceitas e veementemente reproduzidas. Mas, como somos constituintes e constituídos? Por meio de discursos que se concretizam em textos. Enunciados amalgamados em um extrato superior homogêneo determinante, tanto quanto no dia-a-dia, numa perspectiva sócio-individual. O olhar dos sujeitos se constrói sob as sombras de superestruturas sociais em embate constante com a experiência vivida na infraestrutura, em grupos sociais cotidianos. O individual também se compõe de maneira dialética com o social. E os sujeitos assim se constituem em nós. O posicionamento individual é concebido, nessa sociedade e nessa época em que vivemos, mascaradamente, como perspectiva particular, interiormente indivisível. O “Eu” é a base de uma sociedade narcísica, voltada à ilusão de sua unidade, calcada em traumas e neuroses centradas na visão unilateral do “ego sunt”. Entretanto, os estudos do Círculo revelam que não há “eu” sem “outro”, assim como não existe discurso individual que não responda a discursos existentes ou por-vir, uma vez que tanto a constituição dos sujeitos quanto a dos discursos ocorre de maneira indissociável (os sujeitos só existem quando enunciados e os enunciados só existem quando proferidos por sujeitos). Bakhtin e o os demais filósofos do Círculo concebem a constituição dos sujeitos e dos discursos por meio da ligação desmesurável com outros discursos e sujeitos, tanto aqueles já proferidos quanto os ainda não construídos, constituintes de nossa “memória de futuro”. Essa perspectiva salienta o caráter não-individual (no sentido imanente e gramatical do termo) dos enunciados e dos sujeitos. Para os filósofos russos, um é sempre, no mínimo, dois. O “eu” é, ao mesmo tempo, “eu”-“outro”, tanto sujeito quanto enunciado. Desse ponto de vista, o sujeito atua sob e sobre uma gama de fatores ideológicos que delineiam sua “realidade”. Nesse cenário, verificamos o “sentir-se seguro” relatado por Bakhtin em Para uma Filosofia do Ato Responsável. “Ser livre”, mas pensar a partir do pré-concebido ou permitido consensualmente; a expressão da “própria opinião” que reproduz uma perspectiva já digerida; “certezas” que compõem uma comodidade falha e fugidia que garante a reprodução sistêmica. Por isso, Bakhtin “prega” o “não-álibi da existência” como /dever-fazer/ para o despertar da consciência, atado a uma realidade, mediante um discurso de alienação de si, do outro e da relação ente-espécie. A ética responsiva e consciente como possibilidade única de enfrentamento e ruptura com a hegemonia reinante, que adormece os sujeitos e transforma seus atos em ações. O filósofo russo propõe uma inversão enunciativa: tornar-se sujeito como tornar-se autor, dono de seu nariz nessa rede tramada por fios invisíveis que nos faz marionetes em nossas ações. Agir com consciência: atuar. O ato, não como resultado, mas como processo constitutivo responsivo e responsável dos sujeitos é, sem dúvidas, para o Círculo, a expressão sem álibi e de total encargo de nossas tramas sujeito-enunciativas. Afinal, o sujeito não é apenas um. Sua unidade é divisível. Melhor, multiplicável, como declamou Pessoa em uma de suas pessoas (Álvaro de Campos): “Multipliquei-me para me sentir / Para me sentir, precisei sentir tudo / Transbordei, não fiz senão extravasar-me”. O sujeito (“eu”) é uma infinidade de “outros” que emanam de seu “eu” e de demais direções, um complexo de aspectos provenientes de “outros”. Esses “outros” que constituem o “eu” são discursos e estes, encadeamentos de inúmeras opiniões divergentes que elaboram o mundo. Somos, portanto, fragmentos de totalidades de sujeitos (e) enunciados que constroem o mundo que nos envolve. Somos mosaico formados na relação de diálogo que nos transforma, reforma, dá forma e não nos delineia. De-linear, impor linha, limite e isso, de limites e ponto final, não nos envolve. Acima de tudo por sermos in-acabados. Sem limiar entre “eu” e o “outro”. Sem bordas, sem ser fôrma, em forma-ação, constantemente, em infinita construção. Temos, nesse espaço de “ser” múltiplo, a responsabilidade do que somos ao mesmo tempo em que somos em um espaço que não é completamente nosso. Somos influenciados e construídos nessa arena de discursos que também construímos e influenciamos. Sentimo-nos confortáveis ao agirmos, sentimos confiança em ser sem pensar sobre o sentido de nossa existência, em vir-a-ser sendo, no ato de nossa existência. Muitos acreditam que se é quem se quer ser, livremente. Contudo, como não contestar e questionar nosso aprisionamento à linguagem – essa mesma linguagem que nos faz humanos – que nos reformula por meio dos discursos que também nos constituem, sempre ideológicos, ao determinar tons e sobretons às cores que nos compõem como sujeitos-enunciados que somos? Atuamos pelo que somos ao mesmo tempo em que somos o que fazemos e dizemos. Discursivamente fundidos, de maneira complexa. Pensar fora desse paradoxo seria desconectar-se daquilo que nos torna vivos. A essência do mundo envolve nosso discurso e neles [mundo (e) discurso] vive o homem, constituindo-se como sujeitos. Nesse espaço-tempo é que somos construídos e construímos, de maneira responsável por seus atos, responsivamente. Viver o paradoxo de nossa essência-existência é assumir quem somos, em processo contínuo e descontínuo de construção e desconstrução enunciativa. Antes de tudo, somos vir-a-ser, sempre, seres sígnicos que, para serem-sentidos falam e falham. Afinal, ser humano é isso: falar e falhar em ato, calado, visual e/ou sonoro, mas sempre em atuação sócio-cultural-enunciativa.
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