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- Ocupar ou invadir: relações exotópicas nas manifestações anti-Alckmin no Estado de São Paulo
Marco Antonio Villarta-Neder/ GEDISC-UFLA[1] Foto extraída e recortada de O Estado de S. Paulo. A reorganização das escolas públicas do Estado de São Paulo, feita pelo governador Geraldo Alckmin tem suscitado protestos por parte principalmente dos alunos dessas escolas, com apoio de vários outros segmentos da sociedade. Nesse contexto, quase 200 escolas foram ocupadas por movimentos articulados de alunos de Educação Básica das escolas públicas paulistas. Nas últimas duas semanas houve intensa repressão policial, principalmente nas situações de protestos dos estudantes em vias públicas. A foto acima foi veiculada no dia 04 de dezembro de 2015 e refere-se a uma dessas manifestações. A proposta desta postagem é discutir, sob o ponto de vista do Círculo de Bakhtin, as relações exotópicas no cartaz em destaque na foto acima no enunciado “A gente ocupa / A polícia invade”. No decorrer do século XX, diante dos conflitos em torno da questão da terra, estabeleceu-se uma dicotomia em relação aos termos ocupar e invadir. O termo ocupar é utilizado pelos movimentos que entram à força em um território e o termo invadir é utilizado para designar, do ponto de vista dos proprietários do território, a ação de quem o adentra à força sem deter os direitos jurídicos de posse sobre ele. Para Bakhtin a relação exotópica (ou de distância, na tradução do russo) é a determinação inevitável que o outro na constituição de cada sujeito. Assim: […] não posso agir como se os outros não existissem: saber que o outro pode ver-me determina radicalmente a minha condição. (Bakhtin, 2003, p. 17) O que se pretende discutir nesse post é o jogo de relações exotópicas entre os lugares no mundo ocupados pelos sujeitos enunciadores do enunciado em questão e os sentidos estabelecidos na relação com esses lugares. Em primeiro lugar, vamos nos deter no termo ocupar. Da perspectiva da historicidade dos sentidos, quem ocupa é aquele que não reconhece os direitos do proprietário juridicamente investido na posse do território. Ocorre, neste caso, que os ocupantes estão fora do território, excluídos de sua posse, seu pertencimento ou de sua utilização. No caso dos estudantes de Educação Básica das escolas públicas estaduais paulistas, a palavra ocupar estabelece inicialmente esse sentido. Ao ocuparem as escolas, reafirma-se a percepção de não pertencimento dos estudantes às escolas. No entanto, esses alunos estudam nelas. Passam boa parte das horas de seus dias no interior delas. Nesse caso, podemos ter dois sentidos: em um primeiro caso, teríamos um pertencimento que existia e que foi rompido por uma política de governo que os estudantes consideram que os alijam desse território; um segundo caso seria o de que já não haveria esse pertencimento antes. Vamos à análise do termo invadir. Quando está expresso no enunciado “A polícia invade”, a posição dos estudantes revela que os policiais não detêm os direitos sobre o território e o adentram à força. Há uma hierarquia de sentidos nesse caso. O mais evidente é o relevo ao uso da força pelos policiais. Mas há um outro, que merece atenção. Ao utilizarem o termo invadir para designar a ação policial (e é bom recordar que a polícia representa o Estado, o governo instituído), os estudantes estão se colocando no ponto de vista de quem reafirma sua posse do território invadido. Assim, de pelo termo ocupar os estudantes apontam um não pertencimento ao território das escolas, um estar de fora, pela atribuição do termo invadir às ações do aparato policial, os movimentos dos estudantes colocam-se dentro do território e colocam a polícia (e o Estado, representado por essa polícia) fora. É, portanto, desse diálogo entre o estar fora e o deslocar-se para dentro e enxergar o outro fora do território que constitui os sujeitos-estudantes como sujeitos políticos nesse contexto histórico. É na dinâmica desse diálogo com sua própria exterioridade em relação às escolas públicas que frequentam e da exterioridade do Estado em relação a essas escolas, que se constituem. Finalmente, cabe encerrar com outra reflexão baseada em relações exotópicas. Historicamente vários autores e setores da sociedade tem expressado preocupação com a disjunção entre escola e comunidade e com a situação de os alunos e os segmentos sociais a que pertencem não se sentirem pertencentes ao contexto escolar da escola pública. Um diálogo interessante entre lugares do mundo e sentidos pode ser percebido no momento dessas manifestações. Da alteridade com esse espaço-outro, estranho a seu lugar de constituição de sujeitos, os estudantes moveram-se para um lugar que os coloca no território da escola. E se é possível fazê-lo é porque dialogam com um lugar do Estado fora do território da escola. Nesse tenso diálogo com a exclusão das políticas do Estado, cumpre para eles estarem onde o Estado não está. O sentido-outro, novo, é a percepção de que o lugar dessa ausência (a ser ocupado, portanto) seja exatamente a escola. [1] Doutor em Letras (Unesp-Araraquara). Docente da Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC (Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin) que, desde 2013 tem-se ocupado com análise de semioses não-verbais sob o ponto de vista bakhtiniano. #Educação #exotopia #sujeito
- Ocupar ou invadir: relações exotópicas nas manifestações anti-Alckmin no Estado de São Paulo
Marco Antonio Villarta-Neder/ GEDISC-UFLA[1] Foto extraída e recortada de O Estado de S. Paulo. A reorganização das escolas públicas do Estado de São Paulo, feita pelo governador Geraldo Alckmin tem suscitado protestos por parte principalmente dos alunos dessas escolas, com apoio de vários outros segmentos da sociedade. Nesse contexto, quase 200 escolas foram ocupadas por movimentos articulados de alunos de Educação Básica das escolas públicas paulistas. Nas últimas duas semanas houve intensa repressão policial, principalmente nas situações de protestos dos estudantes em vias públicas. A foto acima foi veiculada no dia 04 de dezembro de 2015 e refere-se a uma dessas manifestações. A proposta desta postagem é discutir, sob o ponto de vista do Círculo de Bakhtin, as relações exotópicas no cartaz em destaque na foto acima no enunciado “A gente ocupa / A polícia invade”. No decorrer do século XX, diante dos conflitos em torno da questão da terra, estabeleceu-se uma dicotomia em relação aos termos ocupar e invadir. O termo ocupar é utilizado pelos movimentos que entram à força em um território e o termo invadir é utilizado para designar, do ponto de vista dos proprietários do território, a ação de quem o adentra à força sem deter os direitos jurídicos de posse sobre ele. Para Bakhtin a relação exotópica (ou de distância, na tradução do russo) é a determinação inevitável que o outro na constituição de cada sujeito. Assim: […] não posso agir como se os outros não existissem: saber que o outro pode ver-me determina radicalmente a minha condição. (Bakhtin, 2003, p. 17) O que se pretende discutir nesse post é o jogo de relações exotópicas entre os lugares no mundo ocupados pelos sujeitos enunciadores do enunciado em questão e os sentidos estabelecidos na relação com esses lugares. Em primeiro lugar, vamos nos deter no termo ocupar. Da perspectiva da historicidade dos sentidos, quem ocupa é aquele que não reconhece os direitos do proprietário juridicamente investido na posse do território. Ocorre, neste caso, que os ocupantes estão fora do território, excluídos de sua posse, seu pertencimento ou de sua utilização. No caso dos estudantes de Educação Básica das escolas públicas estaduais paulistas, a palavra ocupar estabelece inicialmente esse sentido. Ao ocuparem as escolas, reafirma-se a percepção de não pertencimento dos estudantes às escolas. No entanto, esses alunos estudam nelas. Passam boa parte das horas de seus dias no interior delas. Nesse caso, podemos ter dois sentidos: em um primeiro caso, teríamos um pertencimento que existia e que foi rompido por uma política de governo que os estudantes consideram que os alijam desse território; um segundo caso seria o de que já não haveria esse pertencimento antes. Vamos à análise do termo invadir. Quando está expresso no enunciado “A polícia invade”, a posição dos estudantes revela que os policiais não detêm os direitos sobre o território e o adentram à força. Há uma hierarquia de sentidos nesse caso. O mais evidente é o relevo ao uso da força pelos policiais. Mas há um outro, que merece atenção. Ao utilizarem o termo invadir para designar a ação policial (e é bom recordar que a polícia representa o Estado, o governo instituído), os estudantes estão se colocando no ponto de vista de quem reafirma sua posse do território invadido. Assim, de pelo termo ocupar os estudantes apontam um não pertencimento ao território das escolas, um estar de fora, pela atribuição do termo invadir às ações do aparato policial, os movimentos dos estudantes colocam-se dentro do território e colocam a polícia (e o Estado, representado por essa polícia) fora. É, portanto, desse diálogo entre o estar fora e o deslocar-se para dentro e enxergar o outro fora do território que constitui os sujeitos-estudantes como sujeitos políticos nesse contexto histórico. É na dinâmica desse diálogo com sua própria exterioridade em relação às escolas públicas que frequentam e da exterioridade do Estado em relação a essas escolas, que se constituem. Finalmente, cabe encerrar com outra reflexão baseada em relações exotópicas. Historicamente vários autores e setores da sociedade tem expressado preocupação com a disjunção entre escola e comunidade e com a situação de os alunos e os segmentos sociais a que pertencem não se sentirem pertencentes ao contexto escolar da escola pública. Um diálogo interessante entre lugares do mundo e sentidos pode ser percebido no momento dessas manifestações. Da alteridade com esse espaço-outro, estranho a seu lugar de constituição de sujeitos, os estudantes moveram-se para um lugar que os coloca no território da escola. E se é possível fazê-lo é porque dialogam com um lugar do Estado fora do território da escola. Nesse tenso diálogo com a exclusão das políticas do Estado, cumpre para eles estarem onde o Estado não está. O sentido-outro, novo, é a percepção de que o lugar dessa ausência (a ser ocupado, portanto) seja exatamente a escola. [1] Doutor em Letras (Unesp-Araraquara). Docente da Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC (Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin) que, desde 2013 tem-se ocupado com análise de semioses não-verbais sob o ponto de vista bakhtiniano. #Educação #exotopia #sujeito
- O ato de criação estética: os autorretratos de Van Gogh
Marcela Barchi Paglione[1] Tratamos, nesse texto, de um assunto caro aos trabalhos contemporâneos que seguem a perspectiva do Círculo: a pertinência da teoria para tratar de linguagens não-verbais. Apesar de ter se dedicado quase exclusivamente às análises de obras verbais, tais como Dostoievski e Rabelais, seguimos uma perspectiva já anunciada por Haynes (1995) que se utiliza dos pensamentos do Círculo sobre a natureza da linguagem para outras materialidades, principalmente a visual[2]. A partir dessa abordagem, pretendemos discutir sobre a concepção bakhtiniana da figura do autor dada em seu processo dialógico diante da personagem, conforme foi discutido em Estética da criação verbal (2003) a fim de entendermos como esse mesmo processo se dá em uma abordagem da linguagem visual no retrato, a partir da construção de uma imagem de si e do outro em um exercício de posição exotópica. O ato de criação estética Bakhtin (2003) trata da questão da construção da personagem pelo autor na obra estética. Para ele, o autor responde à personagem, dá forma a seu todo. O autor é uma força englobante, arquitetonicamente estável, que dá forma e vida ao elemento criado. É especificamente estética essa resposta ao todo da pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações ético-cognitivas e lhes dá acabamento em um todo concreto-conceitual singular e único e também semântico. Essa resposta total à personagem tem um caráter criador, produtivo e de princípio. (p. 4) O autor responde à personagem e no processo criador a constitui como sujeito. No processo de relação dialógica, o autor, como outro do eu-personagem, tem acesso ao seu todo. Ela está inserida em seu horizonte ideológico e, somente assim, pode receber finalização, acabamento estético pelo autor em um processo não-indiferente. De fora, o autor se aproxima da personagem, tenta colocar-se em seu lugar e lhe confere posições axiológicas, as quais devem organizar-se em um todo signiticativo. Autor e a personagem entram em processo de responsividade reponsável, uma vez que o autor engloba o todo da personagem e deve responder a ela axiologicamente, responsavelmente como um outro sujeito. O autor tem a visão do todo, visão englobante e arquitetonicamente responsável. Ele a cria e, assim, torna-se autor. Somente na relação dialógica e de princípio criativo do ato estético as figuras do autor e da personagem podem se construir. Apesar de tais concepções sobre o ato estético de construção da personagem terem sido propostas para pensar o romance, portanto, a linguagem verbal, também podemos estendê-la, conforme concebe Haynes (1995), para a visual, e até a verbo-voco-visual nas linguagens contemporâneas. Tais reflexões sobre a criação verbal, em realidade, se aplicam a uma reflexão sobre a natureza do ato estético. “He [Bakhtin] was concerned with how humans give form to their experience: how they perceive an object, text, or another person, and how they shape that perception into a synthesized whole, process by which we ‘author’ one another” (p. 4)[3]. Para Bakhtin, um autor é criado no ato estético, no qual ele dá forma à sua experiência, refrata a vida para a obra de arte, porém, tal ato só é possível graças à personagem. Todo ato de criação estética deve levar em conta a consciência ativa presente no texto – concebido aqui em sentido amplo. Esse outro do texto-enunciado, depois de concebido e completado pelo autor, torna-se um sujeito autônomo, com posições avaliativas que não necessariamente são as mesmas do autor. Da mesma forma, o autor-pessoa, após o fim do ato estético, nada sabe sobre o processo criativo do autor-criador, que nasce e morre no processo dialógico ativo com a personagem no interior de uma obra. O autor nasce no ato de criação estética, em diálogo com seus outros, mesmo que seja um autorretrato. Nesse sentido a criação da personagem acarreta responsivamente a criação do autor. De acordo com Haynes, tornar-se autor (to “author” oneself) é criar. O processo de autorização consiste em tornar-se autor no diálogo, pois o ato de criação não é monológico, mas dialógico, de forma que o autor sempre cria para outro e só pode criar ao separar-se do autor pessoa e dialogar em parte com o leitor e em parte com o terceiro, o herói. Um ato estético só pode ser finalizado de fora, a partir de uma posição exotópica do autor em relação à personagem que lhe dá a possibilidade de ver seu todo e lhe dar acabamento, pois eu, do meu local único na existência, não me vejo no horizonte ideológico, logo, não posso me finalizar de dentro. Em decorrência disso, o autorretrato se constitui como um exercício de visão exotópica de si. Nesse processo, o autor deve tornar-se exterior a si mesmo na medida do possível, deve tentar imaginar-se visto pelo outro, com outros olhos, fora de sua imagem de si, de seu espírito (dukh). O autor – seja escritor, pintor, escultor etc. – deve se desvincular de seu eu interno e, portanto, inacabado, para colocar-se em posição exotópica e ver sua imagem de fora. A figura do “eu-para-o-outro”, no entanto, é dada somente pelo outro e nunca será a mesma se vista de fora. É necessário algum novo esforço para me imaginar a mim mesmo nitidamente en face, desligar-me por completo de minha autossensação interior; conseguido isto, somos afetados em nossa imagem externa por algum vazio original, por algo imaginário e um estado de solidão um tanto terrível desta imagem. A que isto se deve? Ao fato de que não temos para ela um enfoque volitivo-emocional à altura, capaz de vivificá-la e incluí-la axiologicamente na unidade exterior do mundo plástico-pictural. (BAKHTIN, 2003, p.28) A dificuldade de um autorretrato – bem como de uma configuração escrita sobre si – se dá na tentativa de auto acabamento. O autor precisa “traduzir-se” da linguagem interna, de seu eu vivenciado de dentro, para a linguagem externa, expressiva, mas para tal, deve ter um ponto forte situado fora de si, para que possa responder-lhe axiologicamente. Sua imagem exterior, no entanto, é a imagem de uma personagem criada aos moldes do autor-criador. Bakhtin, no entanto, assume uma postura suspeita em relação à veridictoriedade dessa imagem, que lhe parece ter um “estado de solidão” ou um “vazio” decorrente da falta de uma posição volitivo-emocional da personagem. A primeira tarefa do artista que trabalha o autorretrato consiste em depurar a expressão do rosto refletido, o que só é possível com o artista ocupando posição firme fora de si mesmo, encontrando um autor investido de autoridade e princípio, um autor-artista como tal, que vence o artista-homem. Aliás, parece que sempre é possível distinguir o autorretrato do retrato a partir de alguma característica um tanto ilusória do rosto, o qual parece não englobar o homem em sua totalidade, até o fim (…). (Idem, p.31). Para Bakhtin (2003), o autorretrato tem em si uma característica ilusória decorrente da tentativa de afastar-se de si e de se autocontemplar. Ainda assim, a tentativa de acabamento de si nunca é a mesma da completude do outro exterior com o qual dialogamos, de forma que sempre haverá diferenças entre o retrato e o autorretrato de um sujeito. Ele comenta sobre o autorretrato de Rembrant ter em sua figura um vazio assustador. Similarmente, veremos agora como se dá essa prática em Van Gogh, autor de diversas pinturas de paisagens, retratos e autorretratos. Van Gogh e a tentativa de visão exotópica de si Van Gogh, célebre pintor holandês do século XIX, é conhecido mundialmente por suas pinturas de paisagens, principalmente The Starry Night (1889) e por seus girassóis. Ele também pintou diversos autorretratos entre os anos de 1886 a 1889 – mais de 30, segundo o site vangoghgallery.com. Tal método, além de ser uma maneira de ganhar dinheiro, também é um exercício de “introspecção”, de olhar para si e ver-se com olhos de outrem e, de acordo com suas próprias palavras, é também uma tentativa de melhorar suas habilidades como pintor. I purposely bought a mirror good enough to enable me to work from my image in default of a model, because if I can manage to paint the colouring of my own head, which is not to be done without some difficulty, I shall likewise be able to paint the heads of other good souls, men and women. (GOGH, V. s/d).[4] Assim, vejamos a seguir alguns de seus autorretratos, agrupados abaixo. Organizamos alguns quadros para representar o compromisso estético de Van Gogh para com a imagem de si. Dentre os selecionados (aleatoriamente), os agrupamos em três grupos de acordo com as cores escolhidas para representar-se, para sua autorização, da mais clara e amarelada, passando por tons azulados e posteriormente mais escuros, com preto e marrom. Figura 1 Figura 2 Figura 3 Percebemos, nos quadros, uma preocupação em retratar-se basicamente em posição frontal, com mudanças horizontalmente, de maneira que vemos sempre com certa frequência ora o lado esquerdo ora o lado direito de seu rosto, o que nos faz pensar que uma faceta de si está em evidência, mas outra está escondida. Seus quadros geralmente apresentam uma textura ao fundo, mais evidentes nos retratos amarelados acima na figura 1 e nos dois azulados claros da figura 2, de forma que sua pincelada carregada de tinta é reforçada. Desejo chamar a atenção aqui para a peculiaridade de cada retrato, únicos como cada enunciação e similares, por retratarem o mesmo sujeito. O mesmo? Vemos nos retratos acima uma junção de novo e velho, a significação e o tema dado no acontecimento, o qual renova o enunciado. Há uma ilusão de que o rosto é sempre o mesmo, que o sujeito é sempre o mesmo, enquanto o que ocorre são reflexos e refrações da vida na arte com uma tentativa de acabamento (estético). Como o sujeito nunca é o mesmo – uma vez que só a morte finaliza a vida – e está em constante fazer-se no mundo ético, também seu acabamento estético é provisório. Assim, retratos e mesmo fotografias, as quais somente aparentam ser mais objetivas – pois também possuem acabamento –, são momentos da vida de um sujeito que materializa. Retratos captam feixes pré-selecionados do sujeito em tela a partir de um projeto de dizer autoral. Cada retrato de Van Gogh capta um feixe de si em uma tentativa de dar-se acabamento, cada um munido de tons emotivo-volitivos do autor registrados textualmente no enunciado a partir de marcas conhecidas como características do pintor. As cores utilizadas são vivas, gritam em tela pela junção lado a lado de matizes escuras e claras, principalmente as opostas azul e amarelo, quentes e frias, mas também preto e marrom, como nos retratos da figura 3. Juntamente com a oposição de cores, o efeito de turvação é proporcionado pelas pinceladas marcadas, pelo excesso de tinta aplicada diretamente do tubo, pelas cores puras sobre tela, justapostas. Ao contrário da limpeza e pureza dos traços realistas e românticos, Van Gogh provoca um efeito de turvação, de confusão dos olhos e da mente, visto que os as linhas se misturam e as cores, embora puras, confundem-se no conjunto. O efeito ocasionado é vermos de longe a ideia do todo, enquanto, de perto, vemos a tormenta. Van Gogh está sempre em conflito consigo mesmo. Sua alma plena de paixões lhe provoca um olhar melancólico sobre si e sobre o mundo, conflito presente em suas cores e pinceladas, no olhar de seu eu representado. Seu estilo, porém, se combina com o estilo de sua época, de uma escola. Assim, vemos o olhar do pintor representado e representante (no caso dos autorretratos), a partir de sua ótica (pós)impressionista, contrária a contornos nítidos e à figuração. Importa-lhes a impressão visual, a nuance, o efeito causado pela fusão de cores e formas. A técnica de pinceladas a partir de cores puras também é herdada deste período: As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário, devem ser puras e dissociadas nos quadros em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se óptica. (MARTINS; IMBROISI, s/d) É a mistura de cores e pinceladas que causa o efeito, a ilusão de conjunto e de figuração nos traços. Mais especificamente, Van Gogh se encontraria entre os pós impressionistas, grupo que em parte recusava a estética impressionista em favor de uma expressividade intelectual e emocional dos efeitos visuais. Impressionism recorded nature in terms of light and color. Post impressionists rejected these limitations and instead sought to be more expressive. They were not concerned with depicting the effects of light and other visual effects like those seen in the impressionism movement, they were less idyllic. They wanted to express their meaning beyond the surface appearance; they painted with emotion, intellect, and the eye. The post-impressionism painters stressed their personal view of the visual world and had a freely expressive use of color and form to describe emotions and movement. (VAN GOGH GALLERY, s/d) [5] Como os enunciados são elos na cadeia discursiva (BAKHTIN, 2003), os autorretratos de Van Gogh se relacionam com outras pinturas suas, bem como com o estilo da época e de outros autores. Tal diálogo constitutivo do autor criador – assim como do sujeito do ser-evento – se manifesta na forma e no conteúdo e ora o aproxima ou afasta da considerada escola pós-impressionista. Nessa configuração, compreendemos a construção dos autorretratos como únicos a partir de um tom emotivo-volitivo do eu se manifesta na profusão de cores e traços tortuosos característicos do estilo de Van Gogh. Os autorretratos são enunciados, o que os torna únicos como o sujeito representado a cada momento do fazer artístico, apesar da aparente repetição do objeto a ser representado, como uma personagem de si. A dificuldade de se dar acabamento, além do local exterior é que a vida não pode ser acabada. A única coisa que delimita e dá acabamento estético ao evento da vida é a morte (HAYNES, 1995). Assim, vemos a dificuldade de dar acabamento a si em um autorretrato, de pôr fim à existência, dá-la um sentido. Não há finalização do sujeito, mas tentativas de acabamento de um eu sempre em construção, no caso por um eu que se coloca fora de si, em uma tentativa de ver-se pelos olhos de outro, diferente em cada ângulo representado, em cada cor proeminente, em cada pincelada do autor-criador. Referências BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. (russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. Gogh, V. Sem título. Disponível em: http://www.vangoghgallery.com/misc/selfportrait.html Acesso em: 21/11/2015. HAYNES, D. Bakhtin and the visual arts. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. MARTINS, Simone R.; IMBROISI, Margaret H. Impressionismo. Disponível em: http://www.historiadaarte.com.br/linha/impressionismo.html Acesso em: 21/11/2015. Post – impressionism. Disponível em: http://www.vangoghgallery.com/influences/post-impressionism.html. Acesso em: 21/11/2015. WERNER, J. Van Gogh. Disponível em: http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/van_gogh.htm#ixzz3rwhG3Rtf Acesso em: 21/11/2015. Imagens disponíveis em: http://www.vangoghgallery.com/. Acesso em: 21/11/2015. [1] Aluna de mestrado do PPGLLP da Unesp, Câmpus de Araraquara. Atualmente desenvolve uma pesquisa em Análise Dialógica do Discurso sobre o gênero seriado e sua recepção social, sob a orientação de Luciane de Paula (PPLLP – Unesp FCLAR e Unesp FCLAS). [2] Atualmente, conforme a pesquisa de Paula (2014), discutimos a questão da materialidade e pertinência teórica bakhtiniana para enunciados verbo-voco-visuais, como é caro ao GED e a pesquisadores do grupo, como as pesquisas de Paglione (2015), Santana (2015) e Novais (2015). [3] “Ele [Bakhtin] estava preocupado em como os homens dão forma a sua experiência: como eles percebem um objeto, um texto ou outro homem, e como eles enformam tal percepção em um todo organizado, processo no qual nos tornamos autor” (Tradução livre). [4] Eu trouxe, com um propósito, um espelho bom o suficiente para me permitir trabalhar com minha imagem, na falta de um modelo, porque se eu consigo chegar a pintar a coloração de minha própria cabeça, o que não será feito sem alguma dificuldade, eu devo conseguir pintar as cabeças de outras almas boas, homens e mulheres. (Tradução livre) [5] O Impressionismo gravava a natureza em termos de luz e cor. O Pós-impressionismo rejeitou essas limitações e, ao contrário, procuraram ser mais expressivos. Eles não estavam preocupados em representar os efeitos da luz e outros efeitos visuais similares aos do movimento impressionista, eles eram menos idílicos. Eles queriam expressar sentidos por trás da superfície aparente; eles pintaram com emoção, com inteligência e com os olhos. Os pintores pós-impressionistas acentuaram sua visão pessoal do mundo e tiveram um uso expressivo das cores e formas para descrever emoções e movimento. (Tradução livre) #Éticaeestética #bakhtin #Estética #autor #exotopia
- O ato de criação estética: os autorretratos de Van Gogh
Marcela Barchi Paglione[1] Tratamos, nesse texto, de um assunto caro aos trabalhos contemporâneos que seguem a perspectiva do Círculo: a pertinência da teoria para tratar de linguagens não-verbais. Apesar de ter se dedicado quase exclusivamente às análises de obras verbais, tais como Dostoievski e Rabelais, seguimos uma perspectiva já anunciada por Haynes (1995) que se utiliza dos pensamentos do Círculo sobre a natureza da linguagem para outras materialidades, principalmente a visual[2]. A partir dessa abordagem, pretendemos discutir sobre a concepção bakhtiniana da figura do autor dada em seu processo dialógico diante da personagem, conforme foi discutido em Estética da criação verbal (2003) a fim de entendermos como esse mesmo processo se dá em uma abordagem da linguagem visual no retrato, a partir da construção de uma imagem de si e do outro em um exercício de posição exotópica. O ato de criação estética Bakhtin (2003) trata da questão da construção da personagem pelo autor na obra estética. Para ele, o autor responde à personagem, dá forma a seu todo. O autor é uma força englobante, arquitetonicamente estável, que dá forma e vida ao elemento criado. É especificamente estética essa resposta ao todo da pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações ético-cognitivas e lhes dá acabamento em um todo concreto-conceitual singular e único e também semântico. Essa resposta total à personagem tem um caráter criador, produtivo e de princípio. (p. 4) O autor responde à personagem e no processo criador a constitui como sujeito. No processo de relação dialógica, o autor, como outro do eu-personagem, tem acesso ao seu todo. Ela está inserida em seu horizonte ideológico e, somente assim, pode receber finalização, acabamento estético pelo autor em um processo não-indiferente. De fora, o autor se aproxima da personagem, tenta colocar-se em seu lugar e lhe confere posições axiológicas, as quais devem organizar-se em um todo signiticativo. Autor e a personagem entram em processo de responsividade reponsável, uma vez que o autor engloba o todo da personagem e deve responder a ela axiologicamente, responsavelmente como um outro sujeito. O autor tem a visão do todo, visão englobante e arquitetonicamente responsável. Ele a cria e, assim, torna-se autor. Somente na relação dialógica e de princípio criativo do ato estético as figuras do autor e da personagem podem se construir. Apesar de tais concepções sobre o ato estético de construção da personagem terem sido propostas para pensar o romance, portanto, a linguagem verbal, também podemos estendê-la, conforme concebe Haynes (1995), para a visual, e até a verbo-voco-visual nas linguagens contemporâneas. Tais reflexões sobre a criação verbal, em realidade, se aplicam a uma reflexão sobre a natureza do ato estético. “He [Bakhtin] was concerned with how humans give form to their experience: how they perceive an object, text, or another person, and how they shape that perception into a synthesized whole, process by which we ‘author’ one another” (p. 4)[3]. Para Bakhtin, um autor é criado no ato estético, no qual ele dá forma à sua experiência, refrata a vida para a obra de arte, porém, tal ato só é possível graças à personagem. Todo ato de criação estética deve levar em conta a consciência ativa presente no texto – concebido aqui em sentido amplo. Esse outro do texto-enunciado, depois de concebido e completado pelo autor, torna-se um sujeito autônomo, com posições avaliativas que não necessariamente são as mesmas do autor. Da mesma forma, o autor-pessoa, após o fim do ato estético, nada sabe sobre o processo criativo do autor-criador, que nasce e morre no processo dialógico ativo com a personagem no interior de uma obra. O autor nasce no ato de criação estética, em diálogo com seus outros, mesmo que seja um autorretrato. Nesse sentido a criação da personagem acarreta responsivamente a criação do autor. De acordo com Haynes, tornar-se autor (to “author” oneself) é criar. O processo de autorização consiste em tornar-se autor no diálogo, pois o ato de criação não é monológico, mas dialógico, de forma que o autor sempre cria para outro e só pode criar ao separar-se do autor pessoa e dialogar em parte com o leitor e em parte com o terceiro, o herói. Um ato estético só pode ser finalizado de fora, a partir de uma posição exotópica do autor em relação à personagem que lhe dá a possibilidade de ver seu todo e lhe dar acabamento, pois eu, do meu local único na existência, não me vejo no horizonte ideológico, logo, não posso me finalizar de dentro. Em decorrência disso, o autorretrato se constitui como um exercício de visão exotópica de si. Nesse processo, o autor deve tornar-se exterior a si mesmo na medida do possível, deve tentar imaginar-se visto pelo outro, com outros olhos, fora de sua imagem de si, de seu espírito (dukh). O autor – seja escritor, pintor, escultor etc. – deve se desvincular de seu eu interno e, portanto, inacabado, para colocar-se em posição exotópica e ver sua imagem de fora. A figura do “eu-para-o-outro”, no entanto, é dada somente pelo outro e nunca será a mesma se vista de fora. É necessário algum novo esforço para me imaginar a mim mesmo nitidamente en face, desligar-me por completo de minha autossensação interior; conseguido isto, somos afetados em nossa imagem externa por algum vazio original, por algo imaginário e um estado de solidão um tanto terrível desta imagem. A que isto se deve? Ao fato de que não temos para ela um enfoque volitivo-emocional à altura, capaz de vivificá-la e incluí-la axiologicamente na unidade exterior do mundo plástico-pictural. (BAKHTIN, 2003, p.28) A dificuldade de um autorretrato – bem como de uma configuração escrita sobre si – se dá na tentativa de auto acabamento. O autor precisa “traduzir-se” da linguagem interna, de seu eu vivenciado de dentro, para a linguagem externa, expressiva, mas para tal, deve ter um ponto forte situado fora de si, para que possa responder-lhe axiologicamente. Sua imagem exterior, no entanto, é a imagem de uma personagem criada aos moldes do autor-criador. Bakhtin, no entanto, assume uma postura suspeita em relação à veridictoriedade dessa imagem, que lhe parece ter um “estado de solidão” ou um “vazio” decorrente da falta de uma posição volitivo-emocional da personagem. A primeira tarefa do artista que trabalha o autorretrato consiste em depurar a expressão do rosto refletido, o que só é possível com o artista ocupando posição firme fora de si mesmo, encontrando um autor investido de autoridade e princípio, um autor-artista como tal, que vence o artista-homem. Aliás, parece que sempre é possível distinguir o autorretrato do retrato a partir de alguma característica um tanto ilusória do rosto, o qual parece não englobar o homem em sua totalidade, até o fim (…). (Idem, p.31). Para Bakhtin (2003), o autorretrato tem em si uma característica ilusória decorrente da tentativa de afastar-se de si e de se autocontemplar. Ainda assim, a tentativa de acabamento de si nunca é a mesma da completude do outro exterior com o qual dialogamos, de forma que sempre haverá diferenças entre o retrato e o autorretrato de um sujeito. Ele comenta sobre o autorretrato de Rembrant ter em sua figura um vazio assustador. Similarmente, veremos agora como se dá essa prática em Van Gogh, autor de diversas pinturas de paisagens, retratos e autorretratos. Van Gogh e a tentativa de visão exotópica de si Van Gogh, célebre pintor holandês do século XIX, é conhecido mundialmente por suas pinturas de paisagens, principalmente The Starry Night (1889) e por seus girassóis. Ele também pintou diversos autorretratos entre os anos de 1886 a 1889 – mais de 30, segundo o site vangoghgallery.com. Tal método, além de ser uma maneira de ganhar dinheiro, também é um exercício de “introspecção”, de olhar para si e ver-se com olhos de outrem e, de acordo com suas próprias palavras, é também uma tentativa de melhorar suas habilidades como pintor. I purposely bought a mirror good enough to enable me to work from my image in default of a model, because if I can manage to paint the colouring of my own head, which is not to be done without some difficulty, I shall likewise be able to paint the heads of other good souls, men and women. (GOGH, V. s/d).[4] Assim, vejamos a seguir alguns de seus autorretratos, agrupados abaixo. Organizamos alguns quadros para representar o compromisso estético de Van Gogh para com a imagem de si. Dentre os selecionados (aleatoriamente), os agrupamos em três grupos de acordo com as cores escolhidas para representar-se, para sua autorização, da mais clara e amarelada, passando por tons azulados e posteriormente mais escuros, com preto e marrom. Figura 1 Figura 2 Figura 3 Percebemos, nos quadros, uma preocupação em retratar-se basicamente em posição frontal, com mudanças horizontalmente, de maneira que vemos sempre com certa frequência ora o lado esquerdo ora o lado direito de seu rosto, o que nos faz pensar que uma faceta de si está em evidência, mas outra está escondida. Seus quadros geralmente apresentam uma textura ao fundo, mais evidentes nos retratos amarelados acima na figura 1 e nos dois azulados claros da figura 2, de forma que sua pincelada carregada de tinta é reforçada. Desejo chamar a atenção aqui para a peculiaridade de cada retrato, únicos como cada enunciação e similares, por retratarem o mesmo sujeito. O mesmo? Vemos nos retratos acima uma junção de novo e velho, a significação e o tema dado no acontecimento, o qual renova o enunciado. Há uma ilusão de que o rosto é sempre o mesmo, que o sujeito é sempre o mesmo, enquanto o que ocorre são reflexos e refrações da vida na arte com uma tentativa de acabamento (estético). Como o sujeito nunca é o mesmo – uma vez que só a morte finaliza a vida – e está em constante fazer-se no mundo ético, também seu acabamento estético é provisório. Assim, retratos e mesmo fotografias, as quais somente aparentam ser mais objetivas – pois também possuem acabamento –, são momentos da vida de um sujeito que materializa. Retratos captam feixes pré-selecionados do sujeito em tela a partir de um projeto de dizer autoral. Cada retrato de Van Gogh capta um feixe de si em uma tentativa de dar-se acabamento, cada um munido de tons emotivo-volitivos do autor registrados textualmente no enunciado a partir de marcas conhecidas como características do pintor. As cores utilizadas são vivas, gritam em tela pela junção lado a lado de matizes escuras e claras, principalmente as opostas azul e amarelo, quentes e frias, mas também preto e marrom, como nos retratos da figura 3. Juntamente com a oposição de cores, o efeito de turvação é proporcionado pelas pinceladas marcadas, pelo excesso de tinta aplicada diretamente do tubo, pelas cores puras sobre tela, justapostas. Ao contrário da limpeza e pureza dos traços realistas e românticos, Van Gogh provoca um efeito de turvação, de confusão dos olhos e da mente, visto que os as linhas se misturam e as cores, embora puras, confundem-se no conjunto. O efeito ocasionado é vermos de longe a ideia do todo, enquanto, de perto, vemos a tormenta. Van Gogh está sempre em conflito consigo mesmo. Sua alma plena de paixões lhe provoca um olhar melancólico sobre si e sobre o mundo, conflito presente em suas cores e pinceladas, no olhar de seu eu representado. Seu estilo, porém, se combina com o estilo de sua época, de uma escola. Assim, vemos o olhar do pintor representado e representante (no caso dos autorretratos), a partir de sua ótica (pós)impressionista, contrária a contornos nítidos e à figuração. Importa-lhes a impressão visual, a nuance, o efeito causado pela fusão de cores e formas. A técnica de pinceladas a partir de cores puras também é herdada deste período: As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário, devem ser puras e dissociadas nos quadros em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se óptica. (MARTINS; IMBROISI, s/d) É a mistura de cores e pinceladas que causa o efeito, a ilusão de conjunto e de figuração nos traços. Mais especificamente, Van Gogh se encontraria entre os pós impressionistas, grupo que em parte recusava a estética impressionista em favor de uma expressividade intelectual e emocional dos efeitos visuais. Impressionism recorded nature in terms of light and color. Post impressionists rejected these limitations and instead sought to be more expressive. They were not concerned with depicting the effects of light and other visual effects like those seen in the impressionism movement, they were less idyllic. They wanted to express their meaning beyond the surface appearance; they painted with emotion, intellect, and the eye. The post-impressionism painters stressed their personal view of the visual world and had a freely expressive use of color and form to describe emotions and movement. (VAN GOGH GALLERY, s/d) [5] Como os enunciados são elos na cadeia discursiva (BAKHTIN, 2003), os autorretratos de Van Gogh se relacionam com outras pinturas suas, bem como com o estilo da época e de outros autores. Tal diálogo constitutivo do autor criador – assim como do sujeito do ser-evento – se manifesta na forma e no conteúdo e ora o aproxima ou afasta da considerada escola pós-impressionista. Nessa configuração, compreendemos a construção dos autorretratos como únicos a partir de um tom emotivo-volitivo do eu se manifesta na profusão de cores e traços tortuosos característicos do estilo de Van Gogh. Os autorretratos são enunciados, o que os torna únicos como o sujeito representado a cada momento do fazer artístico, apesar da aparente repetição do objeto a ser representado, como uma personagem de si. A dificuldade de se dar acabamento, além do local exterior é que a vida não pode ser acabada. A única coisa que delimita e dá acabamento estético ao evento da vida é a morte (HAYNES, 1995). Assim, vemos a dificuldade de dar acabamento a si em um autorretrato, de pôr fim à existência, dá-la um sentido. Não há finalização do sujeito, mas tentativas de acabamento de um eu sempre em construção, no caso por um eu que se coloca fora de si, em uma tentativa de ver-se pelos olhos de outro, diferente em cada ângulo representado, em cada cor proeminente, em cada pincelada do autor-criador. Referências BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. (russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. Gogh, V. Sem título. Disponível em: http://www.vangoghgallery.com/misc/selfportrait.html Acesso em: 21/11/2015. HAYNES, D. Bakhtin and the visual arts. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. MARTINS, Simone R.; IMBROISI, Margaret H. Impressionismo. Disponível em: http://www.historiadaarte.com.br/linha/impressionismo.html Acesso em: 21/11/2015. Post – impressionism. Disponível em: http://www.vangoghgallery.com/influences/post-impressionism.html. Acesso em: 21/11/2015. WERNER, J. Van Gogh. Disponível em: http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/van_gogh.htm#ixzz3rwhG3Rtf Acesso em: 21/11/2015. Imagens disponíveis em: http://www.vangoghgallery.com/. Acesso em: 21/11/2015. [1] Aluna de mestrado do PPGLLP da Unesp, Câmpus de Araraquara. Atualmente desenvolve uma pesquisa em Análise Dialógica do Discurso sobre o gênero seriado e sua recepção social, sob a orientação de Luciane de Paula (PPLLP – Unesp FCLAR e Unesp FCLAS). [2] Atualmente, conforme a pesquisa de Paula (2014), discutimos a questão da materialidade e pertinência teórica bakhtiniana para enunciados verbo-voco-visuais, como é caro ao GED e a pesquisadores do grupo, como as pesquisas de Paglione (2015), Santana (2015) e Novais (2015). [3] “Ele [Bakhtin] estava preocupado em como os homens dão forma a sua experiência: como eles percebem um objeto, um texto ou outro homem, e como eles enformam tal percepção em um todo organizado, processo no qual nos tornamos autor” (Tradução livre). [4] Eu trouxe, com um propósito, um espelho bom o suficiente para me permitir trabalhar com minha imagem, na falta de um modelo, porque se eu consigo chegar a pintar a coloração de minha própria cabeça, o que não será feito sem alguma dificuldade, eu devo conseguir pintar as cabeças de outras almas boas, homens e mulheres. (Tradução livre) [5] O Impressionismo gravava a natureza em termos de luz e cor. O Pós-impressionismo rejeitou essas limitações e, ao contrário, procuraram ser mais expressivos. Eles não estavam preocupados em representar os efeitos da luz e outros efeitos visuais similares aos do movimento impressionista, eles eram menos idílicos. Eles queriam expressar sentidos por trás da superfície aparente; eles pintaram com emoção, com inteligência e com os olhos. Os pintores pós-impressionistas acentuaram sua visão pessoal do mundo e tiveram um uso expressivo das cores e formas para descrever emoções e movimento. (Tradução livre) #Éticaeestética #bakhtin #Estética #autor #exotopia
- Mafalda: sentido, humor e historicidade
Jessica de Castro Gonçalves José Radamés Benevides de Melo Nicole Mioni Serni Nossa proposta é pensar a Mafalda numa perspectiva dialógica, o que envolve, inevitavelmente, sua historicidade e, por conseguinte, suas filiações. Quando Bakhtin estuda o romance, suas reflexões não ficam circunscritas ao âmbito da literatura. Ao estudar o fenômeno da metamorfose no romance de aventuras e de costumes, ele esclarece que “Os motivos de transformação e de identidade do indivíduo comunicam-se a todo o mundo humano, à natureza e às coisas criadas por ele.” (BAKHTIN, 2010, p. 235). Assim, em suas considerações, o fenômeno da metamorfose passou por complexos processos de evolução que envolvem a filosofia, a mitologia, o folclore, a religião e a própria literatura. Esse procedimento analítico de Bakhtin nos inspira a conceber a Mafalda não apenas no âmbito das tirinhas ou das histórias em quadrinho, mas, à Bakhtin, pensá-la na relação com filiações que ultrapassam os limites da tira e do quadrinho. É aqui que vislumbramos relações, pontos de contato, mesmo que distantes, entre a personagem Mafalda e o trapaceiro, o bobo e o bufão como compreendidos por Bakhtin (2010). Abordar a Mafalda na sua historicidade é também pensá-la relacionada ao trapaceiro, ao bufão e ao bobo que, segundo Bakhtin (2010, p. 275), exerceram função importante no desenvolvimento do romance europeu; o que, em alguma medida, é refletir a Mafalda numa tradição de personagens que remonta ao Asno de ouro, de Apuleio, classificado por Bakhtin (2010, p. 234) como romance de aventuras e de costumes (o segundo tipo de romance antigo). Mesmo constando da literatura em épocas distintas e distantes entre si, essas figuras (Lúcio-asno, trapaceiro, bobo e bufão), como já assinalado, foram produtivas no desenvolvimento do romance europeu. Como a literatura brasileira inscreve-se nas tradições européias, reverberações dessas figuras aparecem, por exemplo, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Quem aponta para essa filiação é Merquior (1972 apud FACIOLI, 2002, p. 163), que, fundamentado na teoria bakhtiniana, “filia o romance machadiano ao cômico-fantástico da sátira menipéia”. Ele esclarece que […] são realmente impressionantes as analogias de concepção e estrutura entre as grandes expressões do gênero cômico-fantástico e as Memórias póstumas de Brás Cubas. Luciano possui até um personagem: o filósofo Menipo, que gargalha no reino do além-túmulo – em situação idêntica a de Brás Cubas. Pode-se dizer que Machado elaborou uma combinação muito original da menipéia com a perspectiva “autobiográfica” de Sterne e X. De Maistre, acentuado simultaneamente os ingredientes filosóficos de uma das fontes do Tristam Shandy: os Ensaios, de Montaigne (1533-1592), esse clássico da biografia espiritual em estilo informal. Brás Cubas é um caso de novelística filosófica em tom bufo, um manual de moralista em ritmo foliônico. Em lugar do humorismo de identificação sentimental de Sterne, o que predomina nessas pseudomemórias é o ânimo de paródia, o rictus satírico, a dessacralização carnavalesca.” (MERQUIOR, 1972 apud FACIOLI, 2002, p. 62) Isso é para dizer que os procedimentos analíticos que pretendemos adotar, neste artigo, assemelham-se aos que já foram empregados por outros estudiosos que se valeram da teoria bakhtiniana para compreender fenômenos da literatura. É também para explicar que seguiremos o caminho inverso ao de Merquior. Como podemos constatar, mesmo que não explicite, Merquior toma, pelo menos no trecho citado, como ponto central de suas considerações não a personagem, mas o gênero discursivo. O que aqui propomos é pensar o inverso: o centro de nossas atenções é ocupado pela personagem (Mafalda) e não pelo gênero (tiras). Convém lembrarmos, entretanto, que, em Bakhtin, a preocupação é dupla: o importante papel que o trapaceiro, o bobo e o bufão (personagens) desempenham na evolução do romance europeu (gênero). No entanto, mesmo que não nos voltemos especificamente para o gênero tiras nesse artigo, não o excluímos, já que a personagem Mafalda foi criada , pensada e arquitetada tendo em vista esse gênero. Antes de partimos para as reflexões propriamente ditas, fazemos duas ressalvas. A primeira que devemos fazer, já de início, é a seguinte: não é nosso intuito defender que Mafalda seja um trapaceiro, um bufão ou um bobo, mas que, enquanto personagem, filia-se a essas “formas folclóricas e semifloclóricas, de caráter satírico e paródico.” (BAKHTIN, 2010, p. 275). Isso significa, em outras palavras, que, se Bakhtin (2010, p. 275), ao abordar “as funções especiais que essas personagens assumem na literatura da baixa Idade Média” e sua “influência capital sobre o desenvolvimento do romance europeu”, ele trabalha a literatura nas suas múltiplas relações com outros âmbitos da cultura, como o folclore, a mitologia e a filosofia, nós, na mesma perspectiva dialógica, somos impelidos a pensar a Mafalda, uma personagem de tiras em quadrinhos, também nas suas variadas conexões com outras manifestações culturais e aqui elegemos, via Bakhtin, a literatura, mais especificamente, o trapaceiro, o bobo e o bufão e sua produtividade enquanto elemento que impulsiona e possibilita condições de possibilidade não só no âmbito do romance, mas também de outras formas culturais, como as tiras e seus personagens. A segunda é que, se, por um lado, essas três figuras criaram condições de possibilidades diversas para a construção do romance e de sua plasticidade enquanto gênero, por outro, elas também foram produtivas fora do campo literário. E, quando propomos o que aqui pretendemos, é isto que estamos levando em conta. Ou seja: para que a Mafalda existisse enquanto personagem de tiras em quadrinho, com todas as suas nuanças que caracterizam sua singularidade, era necessário haver, na cultura, na sociedade, na história, condições propícias ao seu aparecimento. E é como parte dessas condições que entendemos a produtividade das formas folclóricas e semifolclóricas referidas e as filiações entre Mafalda e elas. Mafalda: um mundo sob a perspectiva dos questionamentos de uma criança. Antes de expormos como a personagem Mafalda dialoga com essas três figuras referidas acima (bobo, trapaceiro e bufão), as quais, em uma tradição fundamentada no riso, contestam e colocam em questionamento aquilo tido como oficial, é necessário um deslocamento para o contexto de produção da personagem. Isto porque, assim como toda personagem, a Mafalda é produto de uma cultura e, nessa condição, dialoga com o contexto social, histórico e cultural do qual emergiu. Nesta seção, subsequentemente, apresentamos fatos relacionados à origem da personagem: questões de autoria, primeiras produções, primeiras publicações. Retratamos também alguns acontecimentos sócio-histórico-culturais da Argentina e do mundo com os quais as tiras dialogam. Mafalda: nasce a criança com voz de adulto Daniel Paz, humorista e desenhista argentino, publicou no aniversário de 51 anos de nascimento da Mafalda o desenho abaixo, no qual retrata a personagem, ainda bebê, sendo criada pelo autor argentino Quino, Joaquín Salvador Lavado Tejón. Esse processo é representado pelo ligamento de Mafalda à cabeça do escritor por um cordão umbilical. Observamos sob o corpo da pequena personagem uma mancha vermelha, a qual representa não somente a cor do vestido frequentemente usado por ela ao longo das tiras, como também a sua postura ante aos ocorridos do mundo: uma postura esquerdista, de oposição Figura1. Desenho de Daniel Paz em homenagem aos 51 anos de Mafalda Fonte: Site bocamaldita A publicação completa das tiras da personagem ocorreu entre 1964 e 1973 por Quino. Sua produção, como uma característica do próprio gênero tiras, voltou-se para publicações periódicas em jornais diários e semanários. Logo, estas estabelecem um forte vínculo dialógico com os acontecimentos das décadas de 60 e 70. Quino criou as tiras dessa personagem nesse período de tempo e só encerrou a produção quando achou que ela tinha cumprido o seu propósito. Segundo Quino (2013) o surgimento da Mafalda está ligado ao universo publicitário. A pedido de um amigo, Miguel Brascó, Quino criou a primeira tira da Mafalda para uma agência de publicidade argentina, AgensPublicidad. Esta requisitou uma produção em que aparecesse uma família, cujos nomes das personagens começassem com M, a fim de realizar a propaganda de eletrodomésticos da marca Mansfield no jornal Clarín, sem que este percebesse a intenção comercial. Quino desenha então, pela primeira vez, Mafalda e seus pais. No entanto, o intento publicitário foi descoberto e esta não foi publicada. Após esse episódio, Quino levou suas tiras para o jornal Primeira Plana e então começou a publicação dessa personagem no mundo jornalístico. Quino (2013) discute a trajetória de publicação das tiras, a qual perpassa três principais periódicos argentinos, respectivamente: Primeira Plana, El Mundo e Siete Días Ilustrados. No primeiro e no último jornal, as tiras eram publicadas semanalmente; já em El Mundo, esta ocorria todo dia, tendo as tiras daquele momento um maior vínculo com os acontecimentos do cotidiano. Os temas, críticas e humor presentes nas tiras da Mafalda estabelecem diálogos com os acontecimentos sociais, culturais e políticos da época. Como enunciados ideológicos, concretos e dialógicos segundo a concepção do Círculo de Bakhtin, elas dialogam com o momento de ditadura vivida pela Argentina e por outros países como o Brasil, bem como com os conflitos pós-Segunda Guerra Mundial. É comum Mafalda trazer para a esfera do privado os fatos e assuntos da esfera pública. Questões políticas, ambientais, sociais, conflitos são discutidos pela personagem dentro de casa, com seus amigos da escola e com seus pais. No entanto, essa menina é apenas uma menina, de cuja boca saem questionamentos nem sempre típicos, comuns, do/ao universo infantil. Mafalda foi chamada por Umberto Eco de “pequena contestadora” pois segundo o autor Se, ao defini-la, usou-se o adjetivo “contestatária”, não foi por uma questão de uniformização em relação à moda do anticonformismo a qualquer preço: a Mafalda é realmente uma heroína iracunda que rejeita o mundo assim como ele é […]. Mafalda vive em um contínuo diálogo com o mundo adulto, mundo que não estima, não respeita, humilha e rejeita reivindicando o seu direito de continuar sendo uma menina que não quer se responsabilizar por um universo adulterado pelos pais […]. Na realidade, a Mafalda, em matéria de política, tem idéias muito confusas, não consegue entender o que acontece no Vietnã, não sabe porque existem os pobres, não confia no Estado e a presença dos chineses a preocupa. Só uma coisa ela sabe claramente: ela não se conforma. Ela é rodeada por uma pequena turma de personagens muito mais “unidimensionais”: Manolito, coroinha integrado do capitalismo de bairro, que sabe com total certeza que o valor primário neste mundo é o dinheiro; Felipe, sonhador tranqüilo; Susanita, beatamente doente de espírito materno, narcotizada por sonhos pequeno-burgueses. E, finalmente, os pais da Mafalda, que como se não lhes bastasse o quanto é duro aceitar a rotina cotidiana (recorrendo ao paliativo farmacêutico de “Nervocalm”), são esmagados, além do mais, pelo tremendo destino de ter que cuidar da Contestatária. O universo de Mafalda é o de uma América Latina nas suas áreas metropolitanas mais desenvolvidas; mas é em geral, a partir de muitos pontos de vista, um universo latino e isto faz com que a Mafalda seja, para nós, muito mais compreensível do que muitos personagens dos quadrinhos americanos; além do mais, a Mafalda é, em última análise, um “herói do nosso tempo” e não se deve pensar que esta seja uma definição exagerada do personagenzinho de papel e tinta que Quino nos propõe. Ninguém nega hoje que os quadrinhos (quando alcança níveis de qualidade) é um testemunho do momento social: e na Mafalda vemos refletidas as tendências de uma juventude irriquieta, que assumem o aspecto paradoxal de uma desaprovação infantil, de um eczema psicológico da reação aos meios de comunicação de massa, de uma urticária moral causada pela lógica dos blocos, de uma asma intelectual originada por fungos atômicos. Como os nosso filhos se preparam para tornar-se – por uma escolha nossa – tantas Mafaldas, não nos parece imprudente tratar a Mafalda com o respeito que se deve a um personagem real. (ECO apud QUINO, 2013, p.55) Quino cria-a como uma criança questionadora em um meio conflituoso entre diferentes outros com os quais se relaciona (pais, professores, amigos – Susanita, Manolito, Felipe, Liberdade, Miguelito –, seu irmão caçula (Guile), entre outros). Estes são configurados pelo autor como personagens típicos da classe média, aos quais Mafalda questiona os ocorridos na esfera pública. O mundo e a Argentina de Mafalda As tiras são enunciados que emergem em situações históricas, sociais e culturais concretas. Nesta condição, apresentam-se nelas tensões entre opiniões, críticas acerca de um determinado fato, na tensão entre a linguagem verbal e a visual. As tiras da Mafalda surgiram em um período agitado política e culturalmente na Argentina e no mundo. A sua leitura e o seu entendimento é interessante, e quando realizados, tendo em vista o contexto de produção, adquirem significados outros. Segundo Quino (2013) na Argentina, de 1946 a 1955, instauraram-se os dois mandatos de Juán Domingo Perón, cuja política econômica estava marcada por aspectos fascistas e de forte industrialização. Após a saída de Perón do poder, a Argentina passou por momentos de instabilidade política, em que o governo do país ora estava nas mãos de civis, ora nas de militares, ocorrendo vários golpes. Essa instabilidade gerou também uma instabilidade econômica que acarretou problemas financeiros na Argentina. Isso só vai se estabilizar com a volta de Perón ao poder em 1973. Com sua morte em 1974, e a ascensão de sua esposa ao poder, houve novamente instabilidade política, instaurando-se o golpe militar de 1976. Na America Latina, vários países também enfrentaram ditaduras militares, onde a liberdade ficou reduzida ao nada. Como forma de representação disto, Quino cria a pequenina personagem liberdade, representação da redução desta aos indivíduos durante a ditadura. Figura 2. Tira da Mafalda sobre liberdade Fonte: Quino, 2010 No panorama mundial também a situação era conflituosa pela instauração da Guerra Fria, ou seja, conflito econômico e político entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. O comunismo era condenado e suas ideologias e seguidores, alvos de perseguição e tortura nos regimes ditatoriais. Daí a cor da roupa de Mafalda ser sempre vermelha – nem sempre presente nas tiras que, em sua maioria, saem publicadas no Brasil em preto e branco –, representação forte da oposição, esquerda comunista. Destacamos ainda, neste momento, segundo os dados contidos na obra Toda Mafalda do autor Joaquin Tejón, do ano de 2013, a guerra no Vietnã, com a invasão das tropas norte-americanas e o surgimento de movimentos de paz. Os movimentos de contracultura ganham força nesse período como sinais de oposição ao estabelecimento da guerra e das mortes por ela ocasionadas. Ressaltamos, nesse momento, os hippies e o rock’nroll. A Mafalda, como símbolo de oposição ao oficial, se coloca como fã de The Beatles, banda de rock em evidência neste contexto, a qual é questionada por muitos amigos e familiares da personagem argentina ao esta afirmar o gosto pela banda. A significação nas tiras da Mafalda, dentre os vários temas abordados, se constrói nessa relação que a personagem principal, uma menina criança, estabelece com os outros ao seu redor. Por meio disto, ela posiciona-se reflexivamente não só frente aos integrantes de seu universo fictício, mas ao micro e ao macrouniverso por meio do questionamento acerca das atitudes das demais personagens. Estes representam, de certa forma, um microcosmo social da humanidade como um todo. Toda esta estrutura da tira da personagem criança com voz de adulto, ocasionou, na Espanha, em sua publicação inicial, devido à censura, na capa dos livros da Mafalda, a existência de uma indicação ‘para adultos’. O próprio autor da personagem afirmou o seguinte: Eu sempre pensei na Mafalda para os adultos. Como eu já disse, o Primera Plana era um semanário político que aparecia no jornal El Mundo, na página oito, que era a seção editorial do jornal. (…) Quer dizer, é certo que cada história da Mafalda tinha por objetivo fazer uma crítica social, era pensada com essa finalidade. Por outro lado, devo especificar que nenhuma história da Mafalda foi censurada, ao passo que me censuraram em muitas outras páginas de humor. (QUINO, 2010, p. 2) Um fator que indica a complexidade dessa produção é que, inicialmente, a Mafalda foi construída para ser uma campanha publicitária de produtos eletrodomésticos da marca Mansfield. Todavia, o jornal em que as tiras fossem publicadas não poderia perceber que a intenção das tiras era a divulgação comercial dos produtos. No entanto, essa intenção foi descoberta, e a publicação, recusada pelo jornal. Qual seria o motivo dessa recusa? Mafalda critica, contesta e fala verdades do mundo, verdades estas que também falam ao nosso mundo atual. Mafalda: constituição de sentidos, humor e historicidade Em muitas tiras da personagem, há a presença de um mundo doente. Este é colocado na esfera privada pela personagem argentina e questionado pela mesma. O mundo dos adultos, dos políticos, das guerras, da mídia é aquele que se encontra enfermo, necessitando de cuidados. Na próxima seção do artigo, discutiremos as relações dialógicas existentes entre Mafalda e os demais personagens apresentados acima. Esta discussão se fará por meio de algumas tiras, cuja temática é o mundo doente. 10 anos com Mafalda, 2010, p. 68 Fonte: Quino, 2010, p. 68 Conforme as discussões do círculo russo (Bakhtin, Medviédev, Volochínov), os gêneros se diferenciam entre si segundo o estilo, a forma e a composição, utilizados com diversos propósitos e intenções em cada ato comunicativo. Nas tiras dessa personagem, percebe-se que a significação é produzida no estabelecimento de diálogos entre personagens que se posicionam valorativamente em relação a outros (pensando no microuniverso) e ao mundo (pensando no macro universo). Assumindo uma posição valorativa frente ao mundo, Mafalda opõe seu ponto de vista e seu posicionamento aos de outras personagens: Felipe e o pai da garota, e, ao mesmo tempo, ao mundo de conflitos. Nas duas tiras, percebemos a constituição das personagens nessa relação com os seus diversos outros. Mafalda se constitui como sujeito contestador frente à condição do mundo, colocado em diálogo pelos discursos sobre este provindos da mídia e o que ela observa. Felipe se constitui como sujeito na relação com a Mafalda e com a visão de um globo terrestre sobre a cama. O pai da Mafalda se constitui como sujeito na relação com a Mafalda, com a criança marginalizada e com os colegas da repartição. Ao pensar nessas tiras, como enunciados que se constituem na interação em sociedade, pode-se pensar na constituição dos sujeitos, ideologias e posicionamentos em relação ao macro universo. É possível, a partir desse pensamento, perceber diálogos entre discursos e embates entre posicionamentos ideológicos diversos. Felipe e o pai da Mafalda representam sujeitos que assumem posições alienadas em relação à condição do mundo. Estes semiotizam a voz daquela ideologia oficial, de um mundo ordenado, em boas condições. Na primeira tira, Felipe, ao pensar em “doente”, acredita ser esse um ser humano e se espanta diante de um globo sobre a cama. Ele desperta, assim, para a situação doente do mundo em que ele vive, mas que não tinha percebido. É possível observarmos, no plano visual, essa mudança no estado de Felipe. É possível observarmos o mesmo no personagem Pai. Na linguagem verbal, percebemos certa ironia quanto ao pensamento de Mafalda relacionado “doente”. No entanto, no visual, ante a um menino de rua, notamos sua alteração, seu despertar para os problemas do mundo. Já Mafalda representa a contra palavra, a voz do despertar, do contrapor, aquela que assume a responsabilidade de alertar acerca de algumas condições de alienação – no caso das tiras em análise, a ideia de que o mundo está doente. Os sujeitos Pai e Felipe, neste contexto, não se constituem em sujeitos que não possuem posicionamentos no ato de viver, mas, segundo Bakhtin (2010), são sujeitos que assumem um falso álibi, ou seja, uma posição axiológica conformista, ao não olharem criticamente para a realidade que os rodeia. Na primeira tira, ao chegar à casa da Mafalda, esta afirma a Felipe que há um doente naquele lugar. Automaticamente, ele pensa em pessoas (mãe, pai). Todavia, ao chegar ao quarto e ouvir as negativas de Mafalda, ele observa fixamente o globo terrestre sobre a cama. O mesmo acontece com o pai da personagem, que ironiza a ideia da filha de um mundo “doente”, acamado. Todavia, ao encontrar uma criança mendigando na rua, compreende o sentido da “doença” enunciada pela filha, reflete sobre isso e adere à ideia, reproduzindo-a no serviço por se apresentar preocupado, o que causa estranhamento de outros, que, espantados, sequer questionam ou refletem sobre tal ideia, apenas repetem, sem entender o sentido das palavras proferidas pelo personagem trabalhador, em ressonância ao discurso de Mafalda e à situação vista. Nessa segunda tira, o pai da Mafalda aparece como representação de uma massa alienada, controlada pelo sistema vigente, o qual trabalha e vive sem posicionar-se criticamente quanto à situação do mundo em que está inserido. É possível encontrarmos a mesma postura nos companheiros de repartição que também não compreendem a ideia de um “mundo doente”, vivendo segundo aquilo que é imposto pela mídia e por aqueles que detêm o poder. Todavia, o pai sofre um choque de realidade ao prestar atenção na criança de rua e, como estava pensando, de maneira irônica, no que Mafalda havia dito, compreende os sentidos do termo “doente” empregado pela filha. No último quadrinho, ele aparece em um processo de desalienação e despertar da consciência possível, disparada pelo contato com a realidade, desde o início metaforizada pela sua filha. Esse despertar angustiante o coloca num patamar diferente, em oposição aos colegas de trabalho, ainda alienados de si e do outro. O humor, nessas tiras da Mafalda, arquiteta-se em meio a essa complexidade expressa acima. A voz de uma criança, não característica à uma criança, e ligada a um posicionamento ideológico que contesta e contrapõe as posições de outros (adultos e crianças) em relação ao contexto social de produção é grande geradora deste humor. Neste jogo entre o verbal e o visual, os quais contribuem ativamente para a produção de sentido na tira, mais o conflito entre ideologias e os diálogos estabelecidos entre discursos dentro e fora da tira, se dá o humor. Mas o que isso tem a ver com o bobo, o trapaceiro e o bufão? Essas três figuras, como assinala Bakhtin (2010, p. 275), destacam-se na literatura medieval das baixas camadas sociais. Elas não são uma invenção dos romancistas medievais. Elas […] trazem consigo para a literatura, em primeiro lugar, uma ligação muito importante com os palcos teatrais e com os espetáculos de máscaras ao ar livre, elas se relacionam com um certo setor particular, mas muito importante para a vida na praça pública; em segundo lugar – o que, naturalmente, está ligado ao que foi dito anteriormente – a própria existência dessas personagens tem um significado que não é literal, mas figurado: a própria aparência delas, tudo o que fazem e dizem não tem sentido direto e imediato, mas sim figurado e, às vezes, invertido. Não se pode entendê-las literalmente, elas não são o que parecem ser; finalmente, em último lugar – que também provém do anterior –, a existência delas é o reflexo de alguma outra existência, reflexo indireto por sinal. Elas são os saltimbancos da vida, sua existência coincide com o seu papel; aliás, fora desse papel, elas não existiriam. (BAKHTIN, 2010, p. 276) Então, aí vemos que, embora Bakhtin trate das funções que tais figuras exercem no desenvolvimento do romance, ele considera suas relações com outras esferas culturais, como o teatro e o folclore (“espetáculos de máscaras ao ar livre”). Também, quando pensamos a Mafalda, são relações como essas que buscamos estabelecer entre dois âmbitos da cultura: a literatura e os quadrinhos. Além disso, tudo ou quase tudo na Mafalda é figurado. Não podemos trabalhar aí com sentidos literais, mas figurados e, assim como a do trapaceiro, do bobo e do bufão, a existência da Mafalda é o reflexo-refração de “alguma outra existência, reflexo indireto por sinal”. Como defende ainda Bakhtin, “Estas máscaras […] têm raízes muito profundas, são ligadas ao povo por privilégios de não participação do bufão na vida, e da intangibilidade de seu discurso, estão ligadas ao cronotopo da praça pública e aos palcos dos teatros.” (BAKHTIN, 2010, p. 277). Sobre essas personagens, o autor russo afirma que elas […] são estrangeiras nesse mundo, elas não se solidarizam com nenhuma situação de vida existente nele, elas vêem o avesso e o falso de cada situação. Por isso podem utilizar qualquer situação da vida somente como máscaras. O trapaceiro ainda tem uns fios que o ligam à realidade; o bufão e o bobo “não são deste mundo” e por isso têm direitos de privilégios especiais. (p. 276) Diante dessa citação, podemos afirmar que alguns traços permanecem, mesmo que refratados, na constituição da Mafalda. Embora ela seja “deste mundo”, esteja nele entranhada, ainda assim há uma certa inadequação e resistência ao mundo que se lhe mostra. Diríamos, dessa forma, que ela não é totalmente estrangeira, porque ela não é de “outro mundo”, mas diríamos também que o mundo tematizado nas tiras sob análise não é o seu: pode ser o mundo em que ela vive, mas não o mundo em que quer, deseja, viver, é um “desmundo”, cujas perspectivas de tornar-se “mundo” são ainda pouco significativas; afinal, ele está e continua “doente”. A nosso ver, diferentemente das figuras medievais, ela se solidariza com uma “situação de vida existente nele”, no mundo, e isso não impede, contudo, que veja “o falso e o avesso de cada situação” e nem que no-los revele. Ela não tem apenas “uns fios que a ligam à realidade”, toda sua tessitura está imersa e envolta na realidade. Mas, a inadaptabilidade do estrangeiro que entrevemos nas tiras aqui comentadas e o traço de ver e revelar o avesso e o falso de cada situação permanecem. Quando Mafalda concebe o estado do mundo como “doente”, à primeira vista, ao seu pai, isso não passa de uma surpreendente afirmação marcada pelo “inusitado”, como aquelas afirmações típicas da fala infantil, que, na sua “ingenuidade”, estão plenas de verdades, além de serem reveladoras. É essa revelação que aparece nos traços que constituem as expressões faciais do pai no terceiro quadrinho ao se deparar na esquina com uma criança maltrapilha e descalça. A afirmação é também surpreendente para seus colegas de trabalho. Se, na tradição romanesca, ouvir, e espiar furtivamente a vida privada (papel do trapaceiro, do criado, da alcoviteira e do Lúcio-asno – por que não?) era um procedimento estético revelador de hipocrisias sociais, “maus hábitos e costumes”, num movimento de crítica que extrapolava o domínio do estritamente privado e cotidiano, nas tiras da Mafalda, toma espaço e ganha corpo, no cruzamento entre o macro e o micro, entre o geral e o particular, o planetário e o local, o ouvir e o espiar furtivamente a situação do mundo na sua totalidade. Mas isso não é uma invenção do autor da Mafalda, já que, desde Apuleio, especificamente, de O asno de ouro, passando pela Idade Média, pela época de transição para o Renascimento, pelos romances do período pós-Renascimento e até por Brás Cubas, aqui no Brasil, como já assinalado, isso já era, mutatis mutandis, feito. É claro que, em toda essa história, elementos, processos, concepções, permaneceram, e outros mudaram. Concebendo a Mafalda junto com essas personagens citadas, podemos recorrer a Bakhtin quando ele se refere às figuras objetos de seu estudo e desviando nosso olhar para, a partir do que ele diz acerca do trapaceiro, do bobo e do bufão, pensar a Mafalda nas suas relações com essa tradição. Vejamos: Elas restabelecem o aspecto público da representação, pois toda a existência dessas figuras, enquanto tais, está totalmente exteriorizada, elas, por assim dizer, levam tudo para a praça, toda a sua função consiste nisso, viver no lado exterior (é verdade que não é a sua própria e existência, mas o reflexo da existência de um outro; porém elas não têm outra). Com isso cria-se um modo particular de exteriorização do homem por meio do riso paródico. (BAKHTIN, 2010, p. 276) Isso também pode ser entrevisto nas tiras aqui discutidas. Mafalda leva todos os problemas do “mundo” para a praça, “toda a sua função consiste nisso”. De fato, não são questões de ordem puramente privada, mas são encobertas; e nisso podemos pensar as interações entre o privado e o encoberto. A quem interessa encobrir os males e problemas do mundo e, por conseguinte, não publicizá-los? Mafalda é uma figura responsável pela revelação desses problemas, das enfermidades mundiais, e, ao revelá-las, no interior da breve narrativa aos outros personagens, revela-as também a seus leitores. Qualquer semelhança com personagens como Lúcio-asno, trapaceiros os mais diversos, aventureiros, criados, alcoviteiras, prostitutas e cortesãs ou mortos que falam do além-túmulo e que, na tradição romanesca põem a “boca no trombone”, denunciam os vícios da vida privada das altas classes sociais, de castas de sacerdotes ou das instituições publicamente respeitadas e aplaudidas pelo cultivo da moral, da ética e dos “bons costumes”, não é uma simples coincidência. Mafalda, além de “denunciar” o mundo “doente” em que vivemos, mostra claramente que, de tão enfermo o mundo, seus habitantes já se acostumaram ou se conformaram. Conformação essa que lhes venda os olhos e não lhes permite refletir sobre o que está naturalizado sob o domínio do Capitalismo, processo que torna invisíveis mazelas como a exclusão social. Além disso, o mundo privado não é de todo abandonado. Assim como o bobo, o trapaceiro e o bufão são responsáveis pela criação de microcosmos no romance que possibilitam a exposição da vida do mundo privado e íntimo, é a menina contestadora de Quino que nos evidencia relações do tipo “pai” e “filha” e entre “amigos”/“crianças” (Felipe e Mafalda). Conclusão A presente análise refletiu sobre a personagem Mafalda no contexto das tiras e também nas conexões diversas com outras produções culturais (bob, trapaceiros e bufão). Buscou-se, deste modo, estabelecer relações com outras personagens contestadoras e desestabilizadoras do oficial. Não afim de posicioná-las em um mesmo plano, mas sim colocá-las em diálogo, com suas proximidades e distanciamentos. Conforme Bakhtin: Na luta contra o convencionalismo e a inadequação de todas as formas de vida existentes, por um homem verdadeiro, essas máscaras adquirem um significado excepcional. Elas dão o direito de não compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a vida; o direito de falar parodiando, de não ser literal, de não ser o próprio indivíduo; o direito de conduzir a vida pelo cronotopo intermediário dos palcos teatrais, de representar a vida como uma comédia e as pessoas como atores; o direito de arrancar as máscaras dos outros, finalmente, o direito de tornar pública a vida privada com todos os seus segredos mais íntimos. ( 2010, p. 278) A própria voz que fala pertence a uma criança, no entanto essa não é caracterizada como tal, a qual assume um tom contestador que questiona o comportamento dos pais, amigos e da humanidade como um todo. A pequena garota, uma criança, contesta acontecimentos e atos considerados comuns aos seus pais, aos seus colegas e até mesmo aos meios midiáticos e autoridades. A presença de um conflito de posicionamentos ideológicos é constante na tessitura do discurso verbo-visual das tiras da personagem. A pequena Mafalda está sempre refletindo sobre comportamentos triviais e ideologias oficiais, bem como posicionamentos alienados acerca dos acontecimentos sociais. Na condição de uma criança, coloca-se de forma reflexiva diante não só dos acontecimentos mundiais como também da postura dos outros em relação a estes. Desta forma, Mafalda dialoga com essas outras personagens pois também possui uma máscara, a infância, que permite lhe falar coisas que talvez os adultos, na sua condição, em uma Argentina ditatorial, não conseguiriam expressar. Nessa condição ela critica o público no privado e tudo se torna cômico, por ser essa uma criança. Assim como as máscaras permitem falas sem grandes consequências, assim como a posição de um asno que fala mas ninguém entende (O asno de outro), ou um defunto que fala (Memórias póstumas de Brás Cubas), a posição da Mafalda criança permite que ela fale sem ser condenada. O gênero tiras contribui para a construção dessa personagem, pois ao dar espaço ao humor, ele domina qualquer medo e repressão ditatorial, por meio do riso, como diz Bakhtin (1987). Considera-se aqui que toda análise não busca esgotar as possibilidades de discussão, mas sim ampliar estas relações por meio da perspectiva teórica escolhida, as ideias do Círculo. Referências BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. BAKHTIN, M. Formas de tempo e de crontopo no romance (ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6ª Ed. São Paulo: HUCITEC, 2010. FACIOLI, V. Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin Editorial, 2002. MERQUIOR, J. G. Gênero e estilo das MPBC, revista Colóquio/Letras, Lisboa, n. 8, julho de 1972. QUINO. Mafalda inédita. São Paulo: Martins fontes, 2013 QUINO. 10 anos com Mafalda. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. #gênero #humor #ideologia #verbovisual
- Mafalda: sentido, humor e historicidade
Jessica de Castro Gonçalves José Radamés Benevides de Melo Nicole Mioni Serni Nossa proposta é pensar a Mafalda numa perspectiva dialógica, o que envolve, inevitavelmente, sua historicidade e, por conseguinte, suas filiações. Quando Bakhtin estuda o romance, suas reflexões não ficam circunscritas ao âmbito da literatura. Ao estudar o fenômeno da metamorfose no romance de aventuras e de costumes, ele esclarece que “Os motivos de transformação e de identidade do indivíduo comunicam-se a todo o mundo humano, à natureza e às coisas criadas por ele.” (BAKHTIN, 2010, p. 235). Assim, em suas considerações, o fenômeno da metamorfose passou por complexos processos de evolução que envolvem a filosofia, a mitologia, o folclore, a religião e a própria literatura. Esse procedimento analítico de Bakhtin nos inspira a conceber a Mafalda não apenas no âmbito das tirinhas ou das histórias em quadrinho, mas, à Bakhtin, pensá-la na relação com filiações que ultrapassam os limites da tira e do quadrinho. É aqui que vislumbramos relações, pontos de contato, mesmo que distantes, entre a personagem Mafalda e o trapaceiro, o bobo e o bufão como compreendidos por Bakhtin (2010). Abordar a Mafalda na sua historicidade é também pensá-la relacionada ao trapaceiro, ao bufão e ao bobo que, segundo Bakhtin (2010, p. 275), exerceram função importante no desenvolvimento do romance europeu; o que, em alguma medida, é refletir a Mafalda numa tradição de personagens que remonta ao Asno de ouro, de Apuleio, classificado por Bakhtin (2010, p. 234) como romance de aventuras e de costumes (o segundo tipo de romance antigo). Mesmo constando da literatura em épocas distintas e distantes entre si, essas figuras (Lúcio-asno, trapaceiro, bobo e bufão), como já assinalado, foram produtivas no desenvolvimento do romance europeu. Como a literatura brasileira inscreve-se nas tradições européias, reverberações dessas figuras aparecem, por exemplo, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Quem aponta para essa filiação é Merquior (1972 apud FACIOLI, 2002, p. 163), que, fundamentado na teoria bakhtiniana, “filia o romance machadiano ao cômico-fantástico da sátira menipéia”. Ele esclarece que […] são realmente impressionantes as analogias de concepção e estrutura entre as grandes expressões do gênero cômico-fantástico e as Memórias póstumas de Brás Cubas. Luciano possui até um personagem: o filósofo Menipo, que gargalha no reino do além-túmulo – em situação idêntica a de Brás Cubas. Pode-se dizer que Machado elaborou uma combinação muito original da menipéia com a perspectiva “autobiográfica” de Sterne e X. De Maistre, acentuado simultaneamente os ingredientes filosóficos de uma das fontes do Tristam Shandy: os Ensaios, de Montaigne (1533-1592), esse clássico da biografia espiritual em estilo informal. Brás Cubas é um caso de novelística filosófica em tom bufo, um manual de moralista em ritmo foliônico. Em lugar do humorismo de identificação sentimental de Sterne, o que predomina nessas pseudomemórias é o ânimo de paródia, o rictus satírico, a dessacralização carnavalesca.” (MERQUIOR, 1972 apud FACIOLI, 2002, p. 62) Isso é para dizer que os procedimentos analíticos que pretendemos adotar, neste artigo, assemelham-se aos que já foram empregados por outros estudiosos que se valeram da teoria bakhtiniana para compreender fenômenos da literatura. É também para explicar que seguiremos o caminho inverso ao de Merquior. Como podemos constatar, mesmo que não explicite, Merquior toma, pelo menos no trecho citado, como ponto central de suas considerações não a personagem, mas o gênero discursivo. O que aqui propomos é pensar o inverso: o centro de nossas atenções é ocupado pela personagem (Mafalda) e não pelo gênero (tiras). Convém lembrarmos, entretanto, que, em Bakhtin, a preocupação é dupla: o importante papel que o trapaceiro, o bobo e o bufão (personagens) desempenham na evolução do romance europeu (gênero). No entanto, mesmo que não nos voltemos especificamente para o gênero tiras nesse artigo, não o excluímos, já que a personagem Mafalda foi criada , pensada e arquitetada tendo em vista esse gênero. Antes de partimos para as reflexões propriamente ditas, fazemos duas ressalvas. A primeira que devemos fazer, já de início, é a seguinte: não é nosso intuito defender que Mafalda seja um trapaceiro, um bufão ou um bobo, mas que, enquanto personagem, filia-se a essas “formas folclóricas e semifloclóricas, de caráter satírico e paródico.” (BAKHTIN, 2010, p. 275). Isso significa, em outras palavras, que, se Bakhtin (2010, p. 275), ao abordar “as funções especiais que essas personagens assumem na literatura da baixa Idade Média” e sua “influência capital sobre o desenvolvimento do romance europeu”, ele trabalha a literatura nas suas múltiplas relações com outros âmbitos da cultura, como o folclore, a mitologia e a filosofia, nós, na mesma perspectiva dialógica, somos impelidos a pensar a Mafalda, uma personagem de tiras em quadrinhos, também nas suas variadas conexões com outras manifestações culturais e aqui elegemos, via Bakhtin, a literatura, mais especificamente, o trapaceiro, o bobo e o bufão e sua produtividade enquanto elemento que impulsiona e possibilita condições de possibilidade não só no âmbito do romance, mas também de outras formas culturais, como as tiras e seus personagens. A segunda é que, se, por um lado, essas três figuras criaram condições de possibilidades diversas para a construção do romance e de sua plasticidade enquanto gênero, por outro, elas também foram produtivas fora do campo literário. E, quando propomos o que aqui pretendemos, é isto que estamos levando em conta. Ou seja: para que a Mafalda existisse enquanto personagem de tiras em quadrinho, com todas as suas nuanças que caracterizam sua singularidade, era necessário haver, na cultura, na sociedade, na história, condições propícias ao seu aparecimento. E é como parte dessas condições que entendemos a produtividade das formas folclóricas e semifolclóricas referidas e as filiações entre Mafalda e elas. Mafalda: um mundo sob a perspectiva dos questionamentos de uma criança. Antes de expormos como a personagem Mafalda dialoga com essas três figuras referidas acima (bobo, trapaceiro e bufão), as quais, em uma tradição fundamentada no riso, contestam e colocam em questionamento aquilo tido como oficial, é necessário um deslocamento para o contexto de produção da personagem. Isto porque, assim como toda personagem, a Mafalda é produto de uma cultura e, nessa condição, dialoga com o contexto social, histórico e cultural do qual emergiu. Nesta seção, subsequentemente, apresentamos fatos relacionados à origem da personagem: questões de autoria, primeiras produções, primeiras publicações. Retratamos também alguns acontecimentos sócio-histórico-culturais da Argentina e do mundo com os quais as tiras dialogam. Mafalda: nasce a criança com voz de adulto Daniel Paz, humorista e desenhista argentino, publicou no aniversário de 51 anos de nascimento da Mafalda o desenho abaixo, no qual retrata a personagem, ainda bebê, sendo criada pelo autor argentino Quino, Joaquín Salvador Lavado Tejón. Esse processo é representado pelo ligamento de Mafalda à cabeça do escritor por um cordão umbilical. Observamos sob o corpo da pequena personagem uma mancha vermelha, a qual representa não somente a cor do vestido frequentemente usado por ela ao longo das tiras, como também a sua postura ante aos ocorridos do mundo: uma postura esquerdista, de oposição Figura1. Desenho de Daniel Paz em homenagem aos 51 anos de Mafalda Fonte: Site bocamaldita A publicação completa das tiras da personagem ocorreu entre 1964 e 1973 por Quino. Sua produção, como uma característica do próprio gênero tiras, voltou-se para publicações periódicas em jornais diários e semanários. Logo, estas estabelecem um forte vínculo dialógico com os acontecimentos das décadas de 60 e 70. Quino criou as tiras dessa personagem nesse período de tempo e só encerrou a produção quando achou que ela tinha cumprido o seu propósito. Segundo Quino (2013) o surgimento da Mafalda está ligado ao universo publicitário. A pedido de um amigo, Miguel Brascó, Quino criou a primeira tira da Mafalda para uma agência de publicidade argentina, AgensPublicidad. Esta requisitou uma produção em que aparecesse uma família, cujos nomes das personagens começassem com M, a fim de realizar a propaganda de eletrodomésticos da marca Mansfield no jornal Clarín, sem que este percebesse a intenção comercial. Quino desenha então, pela primeira vez, Mafalda e seus pais. No entanto, o intento publicitário foi descoberto e esta não foi publicada. Após esse episódio, Quino levou suas tiras para o jornal Primeira Plana e então começou a publicação dessa personagem no mundo jornalístico. Quino (2013) discute a trajetória de publicação das tiras, a qual perpassa três principais periódicos argentinos, respectivamente: Primeira Plana, El Mundo e Siete Días Ilustrados. No primeiro e no último jornal, as tiras eram publicadas semanalmente; já em El Mundo, esta ocorria todo dia, tendo as tiras daquele momento um maior vínculo com os acontecimentos do cotidiano. Os temas, críticas e humor presentes nas tiras da Mafalda estabelecem diálogos com os acontecimentos sociais, culturais e políticos da época. Como enunciados ideológicos, concretos e dialógicos segundo a concepção do Círculo de Bakhtin, elas dialogam com o momento de ditadura vivida pela Argentina e por outros países como o Brasil, bem como com os conflitos pós-Segunda Guerra Mundial. É comum Mafalda trazer para a esfera do privado os fatos e assuntos da esfera pública. Questões políticas, ambientais, sociais, conflitos são discutidos pela personagem dentro de casa, com seus amigos da escola e com seus pais. No entanto, essa menina é apenas uma menina, de cuja boca saem questionamentos nem sempre típicos, comuns, do/ao universo infantil. Mafalda foi chamada por Umberto Eco de “pequena contestadora” pois segundo o autor Se, ao defini-la, usou-se o adjetivo “contestatária”, não foi por uma questão de uniformização em relação à moda do anticonformismo a qualquer preço: a Mafalda é realmente uma heroína iracunda que rejeita o mundo assim como ele é […]. Mafalda vive em um contínuo diálogo com o mundo adulto, mundo que não estima, não respeita, humilha e rejeita reivindicando o seu direito de continuar sendo uma menina que não quer se responsabilizar por um universo adulterado pelos pais […]. Na realidade, a Mafalda, em matéria de política, tem idéias muito confusas, não consegue entender o que acontece no Vietnã, não sabe porque existem os pobres, não confia no Estado e a presença dos chineses a preocupa. Só uma coisa ela sabe claramente: ela não se conforma. Ela é rodeada por uma pequena turma de personagens muito mais “unidimensionais”: Manolito, coroinha integrado do capitalismo de bairro, que sabe com total certeza que o valor primário neste mundo é o dinheiro; Felipe, sonhador tranqüilo; Susanita, beatamente doente de espírito materno, narcotizada por sonhos pequeno-burgueses. E, finalmente, os pais da Mafalda, que como se não lhes bastasse o quanto é duro aceitar a rotina cotidiana (recorrendo ao paliativo farmacêutico de “Nervocalm”), são esmagados, além do mais, pelo tremendo destino de ter que cuidar da Contestatária. O universo de Mafalda é o de uma América Latina nas suas áreas metropolitanas mais desenvolvidas; mas é em geral, a partir de muitos pontos de vista, um universo latino e isto faz com que a Mafalda seja, para nós, muito mais compreensível do que muitos personagens dos quadrinhos americanos; além do mais, a Mafalda é, em última análise, um “herói do nosso tempo” e não se deve pensar que esta seja uma definição exagerada do personagenzinho de papel e tinta que Quino nos propõe. Ninguém nega hoje que os quadrinhos (quando alcança níveis de qualidade) é um testemunho do momento social: e na Mafalda vemos refletidas as tendências de uma juventude irriquieta, que assumem o aspecto paradoxal de uma desaprovação infantil, de um eczema psicológico da reação aos meios de comunicação de massa, de uma urticária moral causada pela lógica dos blocos, de uma asma intelectual originada por fungos atômicos. Como os nosso filhos se preparam para tornar-se – por uma escolha nossa – tantas Mafaldas, não nos parece imprudente tratar a Mafalda com o respeito que se deve a um personagem real. (ECO apud QUINO, 2013, p.55) Quino cria-a como uma criança questionadora em um meio conflituoso entre diferentes outros com os quais se relaciona (pais, professores, amigos – Susanita, Manolito, Felipe, Liberdade, Miguelito –, seu irmão caçula (Guile), entre outros). Estes são configurados pelo autor como personagens típicos da classe média, aos quais Mafalda questiona os ocorridos na esfera pública. O mundo e a Argentina de Mafalda As tiras são enunciados que emergem em situações históricas, sociais e culturais concretas. Nesta condição, apresentam-se nelas tensões entre opiniões, críticas acerca de um determinado fato, na tensão entre a linguagem verbal e a visual. As tiras da Mafalda surgiram em um período agitado política e culturalmente na Argentina e no mundo. A sua leitura e o seu entendimento é interessante, e quando realizados, tendo em vista o contexto de produção, adquirem significados outros. Segundo Quino (2013) na Argentina, de 1946 a 1955, instauraram-se os dois mandatos de Juán Domingo Perón, cuja política econômica estava marcada por aspectos fascistas e de forte industrialização. Após a saída de Perón do poder, a Argentina passou por momentos de instabilidade política, em que o governo do país ora estava nas mãos de civis, ora nas de militares, ocorrendo vários golpes. Essa instabilidade gerou também uma instabilidade econômica que acarretou problemas financeiros na Argentina. Isso só vai se estabilizar com a volta de Perón ao poder em 1973. Com sua morte em 1974, e a ascensão de sua esposa ao poder, houve novamente instabilidade política, instaurando-se o golpe militar de 1976. Na America Latina, vários países também enfrentaram ditaduras militares, onde a liberdade ficou reduzida ao nada. Como forma de representação disto, Quino cria a pequenina personagem liberdade, representação da redução desta aos indivíduos durante a ditadura. Figura 2. Tira da Mafalda sobre liberdade Fonte: Quino, 2010 No panorama mundial também a situação era conflituosa pela instauração da Guerra Fria, ou seja, conflito econômico e político entre Estados Unidos e a antiga União Soviética. O comunismo era condenado e suas ideologias e seguidores, alvos de perseguição e tortura nos regimes ditatoriais. Daí a cor da roupa de Mafalda ser sempre vermelha – nem sempre presente nas tiras que, em sua maioria, saem publicadas no Brasil em preto e branco –, representação forte da oposição, esquerda comunista. Destacamos ainda, neste momento, segundo os dados contidos na obra Toda Mafalda do autor Joaquin Tejón, do ano de 2013, a guerra no Vietnã, com a invasão das tropas norte-americanas e o surgimento de movimentos de paz. Os movimentos de contracultura ganham força nesse período como sinais de oposição ao estabelecimento da guerra e das mortes por ela ocasionadas. Ressaltamos, nesse momento, os hippies e o rock’nroll. A Mafalda, como símbolo de oposição ao oficial, se coloca como fã de The Beatles, banda de rock em evidência neste contexto, a qual é questionada por muitos amigos e familiares da personagem argentina ao esta afirmar o gosto pela banda. A significação nas tiras da Mafalda, dentre os vários temas abordados, se constrói nessa relação que a personagem principal, uma menina criança, estabelece com os outros ao seu redor. Por meio disto, ela posiciona-se reflexivamente não só frente aos integrantes de seu universo fictício, mas ao micro e ao macrouniverso por meio do questionamento acerca das atitudes das demais personagens. Estes representam, de certa forma, um microcosmo social da humanidade como um todo. Toda esta estrutura da tira da personagem criança com voz de adulto, ocasionou, na Espanha, em sua publicação inicial, devido à censura, na capa dos livros da Mafalda, a existência de uma indicação ‘para adultos’. O próprio autor da personagem afirmou o seguinte: Eu sempre pensei na Mafalda para os adultos. Como eu já disse, o Primera Plana era um semanário político que aparecia no jornal El Mundo, na página oito, que era a seção editorial do jornal. (…) Quer dizer, é certo que cada história da Mafalda tinha por objetivo fazer uma crítica social, era pensada com essa finalidade. Por outro lado, devo especificar que nenhuma história da Mafalda foi censurada, ao passo que me censuraram em muitas outras páginas de humor. (QUINO, 2010, p. 2) Um fator que indica a complexidade dessa produção é que, inicialmente, a Mafalda foi construída para ser uma campanha publicitária de produtos eletrodomésticos da marca Mansfield. Todavia, o jornal em que as tiras fossem publicadas não poderia perceber que a intenção das tiras era a divulgação comercial dos produtos. No entanto, essa intenção foi descoberta, e a publicação, recusada pelo jornal. Qual seria o motivo dessa recusa? Mafalda critica, contesta e fala verdades do mundo, verdades estas que também falam ao nosso mundo atual. Mafalda: constituição de sentidos, humor e historicidade Em muitas tiras da personagem, há a presença de um mundo doente. Este é colocado na esfera privada pela personagem argentina e questionado pela mesma. O mundo dos adultos, dos políticos, das guerras, da mídia é aquele que se encontra enfermo, necessitando de cuidados. Na próxima seção do artigo, discutiremos as relações dialógicas existentes entre Mafalda e os demais personagens apresentados acima. Esta discussão se fará por meio de algumas tiras, cuja temática é o mundo doente. 10 anos com Mafalda, 2010, p. 68 Fonte: Quino, 2010, p. 68 Conforme as discussões do círculo russo (Bakhtin, Medviédev, Volochínov), os gêneros se diferenciam entre si segundo o estilo, a forma e a composição, utilizados com diversos propósitos e intenções em cada ato comunicativo. Nas tiras dessa personagem, percebe-se que a significação é produzida no estabelecimento de diálogos entre personagens que se posicionam valorativamente em relação a outros (pensando no microuniverso) e ao mundo (pensando no macro universo). Assumindo uma posição valorativa frente ao mundo, Mafalda opõe seu ponto de vista e seu posicionamento aos de outras personagens: Felipe e o pai da garota, e, ao mesmo tempo, ao mundo de conflitos. Nas duas tiras, percebemos a constituição das personagens nessa relação com os seus diversos outros. Mafalda se constitui como sujeito contestador frente à condição do mundo, colocado em diálogo pelos discursos sobre este provindos da mídia e o que ela observa. Felipe se constitui como sujeito na relação com a Mafalda e com a visão de um globo terrestre sobre a cama. O pai da Mafalda se constitui como sujeito na relação com a Mafalda, com a criança marginalizada e com os colegas da repartição. Ao pensar nessas tiras, como enunciados que se constituem na interação em sociedade, pode-se pensar na constituição dos sujeitos, ideologias e posicionamentos em relação ao macro universo. É possível, a partir desse pensamento, perceber diálogos entre discursos e embates entre posicionamentos ideológicos diversos. Felipe e o pai da Mafalda representam sujeitos que assumem posições alienadas em relação à condição do mundo. Estes semiotizam a voz daquela ideologia oficial, de um mundo ordenado, em boas condições. Na primeira tira, Felipe, ao pensar em “doente”, acredita ser esse um ser humano e se espanta diante de um globo sobre a cama. Ele desperta, assim, para a situação doente do mundo em que ele vive, mas que não tinha percebido. É possível observarmos, no plano visual, essa mudança no estado de Felipe. É possível observarmos o mesmo no personagem Pai. Na linguagem verbal, percebemos certa ironia quanto ao pensamento de Mafalda relacionado “doente”. No entanto, no visual, ante a um menino de rua, notamos sua alteração, seu despertar para os problemas do mundo. Já Mafalda representa a contra palavra, a voz do despertar, do contrapor, aquela que assume a responsabilidade de alertar acerca de algumas condições de alienação – no caso das tiras em análise, a ideia de que o mundo está doente. Os sujeitos Pai e Felipe, neste contexto, não se constituem em sujeitos que não possuem posicionamentos no ato de viver, mas, segundo Bakhtin (2010), são sujeitos que assumem um falso álibi, ou seja, uma posição axiológica conformista, ao não olharem criticamente para a realidade que os rodeia. Na primeira tira, ao chegar à casa da Mafalda, esta afirma a Felipe que há um doente naquele lugar. Automaticamente, ele pensa em pessoas (mãe, pai). Todavia, ao chegar ao quarto e ouvir as negativas de Mafalda, ele observa fixamente o globo terrestre sobre a cama. O mesmo acontece com o pai da personagem, que ironiza a ideia da filha de um mundo “doente”, acamado. Todavia, ao encontrar uma criança mendigando na rua, compreende o sentido da “doença” enunciada pela filha, reflete sobre isso e adere à ideia, reproduzindo-a no serviço por se apresentar preocupado, o que causa estranhamento de outros, que, espantados, sequer questionam ou refletem sobre tal ideia, apenas repetem, sem entender o sentido das palavras proferidas pelo personagem trabalhador, em ressonância ao discurso de Mafalda e à situação vista. Nessa segunda tira, o pai da Mafalda aparece como representação de uma massa alienada, controlada pelo sistema vigente, o qual trabalha e vive sem posicionar-se criticamente quanto à situação do mundo em que está inserido. É possível encontrarmos a mesma postura nos companheiros de repartição que também não compreendem a ideia de um “mundo doente”, vivendo segundo aquilo que é imposto pela mídia e por aqueles que detêm o poder. Todavia, o pai sofre um choque de realidade ao prestar atenção na criança de rua e, como estava pensando, de maneira irônica, no que Mafalda havia dito, compreende os sentidos do termo “doente” empregado pela filha. No último quadrinho, ele aparece em um processo de desalienação e despertar da consciência possível, disparada pelo contato com a realidade, desde o início metaforizada pela sua filha. Esse despertar angustiante o coloca num patamar diferente, em oposição aos colegas de trabalho, ainda alienados de si e do outro. O humor, nessas tiras da Mafalda, arquiteta-se em meio a essa complexidade expressa acima. A voz de uma criança, não característica à uma criança, e ligada a um posicionamento ideológico que contesta e contrapõe as posições de outros (adultos e crianças) em relação ao contexto social de produção é grande geradora deste humor. Neste jogo entre o verbal e o visual, os quais contribuem ativamente para a produção de sentido na tira, mais o conflito entre ideologias e os diálogos estabelecidos entre discursos dentro e fora da tira, se dá o humor. Mas o que isso tem a ver com o bobo, o trapaceiro e o bufão? Essas três figuras, como assinala Bakhtin (2010, p. 275), destacam-se na literatura medieval das baixas camadas sociais. Elas não são uma invenção dos romancistas medievais. Elas […] trazem consigo para a literatura, em primeiro lugar, uma ligação muito importante com os palcos teatrais e com os espetáculos de máscaras ao ar livre, elas se relacionam com um certo setor particular, mas muito importante para a vida na praça pública; em segundo lugar – o que, naturalmente, está ligado ao que foi dito anteriormente – a própria existência dessas personagens tem um significado que não é literal, mas figurado: a própria aparência delas, tudo o que fazem e dizem não tem sentido direto e imediato, mas sim figurado e, às vezes, invertido. Não se pode entendê-las literalmente, elas não são o que parecem ser; finalmente, em último lugar – que também provém do anterior –, a existência delas é o reflexo de alguma outra existência, reflexo indireto por sinal. Elas são os saltimbancos da vida, sua existência coincide com o seu papel; aliás, fora desse papel, elas não existiriam. (BAKHTIN, 2010, p. 276) Então, aí vemos que, embora Bakhtin trate das funções que tais figuras exercem no desenvolvimento do romance, ele considera suas relações com outras esferas culturais, como o teatro e o folclore (“espetáculos de máscaras ao ar livre”). Também, quando pensamos a Mafalda, são relações como essas que buscamos estabelecer entre dois âmbitos da cultura: a literatura e os quadrinhos. Além disso, tudo ou quase tudo na Mafalda é figurado. Não podemos trabalhar aí com sentidos literais, mas figurados e, assim como a do trapaceiro, do bobo e do bufão, a existência da Mafalda é o reflexo-refração de “alguma outra existência, reflexo indireto por sinal”. Como defende ainda Bakhtin, “Estas máscaras […] têm raízes muito profundas, são ligadas ao povo por privilégios de não participação do bufão na vida, e da intangibilidade de seu discurso, estão ligadas ao cronotopo da praça pública e aos palcos dos teatros.” (BAKHTIN, 2010, p. 277). Sobre essas personagens, o autor russo afirma que elas […] são estrangeiras nesse mundo, elas não se solidarizam com nenhuma situação de vida existente nele, elas vêem o avesso e o falso de cada situação. Por isso podem utilizar qualquer situação da vida somente como máscaras. O trapaceiro ainda tem uns fios que o ligam à realidade; o bufão e o bobo “não são deste mundo” e por isso têm direitos de privilégios especiais. (p. 276) Diante dessa citação, podemos afirmar que alguns traços permanecem, mesmo que refratados, na constituição da Mafalda. Embora ela seja “deste mundo”, esteja nele entranhada, ainda assim há uma certa inadequação e resistência ao mundo que se lhe mostra. Diríamos, dessa forma, que ela não é totalmente estrangeira, porque ela não é de “outro mundo”, mas diríamos também que o mundo tematizado nas tiras sob análise não é o seu: pode ser o mundo em que ela vive, mas não o mundo em que quer, deseja, viver, é um “desmundo”, cujas perspectivas de tornar-se “mundo” são ainda pouco significativas; afinal, ele está e continua “doente”. A nosso ver, diferentemente das figuras medievais, ela se solidariza com uma “situação de vida existente nele”, no mundo, e isso não impede, contudo, que veja “o falso e o avesso de cada situação” e nem que no-los revele. Ela não tem apenas “uns fios que a ligam à realidade”, toda sua tessitura está imersa e envolta na realidade. Mas, a inadaptabilidade do estrangeiro que entrevemos nas tiras aqui comentadas e o traço de ver e revelar o avesso e o falso de cada situação permanecem. Quando Mafalda concebe o estado do mundo como “doente”, à primeira vista, ao seu pai, isso não passa de uma surpreendente afirmação marcada pelo “inusitado”, como aquelas afirmações típicas da fala infantil, que, na sua “ingenuidade”, estão plenas de verdades, além de serem reveladoras. É essa revelação que aparece nos traços que constituem as expressões faciais do pai no terceiro quadrinho ao se deparar na esquina com uma criança maltrapilha e descalça. A afirmação é também surpreendente para seus colegas de trabalho. Se, na tradição romanesca, ouvir, e espiar furtivamente a vida privada (papel do trapaceiro, do criado, da alcoviteira e do Lúcio-asno – por que não?) era um procedimento estético revelador de hipocrisias sociais, “maus hábitos e costumes”, num movimento de crítica que extrapolava o domínio do estritamente privado e cotidiano, nas tiras da Mafalda, toma espaço e ganha corpo, no cruzamento entre o macro e o micro, entre o geral e o particular, o planetário e o local, o ouvir e o espiar furtivamente a situação do mundo na sua totalidade. Mas isso não é uma invenção do autor da Mafalda, já que, desde Apuleio, especificamente, de O asno de ouro, passando pela Idade Média, pela época de transição para o Renascimento, pelos romances do período pós-Renascimento e até por Brás Cubas, aqui no Brasil, como já assinalado, isso já era, mutatis mutandis, feito. É claro que, em toda essa história, elementos, processos, concepções, permaneceram, e outros mudaram. Concebendo a Mafalda junto com essas personagens citadas, podemos recorrer a Bakhtin quando ele se refere às figuras objetos de seu estudo e desviando nosso olhar para, a partir do que ele diz acerca do trapaceiro, do bobo e do bufão, pensar a Mafalda nas suas relações com essa tradição. Vejamos: Elas restabelecem o aspecto público da representação, pois toda a existência dessas figuras, enquanto tais, está totalmente exteriorizada, elas, por assim dizer, levam tudo para a praça, toda a sua função consiste nisso, viver no lado exterior (é verdade que não é a sua própria e existência, mas o reflexo da existência de um outro; porém elas não têm outra). Com isso cria-se um modo particular de exteriorização do homem por meio do riso paródico. (BAKHTIN, 2010, p. 276) Isso também pode ser entrevisto nas tiras aqui discutidas. Mafalda leva todos os problemas do “mundo” para a praça, “toda a sua função consiste nisso”. De fato, não são questões de ordem puramente privada, mas são encobertas; e nisso podemos pensar as interações entre o privado e o encoberto. A quem interessa encobrir os males e problemas do mundo e, por conseguinte, não publicizá-los? Mafalda é uma figura responsável pela revelação desses problemas, das enfermidades mundiais, e, ao revelá-las, no interior da breve narrativa aos outros personagens, revela-as também a seus leitores. Qualquer semelhança com personagens como Lúcio-asno, trapaceiros os mais diversos, aventureiros, criados, alcoviteiras, prostitutas e cortesãs ou mortos que falam do além-túmulo e que, na tradição romanesca põem a “boca no trombone”, denunciam os vícios da vida privada das altas classes sociais, de castas de sacerdotes ou das instituições publicamente respeitadas e aplaudidas pelo cultivo da moral, da ética e dos “bons costumes”, não é uma simples coincidência. Mafalda, além de “denunciar” o mundo “doente” em que vivemos, mostra claramente que, de tão enfermo o mundo, seus habitantes já se acostumaram ou se conformaram. Conformação essa que lhes venda os olhos e não lhes permite refletir sobre o que está naturalizado sob o domínio do Capitalismo, processo que torna invisíveis mazelas como a exclusão social. Além disso, o mundo privado não é de todo abandonado. Assim como o bobo, o trapaceiro e o bufão são responsáveis pela criação de microcosmos no romance que possibilitam a exposição da vida do mundo privado e íntimo, é a menina contestadora de Quino que nos evidencia relações do tipo “pai” e “filha” e entre “amigos”/“crianças” (Felipe e Mafalda). Conclusão A presente análise refletiu sobre a personagem Mafalda no contexto das tiras e também nas conexões diversas com outras produções culturais (bob, trapaceiros e bufão). Buscou-se, deste modo, estabelecer relações com outras personagens contestadoras e desestabilizadoras do oficial. Não afim de posicioná-las em um mesmo plano, mas sim colocá-las em diálogo, com suas proximidades e distanciamentos. Conforme Bakhtin: Na luta contra o convencionalismo e a inadequação de todas as formas de vida existentes, por um homem verdadeiro, essas máscaras adquirem um significado excepcional. Elas dão o direito de não compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a vida; o direito de falar parodiando, de não ser literal, de não ser o próprio indivíduo; o direito de conduzir a vida pelo cronotopo intermediário dos palcos teatrais, de representar a vida como uma comédia e as pessoas como atores; o direito de arrancar as máscaras dos outros, finalmente, o direito de tornar pública a vida privada com todos os seus segredos mais íntimos. ( 2010, p. 278) A própria voz que fala pertence a uma criança, no entanto essa não é caracterizada como tal, a qual assume um tom contestador que questiona o comportamento dos pais, amigos e da humanidade como um todo. A pequena garota, uma criança, contesta acontecimentos e atos considerados comuns aos seus pais, aos seus colegas e até mesmo aos meios midiáticos e autoridades. A presença de um conflito de posicionamentos ideológicos é constante na tessitura do discurso verbo-visual das tiras da personagem. A pequena Mafalda está sempre refletindo sobre comportamentos triviais e ideologias oficiais, bem como posicionamentos alienados acerca dos acontecimentos sociais. Na condição de uma criança, coloca-se de forma reflexiva diante não só dos acontecimentos mundiais como também da postura dos outros em relação a estes. Desta forma, Mafalda dialoga com essas outras personagens pois também possui uma máscara, a infância, que permite lhe falar coisas que talvez os adultos, na sua condição, em uma Argentina ditatorial, não conseguiriam expressar. Nessa condição ela critica o público no privado e tudo se torna cômico, por ser essa uma criança. Assim como as máscaras permitem falas sem grandes consequências, assim como a posição de um asno que fala mas ninguém entende (O asno de outro), ou um defunto que fala (Memórias póstumas de Brás Cubas), a posição da Mafalda criança permite que ela fale sem ser condenada. O gênero tiras contribui para a construção dessa personagem, pois ao dar espaço ao humor, ele domina qualquer medo e repressão ditatorial, por meio do riso, como diz Bakhtin (1987). Considera-se aqui que toda análise não busca esgotar as possibilidades de discussão, mas sim ampliar estas relações por meio da perspectiva teórica escolhida, as ideias do Círculo. Referências BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. BAKHTIN, M. Formas de tempo e de crontopo no romance (ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6ª Ed. São Paulo: HUCITEC, 2010. FACIOLI, V. Um defunto estrambótico: análise e interpretação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin Editorial, 2002. MERQUIOR, J. G. Gênero e estilo das MPBC, revista Colóquio/Letras, Lisboa, n. 8, julho de 1972. QUINO. Mafalda inédita. São Paulo: Martins fontes, 2013 QUINO. 10 anos com Mafalda. Tradução de Monica Stahel. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010. #gênero #humor #ideologia #verbovisual
- A bivocalidade polêmica em Diário do hospício, de Lima Barreto: fragmentos de uma análise prévia
José Radamés Benevides de Melo[1][2][3] 1 Introdução[4] Ao construir sua identidade de escritor literário, Lima Barreto passa a polemizar com a literatura de prestígio de sua época. Ao ser internado no Hospital Nacional dos Alienados, passa a polemizar com a psiquiatria então praticada. Isso não nos impede, no entanto, de dizermos que, mesmo tendo uma vida conturbada, ele deixou um grande legado, do qual se destacam Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Marcadamente dialógicos, esses enunciados estabelecem diálogos com diversas vozes sociais; dentre elas, as da literatura e as da ciência de sua época. É a partir da leitura de Diário do hospício e dos postulados teóricos do Círculo de Bakhtin, que estabelecemos o objetivo de investigação deste artigo: apresentar parciais de uma análise prévia da bivocalidade polêmica da narrativa em questão. Assim, para atingir esse objetivo, procedemos à análise: 1) da polêmica aberta estabelecida entre o discurso de Lima Barreto e o discurso da ciência psiquiátrica de sua época e 2) da polêmica velada entre a fala limabarretiana e outras falas literárias do início do século XX expressa, na relação forma-conteúdo, por meio de seus enunciados. Para proceder à análise ora proposta, os postulados teóricos do dialogismo e a noção de discurso bivocal (no que concerne às polêmicas aberta e velada), tal como apresentados por Bakhtin (2010), fundamentam a análise. 2 O discurso bivocal[5] Não é nosso objetivo, nesta seção, descrever e comentar todo o capítulo que Bakhtin dedica ao estudo do discurso em Dostoiévski, mas apenas aquilo que, por razões teóricas e analíticas, interessam ao desenvolvimento do que propomos neste artigo. Por isso, entendemos ser importante explicitar nossa compreensão do percurso feito pelo pensador russo que vai desde a assunção do ângulo dialógico até a definição de polêmica aberta e polêmica velada. Isso não quer dizer que, no momento das análises, quando for necessário, não recorreremos ao que é dito ao longo de todo o capítulo ou mesmo de outras obras do círculo, mas apenas que estamos situando nossas reflexões sobre o discurso bivocal considerando somente o que é dito sobre essa modalidade de discurso no trecho a ela dedicado por Bakhtin (2010) em Problemas da poética de Dostoiévski. Bakhtin dedica o quinto e último capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski à análise do discurso na obra do romancista russo. Intitulado O discurso em Dostoiévski, apresenta quatro seções, cujos títulos são, respectivamente, de 1 a 4: Tipos de discurso na prosa. O discurso dostoievskiano, O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski, O discurso do herói e o discurso do narrador nos romances de Dostoiévski e O diálogo em Dostoiévski. Ao longo do capítulo, Bakhtin realiza, como faz, aliás, em todo o livro, um minucioso estudo das relações dialógicas e de sua realização nas obras de Dostoiévski, especialmente nas novelas e nos romances[6]. O capítulo começa com uma pequena, mas fundamental, seção, cujo título é “Algumas observações metodológicas prévias”. É nessa seção que Bakhtin esclarece ao leitor que os princípios que orientam suas análises não são advindos da linguística nem da estilística, que, para ele, apresentavam limitações no que diz respeito às investigações do estilo, da paródia e do skaz. É também aí e por isso que ele situa suas reflexões no âmbito da metalinguística, “subtendendo-a como um estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística” (BAKHTIN, 2010, p. 207). Nesse ato de extrapolar os limites impostos pelos estudos linguísticos, Bakhtin assume o ângulo dialógico como princípio orientador e fundamental de suas reflexões e é ele mesmo quem o diz: Mas é precisamente esse ângulo dialógico que não pode ser estabelecido por meio de critérios genuinamente linguísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu estudo. As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da metalinguística. (BAKHTIN, 2010, p. 208) A assunção do ângulo dialógico leva Bakhtin a assumir as relações dialógicas como objeto de estudo e de pesquisa da metalinguística, o que já está posto na citação acima, mas que fica ainda mais evidente no fragmento que segue: Assim, as relações dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 209) No seu posicionamento frente à linguística, Bakhtin afirma que As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas e concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 209) Depois disso, no fim dessa breve seção, é-nos apresentado o objetivo do capítulo que ora comentamos: “O objetivo principal do nosso exame, pode-se dizer, seu herói principal, é o discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas condições da vida autêntica da palavra.” (BAKHTIN, 2010, p. 211). Nas linhas seguintes, Bakhtin apresenta uma distinção minuciosa de três tipos de discurso: o primeiro deles diz respeito ao “que nomeia, comunica, enuncia, representa –, que visa à interpretação referencial do objeto”; já o segundo é chamado de […] discurso representado ou objetificado (segundo tipo). O tipo mais típico e difundido de discurso representado e objetificado é o discurso direto dos heróis. Este tem significação objetiva imediata, mas não se situa no mesmo plano ao lado do discurso do autor, e sim numa espécie de distância perspectiva em relação a ele. Não é entendido do ponto de vista do seu objeto, mas ele mesmo é o objeto da orientação como discurso característico, típico, colorido. (BAKHTIN, 2010, p. 213-214) A esses dois tipos de discurso Bakhtin chama de discursos monovocais. Já o terceiro tipo de discurso é aquele em que “ocorrem duas orientações semânticas, duas vozes.” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Acrescenta ainda o pensador russo o seguinte: “As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais.” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Em sua complexa classificação, cujo princípio é a alteridade (relação com o discurso do outro), dos discursos bivocais, Bakhtin chega a três subtipos: 1) o discurso bivocal de orientação única; 2) o discurso bivocal de orientação vária; e 3) o tipo ativo (discurso refletido do outro). Nesse último subtipo, situam-se: a) a polêmica interna velada; b) a autobiografia e confissões polemicamente refletidas; c) qualquer discurso que visa ao discurso do outro; d) a réplica do diálogo; e) o diálogo. Assim se refere Bakhtin ao tipo ativo: “O discurso do outro influencia de fora para dentro; são possíveis formas sumamente variadas de inter-relação com a palavra do outro e variados graus de sua influência deformante.” (BAKHTIN, 2010, p. 229). Aqui, retomamos Estética da criação verbal para lembrar uma passagem de O autor e a personagem na atividade estética, em que, falando da forma espacial da personagem, Bakhtin afirma: De fato, nossa situação diante do espelho é sempre meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos a partir do outro; também aqui tentamos vivificar e enformar a nós mesmos a partir do outro; daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida. (BAKHTIN, 2011, p. 30) Podemos dizer que o que está dito nos comentários acerca do discurso bivocal (tipo ativo/discurso refletido do outro) em muito se assemelha ao ato de, estando sozinhos, olharmo-nos no espelho no intuito de nos autocontemplar. Inevitavelmente, o outro constituirá esse momento, mesmo que não esteja presente, que há pouco tenha se retirado do recinto, que há anos não tenha dado a graça de sua presença. O autocontemplar-se do sujeito é um ato atravessado pela alteridade, “daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida”. Assim acontece também com o discurso de tipo ativo (refletido do outro); embora o discurso do outro não esteja presente por meio de palavras, enunciados, acentos, tons, etc., embora no discurso do sujeito, esse discurso outro, a palavra do outro permaneça […] fora dos limites do discurso do autor, […] esse discurso [o do autor] a leva em conta e a ela se refere. Aqui, a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação, mas age, influi e de um modo ou de outro determina a palavra do autor, permanecendo ela mesma fora desta. Assim é a palavra na polêmica velada e, na maioria dos casos, na réplica dialógica. (BAKHTIN, 2010, p. 223-224) É nesse âmbito do discurso de tipo ativo que se situa a polêmica interna velada. Nessa polêmica, […] o discurso do autor está orientado para o seu objeto, como qualquer outro discurso; neste caso, porém, qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto. (BAKHTIN, 2010, p. 224) Neste ponto, poderíamos estabelecer uma relação no interior da esfera de atividade literária entre os escritos parnasianos, pensemos na Profissão de fé, de Olavo Bilac, quanto à literatura e em Inverno em flor, de Coelho Neto (1864-1936), quanto à literatura e à loucura, por exemplo, e os escritos de Lima Barreto. Inverno em flor funcionaria muito mais como um porta-voz do discurso da psiquiatria de sua época do que Diário do hospício, de Lima Barreto. Referindo-se à loucura e à psiquiatria, Lima, na dinâmica da esfera literária, se contrapõe ao posicionamento adotado por Coelho Neto em Inverno em flor, tanto no que diz respeito às formações verbo-axiológicas quanto no que se refere ao discurso que se faz sobre a loucura e a psiquiatria. O discurso de Lima não apresenta no seu interior réplicas dialógicas a intervenções que, por ventura, viessem de seu outro, por exemplo, de Coelho Neto. No entanto, esse outro discurso está apenas subentendido e, “orientado para o seu objeto (a literatura, a loucura, a psiquiatria), o discurso se choca no próprio objeto com o discurso do outro.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Como afirma Bakhtin (2010, p. 224), “este último não se reproduz, é apenas subentendido” a tal ponto que “a estrutura do discurso seria inteiramente distinta se não houvesse essa reação ao discurso subentendido do outro.” É ainda sobre essa modalidade de polêmica que Bakhtin (2010, p. 224) assevera que […] na polêmica velada o discurso do outro é repelido e essa repelência não é menos relevante que o próprio objeto que se discute e determina o discurso do autor. Isso muda radicalmente a semântica da palavra: ao lado do sentido concreto surge um segundo sentido – a orientação centrada no discurso do outro. De fato, não vemos, em Diário do hospício, as palavras, os enunciados, fragmentos do discurso parnasiano[7], mas podemos perceber que, em relação aos discursos hegemônicos que circulavam na esfera literária naquele momento, o discurso construído na narrativa de Lima Barreto, que aqui tomamos como corpus de investigação, não segue os princípios orientadores das formações verbo-axiológicas das obras parnasianas ou simbolistas. Em outras palavras, o discurso parnasiano é repelido, mas essa repelência é importante porque determina o discurso do autor, o que muda, como diz o próprio Bakhtin, radicalmente a semântica da palavra, já que ao lado de seu sentido concreto, surge um segundo sentido, que, aqui compreendemos, polêmico. Por isso, não podemos compreender de “modo completo e essencial esse discurso, considerando apenas a sua significação concreta direta. O colorido polêmico dos discursos manifesta-se em outros traços puramente linguísticos: na entonação e na construção sintática.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Quanto à distinção entre as polêmicas aberta e velada, Bakhtin (2010, p. 224) afirma que […] as diferenças de significação são muito consideráveis. A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é seu objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto. Ao desenvolver suas reflexões, Bakhtin afirma que a polêmica velada é muito comum tanto nos discursos do cotidiano quanto no discurso literário. Nesse último, exerce grande influência na formação do estilo, o que lhe confere imenso valor no âmbito do literário. É o que nos diz o próprio Bakhtin (2010, p. 225): No discurso literário é imenso o valor da polêmica velada. Há propriamente em cada estilo um elemento de polêmica interna, residindo a diferença apenas no seu grau e no seu caráter. Todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crítico, cujas objeções antecipadas, apreciações e pontos de vista ele reflete. Além disso, o discurso literário sente ao seu lado outro discurso literário, outro estilo. O elemento da chamada reação ao estilo literário antecedente, presente em cada estilo novo, é essa mesma polêmica interna, por assim dizer, dissimulada pela antiestilização do estilo do outro, que se combina com uma paródia patente deste. Por isso, compreendemos que, em Diário do hospício, é fundamental analisar as relações dialógicas (aberta e veladamente polêmicas) estabelecidas com outros discursos, enunciados, sujeitos de sua época. Tendo apresentado brevemente o tratamento dado por Bakhtin ao discurso bivocal, suas variantes e nuanças, tratemos dos enunciados Diário do hospício e O cemitério dos vivos. 3 Que enunciados são estes: Diário do hospício e O cemitério dos vivos?[8] O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação. (VOLOCHÍNOV, 2013a [1926]) Essa epígrafe muito atesta do nosso objetivo neste tópico, que é, a partir de uma breve reflexão sobre o conceito de enunciado na obra do círculo, proceder à apresentação da narrativa que tomamos como corpus para análise. Mesmo sendo apenas uma apresentação, o que aqui propomos nos auxiliará a: 1) entender Diário do hospício e O cemitério dos vivos como enunciados concretos no processo de construção e delimitação de nosso corpus e 2) atentar para as exigências e demandas que essa articulação teoria/corpus nos impõe. Assim como outras noções que orientam os estudos e as pesquisas que se fundamentam na arquitetura filosófica de Bakhtin e do Círculo, as concepções de enunciado e enunciação não aparecem explicitadas numa única obra dos membros do círculo, mas as considerações acerca do enunciado e da enunciação estão espalhadas e podem ser encontradas em várias obras assinadas pelos pensadores russos. Da leitura que temos empreendido das obras do círculo, notamos que as noções de enunciado e enunciação são, geralmente, tratadas juntas ou, quando não, se imbricam implicitamente. Como no pensamento dialógico é difícil desvincular o eu do outro, a identidade da alteridade, o processo de seu produto, o mesmo acontece com o enunciado e a enunciação. Em Marxismo e filosofia da linguagem, assim se pronunciam Volochínov e Bakhtin sobre a enunciação: Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 101) O que foi dito a respeito do enunciado e o conteúdo dessa citação, a nosso ver, provocam um deslocamento na maneira de lidar tanto com Diário do hospício quanto com O cemitério dos vivos. Ao considerar o enunciado e sua enunciação ou a enunciação e seu enunciado, colocamo-nos diante de uma cadeia discursiva onde as palavras circulam, onde elas dialogam, onde sujeitos se posicionam responsivamente, o que nos leva a pensar na complexa realidade sociocultural brasileira de inícios do século XX, o que nos leva a não considerar os dois enunciados/enunciações que ora tomamos para reflexão separadamente de suas situações reais, vivas, de existência. É mais ou menos isso o que está inscrito em A construção da enunciação. Nesse ensaio, diz-nos Volochínov (2013b [1930], p. 158) que […] a comunicação verbal não passa de uma das inumeráveis formas do desenvolvimento – “de formação” – da comunidade social na qual se realiza a interação verbal entre pessoas que vivem uma vida social. Por isso, seria uma tarefa desesperada tentar compreender a construção das enunciações, que formam a comunicação verbal, sem ter presente nenhum de seus vínculos com a efetiva situação social que as provoca. Assim, chegamos a nossa última conclusão: a essência efetiva da linguagem está representada pelo fato social da interação verbal, que é realizada por uma ou mais enunciações. (destaques do autor) É por isso que, ao tratar de Diário do hospício e O cemitério dos vivos, não abandonamos a comunidade social em que ocorrem nem os sujeitos que vivem em sociedade e que partilham enunciados concretos que foram ditos e escritos antes dessa narrativa de Lima Barreto sobre a loucura, a psiquiatria, a literatura e daqueles que foram ditos e escritos depois dela. Estando esses enunciados ou não na mesma esfera de atividade ideológica, ocorre, historicamente, a interação verbal de enunciados e de seus autores, o que, numa complexa malha de reflexos e refrações, vai construindo diálogos, polêmicas, conversas, embates. Nesse sentido, pensar Diário do hospício e O cemitério dos vivos enquanto enunciados é resgatar sua história de constituição e construção numa grande temporalidade, é tentar refazer a cadeia textológica do campo literário na relação com outros autores, outros enunciados e também na sua relação com outros campos, a exemplo do científico. Assim, na nossa investigação, colocamo-nos no evento social da interação verbal e passamos a dialogar com autores e enunciados sem os quais seria extremamente difícil pensar as questões da polêmica numa abordagem dialógica. Diário do hospício narra as vivências da segunda internação de Lima Barreto, do dia 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920, no Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. As primeiras anotações datam de quatro de janeiro de 1920. Nas edições de 1956, 1993, 2004 e 2010, o diário tem dez capítulos. O primeiro, cuja inscrição data de 04 de janeiro de 1920, narra a recepção no hospício, o primeiro banho coletivo e nu, fala de suas consultas com os médicos Adauto Botelho, Henrique Roxo e Ayrosa; da visita que recebeu do irmão e do senhor Ventura no dia 28 de dezembro de 1919; também comenta seu encontro com Juliano Moreira, à época, diretor do Hospício Nacional. No segundo capítulo, comenta sua entrada e experiência na seção Calmeil, que ocorreu numa segunda-feira, dia 29 de dezembro de 1919, a falta de livros na biblioteca (para ele, houve um desfalque), sua consulta com Humberto Gottuzo, médico elogiado por ele, e reflete sobre seu vício. No terceiro, reflete sobre as causas que o colocaram no Hospício Nacional, revela a leitura da obra de Henry Maudsley, O crime e a loucura, livro que leu em francês e que o impressionou bastante, fazendo-o elaborar um decálogo para o governo de sua vida, elenca os problemas que acabaram provocando sua internação no dia 25 de dezembro de 1919: confessa que iniciou o consumo de bebida alcoólica por meio da cerveja; depois, pela falta de dinheiro, passa a beber cachaça – “parati” –, a qual ele “bebia desbragadamente” (BARRETO, 2010, p. 61); fala da decepção com a recepção apática de seu primeiro livro, Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909; narra o episódio em que cai de tão bêbado que estava, circunstância na qual, estando na companhia de V. (Joaquim Vilarinho)[1] recebeu ajuda de uma terceira pessoa: uma mulher mandou que sua empregada fosse oferecer-lhe um vaso de éter e recomendar ao senhor V. que levasse o escritor para casa com cuidado. Além disso, aborda os hábitos de higiene íntima e pessoal: “Não me preocupava com meu corpo. Deixava crescer o cabelo, a barba, não me banhava a miúdo.” (BARRETO, 2010, p. 63). Ainda neste terceiro capítulo, comenta o estado deplorável em que era encontrado quando acordava depois de ter passado a noite em capinzais e dos roubos que sofria. Revela que faltava à repartição onde trabalhava semanas e meses. Descreve a crise que teve em 1919 e que culminou na sua internação. No quarto capítulo, Lima Barreto conta-nos de sua experiência entre os loucos; confessa que leu algumas coisas sobre a loucura e que conversou com estudantes e médicos que se dedicavam ao estudo da alienação mental; narra o caso o louco F. B. e descreve seu comportamento perante os outros lunáticos e os funcionários do hospício (guardas, enfermeiros, médicos); narra o encontro com V. de O., que lhe deixa bastante impressionado, narra o caso do “louco bacharel” e do “louco engenheiro”; fala ainda do louco que jogava bilhar com um médico, de O., que explicava aritmética. No quinto capítulo, dedica-se aos casos dos loucos silenciosos: fala da relação entre loucos e enfermeiros; informa que, entre os enfermeiros, havia estrangeiros, especialmente portugueses e espanhóis; diferencia bons e pacientes enfermeiros dos maus, “que não prestam”, entre esses últimos, especificamente os particulares, levados para dentro do hospício pelos “doentes abastados” (BARRETO, 2010, p. 80); descreve aspectos da vida no hospício, de seu cotidiano, como os namoros entre os enfermeiros e as enfermeiras. Refere-se ao mau tratamento conferido pelos guardas aos loucos; confessa dores e angústias, vontade de ter outra vida, fala das humilhações pelas quais passou no hospício. Neste capítulo, aparecem ainda nomes de personagens fictícios, como Tito Flamínio, e fragmentos de ficcionalização. Ainda neste quinto capítulo, o autor relata o suicídio de um doente acontecido no Pavilhão de Observação, que, segundo nota de Massi e Moura (2010, p. 84), “Os jornais noticiaram o suicídio em 17 de janeiro de 1920. Ernani da Costa Couto, 22 anos, havia sido internado na véspera. A mesma ideia sempre rondou Lima Barreto: “Desde menino, eu tenho a mania do suicídio”, anotou em seu Diário íntimo, em 16 de julho de 1908.” No capítulo sexto, o autor, já no início, fala da leitura de Plutarco. Depois disso, censura os parentes que o internaram no hospício e a ilegalidade da polícia, que os ajudou. Fala dos casos dos uxoricidas que há no hospício e também dos que aparecem nos jornais. Em seguida, discute, brevemente, se a loucura é contagiosa ou não, volta a falar da presença de loucos assassinos, não necessariamente uxoricidas, no hospício e dos hábitos dos loucos. No capítulo sétimo, Lima Barreto fala do dia de São Sebastião, das paisagens que avista a partir do hospício e do tédio que o acompanha nesse momento. Escreve sobre as desventuras da vida, da falta de dinheiro. Nesse dia, o cotidiano do hospício seria diferente, marcado por atividades distintas das dos dias comuns, mas que são interrompidas por um surto de D. E., um dos internados. No capítulo oitavo, Lima Barreto fala da biblioteca do hospício e de um desfalque que constata em seu acervo ao compará-lo com o de cinco anos atrás, quando esteve internado pela primeira vez num hospício, de agosto a outubro de 1914. Lembra as experiências de leitura das obras de Júlio Verne, o que lhe remete à infância. Volta a tratar do seu desejo de morte e de sua incapacidade para buscá-la. Revela que deixa de frequentar a biblioteca por causa das provocações dos loucos. Volta a falar da leitura de Plutarco. Refere-se à dificuldade que enfrenta quando sua atividade é a leitura. Descreve seu dormitório e seus colegas de quarto. Faz referência a episódios de conflitos entre os internos. Ainda neste capítulo, reproduz os poucos e curtíssimos diálogos com alguns loucos. No nono capítulo, o autor continua descrevendo colegas de dormitório. Compara o hospício com outro estabelecimento de saúde por onde passou e onde também ficou internado. Fala da visita de um fiscal do governo e de seus efeitos no cotidiano e na rotina do hospício. Nesse episódio, os pacientes apresentam queixas e denúncias, insatisfações, fazem cobranças; Lima revisa algumas representações. Mais uma vez, volta ao caso de V. O./V. de O. A partir do que expomos, podemos dizer que, ao longo de todo o texto, é descrito e narrado o cotidiano no interior do hospício: as situações de humilhação no banho coletivo; as consultas com os psiquiatras e as impressões sobre cada um deles; reflexões acerca da loucura e da psiquiatria, a convivência diária com os outros internados, com os guardas e enfermeiros; as mudanças de uma seção para outra; a arquitetura do hospício e de seu entorno geográfico; momentos de tédio; afeição a um ou outro doente; momentos de melancolia, tristeza; o encontro com os livros da biblioteca do hospício. Por fim, no décimo capítulo, é apresentada uma série de notas que, segundo os editores (MASSI; MOURA, 2010), foram desenvolvidas tanto em Diário do hospício quanto em O cemitério dos vivos. O cemitério dos vivos é um romance inacabado de Lima Barreto, elaborado em 1920 e em 1921, cujos originais, assim como os de Diário do hospício, se encontram na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Em 1921, a Revista Souza Cruz, nº 49, publicou suas páginas iniciais com o título As origens (MASSI; MOURA, 2010, p. 142). Junto com Diário do hospício, teve cinco edições. Desde sua primeira publicação em livro, feita pela editora Mérito, em 1953, aos cuidados de Francisco de Assis Barbosa, essa narrativa tem despertado o interesse de pesquisadores, editores, críticos e leitores em geral. De suas edições, temos notícia dessa primeira, de 1953 e de quatro outras edições. A segunda delas ocorreu em 1956, feita pela editora Brasiliense, com prefácio de Eugênio Gomes. Em 1993, veio a público uma organização feita por Maria Lúcia M. de Oliveira, Diva Maria D. Graciosa e Rosa M. de Carvalho Gens para a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, sob o título de Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Uma quarta edição foi publicada em 2004, pela editora Planeta, com prefácio de Fábio Lucas, e organização e notas de Diogo de Hollanda. E uma quinta, e última edição, com organização e notas de Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura, publicada em 2010 pela editora Cosac Naify, também com o título de Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Como vemos, tratamos de textos com uma história singular. O segundo que apresentamos teve suas primeiras páginas publicadas numa revista em 1921, trecho cujos manuscritos se perderam; não foi publicado inteiramente com seu autor vivo; esse autor não cuidou sequer de uma primeira edição da obra, nem a concluiu; seus manuscritos são de difícil trato, dadas as condições em que foram escritos – quando Lima Barreto ainda estava internado no Hospício Nacional de Alienados. Além disso, passou por cinco edições, todas póstumas e com intervalos de tempo relativamente longos: de 1956 a 1993, são nada mais nada menos que 37 anos. Também a primeira demorou a ser publicada, 31 anos. O que é bastante significativo, se considerarmos que o trabalho de editar um texto também inclui processos de interpretação (e influencia a construção da autoria?). Isso nos permite dizer que Diário do hospício e O cemitério dos vivos passaram pelas mãos de leitores-editores os mais diversos, que lhes tiraram elementos ou lhes acrescentaram, o que, do ponto de vista de uma abordagem bakhtiniana, faz toda a diferença no processo de construção de sua autoria. Não tanto pela quantidade de edições, mas, sobretudo, pelo fato de a obra não ter recebido acabamento de Lima Barreto para publicação. Outro dado a ser considerado é o fato de O cemitério dos vivos vir, desde 1956[3], antecedido apenas de Diário do hospício, que, segundo a edição de 1993 (organizada para a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro), seriam “anotações para O cemitério dos vivos”. É tão recorrente, nas várias edições da obra, Diário do hospício anteceder O cemitério dos vivos e ser considerado um “enunciado-rascunho” do segundo, que Alfredo Bosi (2006, p. 322), em sua História concisa da literatura brasileira, chega a afirmar que A obra, coligida postumamente, apresenta-se dividida em duas partes: a primeira contém o diário do escritor relativo à sua estada no casarão da Praia Vermelha (do Natal de 1919 a 2 de fevereiro de 1920); a segunda, que é propriamente o romance, constitui-se do esboço de uma tragédia doméstica cujos fragmentos alternam com as memórias da vida no hospício. Afirmação que torna possível a compreensão de que Diário do hospício e O cemitério dos vivos fariam parte de uma mesma obra ou romance, como A terra, O homem e A luta compõem Os sertões, de Euclides da Cunha (1902). Posicionamento do qual discordamos, embora, por questões de espaço, não discutiremos no âmbito deste artigo. O cemitério dos vivos é formado por cinco capítulos, que, mesmo inacabado, por conta da morte de seu autor (lima-autor-pessoa) em novembro de 1922, narra a história de Vicente Mascarenhas a partir do diálogo com o texto de Diário do hospício, insistentemente chamado de “primeira parte” nas edições e pela crítica especializada – a esse respeito ver Lucas (2004) e Bosi (2010). A singularidade a que nos referimos mais acima reside também no fato de O cemitério dos vivos (arte, literatura) ter sido escrito num diálogo estreito com Diário do hospício (vida). Na constituição de nosso corpus, estamos diante, portanto, do encontro entre a vida e a arte, como nos mostram Volochínov e Bakhtin no texto fundante Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica, de 1926. Nesse romance inacabado de Lima Barreto, lemos a história de Vicente Mascarenhas, nossa personagem protagonista, que é, também, nosso narrador. Vicente Mascarenhas é um jovem rapaz de mais ou menos 17 anos de idade, canhestro e tímido, que, apesar de ter vivido fora do ambiente doméstico, em internatos, no meio de meninos e rapazes desenvoltos, nunca foi dado à sociabilidade feminina. Inábil para tratar com damas, ainda que tivesse uma irmã, nunca havia namorado. Como não sabia lidar com mulheres e moças, das situações com elas, saía aborrecido. Mascarenhas é também um leitor: lia José de Alencar, Macedo, Manuel de Almeida, Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Castro Alves, Gonzaga, Bilac, Júlio Verne, Miguel de Cervantes. Também tem o hábito de pensar depois que age, de julgar a si mesmo, é dado a autoavaliações morais. Autodenomina-se ainda como positivista (BARRETO, 2010). Ao chegar ao Rio de Janeiro, com mais ou menos 17 anos, vai morar, por indicação de um amigo, na pensão de dona Clementina Dias, viúva, mãe de três filhos, dois rapazes e uma moça. Esta, um pouco mais jovem que Mascarenhas. É com ela que ele se casará, a pedido da viúva, e terá um filho. A narrativa começa com dona Efigênia no leito de morte pedindo a Vicente que desenvolva “aquela história da rapariga, num livro.”; um conto que ele começara a fazer antes de casar-se com ela. Já a partir do segundo capítulo, e nos seguintes, nossa personagem narra seu ingresso no hospício e as experiências vividas na sua passagem por ele: conversas com pacientes dos mais diversos tipos; consultas com médicos (psiquiatras, alienistas); sua relação com enfermeiros, guardas, funcionários em geral; suas impressões a respeito da arquitetura do hospício e de sua história, dos loucos, dos psiquiatras e da loucura. 4 Na berlinda, literatura e ciência Não só em Diário do hospício e O cemitério dos vivos há indícios das polêmicas (Lima x literatura de prestígio, Lima x ciência psiquiátrica), mas em outros momentos de sua produção. Em outro trabalho, analisamos, a partir da polêmica com a ciência, o processo de constituição do ethos discursivo em As teorias do doutor Caruru, de Lima Barreto[2]. Nesse artigo, compreendemos os mecanismos de funcionamento do discurso literário, refletimos sobre o discurso literário como discurso constituinte e analisamos as estratégias discursivas de deslegitimação do discurso científico. O doutor Caruru da Fonseca é ridicularizado enquanto metonímia da ciência do início ao fim da crônica. Essa crítica segue acompanhada de outras: como a crítica a um certo projeto de nação, ao modelo de língua ou de uso da língua e à chamada “cultura do doutor”. Ao analisar a crônica de Lima Barreto A Universidade, Matias (2007, p. 58) escreve que, nessa crônica, O cronista tece ainda considerações a respeito do que denomina de “superstição doutoral”, que implica a reserva das oportunidades para dirigentes em empresas, como Lloyd, os Correios e Telégrafos e da Central do Brasil (sic), destinadas aos engenheiros, fixando uma estranha compulsão pela “doutomania”. (BARRETO, 1956a, p. 120). Já àquela época, o cronista identificava que a universidade estava mais para funcionar como um trampolim dos doutores para alcançar os privilégios dos cargos públicos ou privados, do que para compor um quadro de ensino superior adequado à realidade brasileira. A maneira pela qual esta “doutomania” se revela freqüentemente é o vezo pela oratória dos doutores, que se apropriam das mais fugazes oportunidades para deitarem falação sobre os mais variados assuntos. Entretanto, se, em As teorias do doutor Caruru, Lima posiciona-se contrariamente à ciência que se praticava na época e também discute, mesmo que tangencialmente, a língua e seu uso, como, aliás, demonstramos no artigo a que nos referimos, em Os samoiedas, o alvo é a literatura de prestígio, com quem o embate é diretamente travado. É a isto que se presta este tópico: a partir da retomada da análise da constituição do ethos discursivo do doutor Caruru da Fonseca e de uma breve análise de Os samoiedas, texto retirado do livro de sátiras Os bruzundangas (2000 [1923]), de Lima Barreto, apresentar o posicionamento que esse autor assume no campo literário das duas primeiras décadas do século XX, momento de sua produção. Essa retomada e essa breve análise nos auxiliarão na análise da bivocalidade polêmica em O cemitério dos vivos, a partir de dois fragmentos que consideramos representativos da relação estabelecida/construída com o discurso outro, o da ciência e o da literatura de prestígio. Antes, porém, temos de deixar claro para nosso leitor que as polêmicas que ora analisamos não são novidade para aqueles que se debruçam sobre a obra de Lima Barreto. Como exemplos, podemos citar as reflexões de Mauro Silva (1999) em Confrontos linguísticos no Pré-Modernismo brasileiro: Lima Barreto versus Coelho Neto e Lima Barreto e Coelho Neto: divergências literárias na literatura brasileira da passagem do século; Lenivaldo Gomes de Almeida (2006) em Um autor em procura de uma alma: a crise da representação e a dimensão trágica em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá; José Luiz Matias (2007) em Vida urbana, Marginália, Feiras e mafuás: a modernidade urbana nas crônicas de Lima Barreto; Fabiana Delana Viegas Galindo (2007) em A polifonia nas crônicas de Lima Barreto; Regina Célia Ramalho (2007) em A língua e a história no conto literário de Lima Barreto; André Luiz dos Santos (2007) em Caminhos de alguns ficcionista brasileiros após as Impressões de leitura de Lima Barreto; Marta Rodrigues (2007) em Entre a crítica e a paixão: os discursos do narrador e do protagonista em Triste fim de Policarpo Quaresma; Carlos José Bertolazzi (2008) em Lima Barreto: representações, diálogos e trajetórias literário-culturais; Zélia Ramona Nolasco dos Santos Freire (2009) em A concepção de arte em Lima Barreto e Leon Tolstói: divergências e convergências; Deysiane Farias Pontes (2009) em A tradição intelectual do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto; André Luiz Dias Lima (2009) em Lima Barreto e Dosloiévski: vozes dissonantes; Alice Atsuko Matsuda (2009) em Presença do pensamento utópico nos discursos de Lima Barreto; Paulo Alves (2009) em A farpa e a lira: uma análise socioliterária a partir de Cruz e Sousa e Lima Barreto; Jackson Diniz (2010) em Identidade negra e modernidade na obra de Lima Barreto. Todos esses estudos fazem referência a polêmicas travadas entre Lima Barreto e os escritores realistas, naturalistas, parnasianos, simbolistas, principalmente àquela que, talvez, tenha sido a mais intensa, àquela travada com Coelho Neto, autor de Inverno em flor (1897). Além desses estudos indicados no parágrafo anterior, também Alfredo Bosi (2006 [1970]), em História concisa da literatura brasileira, alude à polêmica entre Lima Barreto e Coelho Neto. Em várias passagens de sua obra, Lima Barreto se refere ao estado da literatura, a Coelho Neto, conforme os fragmentos que seguem: Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma cousa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias… (BARRETO, 1956, p. 191) O senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual. […] Os estudos do senhor Coelho Neto sempre foram insuficientes; ele não viu que um literato, um romancista não pode ficar adstrito a esse aspecto, aparente de sua arte; ele nunca teve a intuição de que era preciso ir mais além das antíteses e das comparações brilhantes. (BARRETO, 1956b, p. 189) Em um século de crítica social, de renovação latente das bases das nossas instituições; em um século que levou a sua análise até os fundamentos da geometria, que viu pouco a pouco desmontar-se o mecanismo do Estado, da Legislação, da Pátria, para chegar aos seus elementos primordiais de superstições grosseiras e coações sem justificações nos dias de hoje; em um século deste, o Senhor Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico, um contemplativo, magnetizado pelo Flaubert da Mme Bovary, com suas chinesices de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita, e sempre fascinado por uma Grécia que talvez não seja a que existiu mas, mesmo que fosse, só nos deve interessar arqueologicamente. (BARRETO, 1956a, p. 75) Em anos como os que estão correndo, de uma literatura militante, cheia de preocupações políticas, morais e sociais, a literatura do Senhor Coelho Neto ficou sendo puramente contemplativa, estilizante, sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro. (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 76). A missão da literatura é fazer comunicar umas almas com as outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando desse modo a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para conquista do planeta e se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade. (Histrião ou literato? 15/02/1918. V. I. p. 319) O deputado [Coelho Neto] ficou sendo o romancista que só se preocupou com o estilo, com o vocabulário, com a paisagem, mas que não fez do seu instrumento artístico um veículo de difusão das grandes idéias do tempo, em quem não repercutiram as ânsias de infinita justiça dos seus dias; em quem não encontrou eco nem revolta o clamor das vítimas da nossa brutalidade burguesa, feita de avidez de ganho, com a mais sinistra amoralidade para também edificar, por sua vez, uma utopia ou ajudar a solapar a construção social que já encontrou balançando. (BARRETO, 1961e, p. 76). Nesses fragmentos, temos indícios da relação de alteridade entre Lima Barreto e Coelho Neto, entre dois posicionamentos no interior do campo literário. Também podemos perceber, nesses trechos, por meio da sugestibilidade das passagens, duas polêmicas: uma, velada; e outra, aberta. Assim, compreendemos que, quando Lima trata explicitamente da literatura coelhonetana, trata-a polemicamente, tensamente, o que nos leva a pensar que estamos diante de uma polêmica aberta. Além disso, as formações verbo-axiológicas de Lima, que marcam um posicionamento na dinâmica do campo literário, alude, polemicamente, a outras formações verbo-axiológicas. É nesse diálogo com Coelho Neto que não está marcado e delimitado apenas no conteúdo do que é dito, mas também na forma como o que é dito é dito, no tom, no estilo construído nas relações estabelecidas com o outro – outro discurso, outro sujeito –, que as polêmicas vão sendo construídas na esfera literária. Diante disso, podemos ouvir Bakhtin (2010, p. 287) quando, ao comentar as relações dialógicas na obra de Dostoiévski, afirma que “uma ideia é evidente, determina o conteúdo do discurso, a outra é velada, contudo, determina a construção do discurso lançando sobre ela a sua sombra.” É com base nesse pensamento bakhtiniano que entendemos o discurso limaberretiano, nesses fragmentos apresentados, como um discurso duplamente polêmico, sua contestação não se dá apenas nos enunciados enquanto afirmações, conteúdos, críticas endereçadas diretamente a Coelho Neto e, por tabela, aos escritores parnasianos e ao parnasianismo enquanto movimento estético-ideológico, mas se dá também na sua construção, no seu estilo, nas suas formações verbo-axiológicas. Aqui, é importante ressaltarmos que a construção desse posicionamento limabarretiano se dá na dialogia que há entre a construção, o estilo e o próprio posicionamento, sempre responsivo. Algo semelhante é encontrado em Os bruzundangas. Logo no início do livro, na primeira sátira, lemos: Queria evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado. Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais: idéias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dous séculos ou três. Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito. (…) Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis o volume. Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia. São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por “expoentes” e não há moça rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar. O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por “Escola Samoieda”. Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. (BARRETO, 2000 [1923], p. 8-12) Embora os nomes de escritores e poetas não estejam escritos, materialmente enunciados, no tecido dessa crônica, quando a lemos, atualizamos sentidos que aludem, de alguma forma, ao debate no campo da atividade literária. É dessa sugestão advinda da alusão provocada pela atualização dos sentidos, processo inerente à vida do enunciado concreto, que, de maneira refletida e refratada, podemos perceber, ainda por meio do diálogo com o que foi dito antes, mais uma vez as “alfinetadas” ao posicionamento de uma literatura tradicional, conservadora, purista, “douta”, sobretudo por meio das formações verbo-axiológicas construídas tanto nas crônicas de Lima Barreto quanto em Os samoiedas. 5 A bivocalidade polêmica em Diário do hospício Como essa dupla polêmica aparece em Diário do hospício, de Lima Barreto? Para respondermos a essa pergunta e, por conseguinte, alcançarmos o objetivo que propomos neste artigo, selecionamos dois fragmentos de Diário do hospício. A seleção a que procedemos se justifica no fato de tais fragmentos nos darem as condições necessárias para analisarmos a polêmica com a literatura de prestígio da época e com a ciência psiquiátrica. Senão, vejamos: Sentei-me ao lado de um preto moço, tipo completo do espécime mais humilde da nossa sociedade. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço e calçava uns chinelos muito sujos, que tinha descoberto no porão da varanda. Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério — que mistério! — que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele. Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício. Creio que ele não gostou. (BARRETO, 2010, p. 46-47) Esperei o médico. Era um doutor Airosa, creio eu ser esse o nome, interrogou-me, respondi-lhe com toda a verdade, e ele não me pareceu mau rapaz, mas sorriu enigmaticamente, ou, como dizendo: “você fica mesmo aí” ou querendo exprimir que os meus méritos literários nada valiam, naturalmente à vista das burrices do Aluísio. Fosse uma coisa, fosse outra, fossem ambas conjuntamente, não me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no caso dele, eu talvez pensasse da mesma forma. (BARRETO, 2010, p. 48-49) Outra coisa que me fez arrepiar de medo na Seção Pinel foi o alienista. Se entre nós, no Rio, houvesse uma universidade, eu poderia dizer que ele havia sido meu colega, porquanto, quando ele freqüentava a Escola de Medicina, eu passeava pelos corredores da Escola Politécnica. Nunca travamos relações, mas nós nos conhecíamos. Ele, porém, não se deu a conhecer e eu, no estado de humilhação em que estava, não devia ser o primeiro a me dar a conhecer. Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante de novidades, do vient de paraitre, das últimas criações científicas ou que outro nome tenham. (BARRETO, 2010, p. 55-56) Nesses excertos, vislumbramos as críticas ao doutor, ao médico. Se, em outros discursos, o médico e seu discurso seriam ovacionados, bajulados ou algo do gênero, no discurso limabarretiano, o médico e seu discurso aparecem, no jogo das vozes sociais, criticado. Se, na época, havia discursos defensores da “cultura do doutor”, que conferia aos magistrados, engenheiros e médicos grande prestígio social, em Diário do hospício, não é isso o que acontece. Lima, como fizera em Os bruzundangas, subverte a relação com os discursos de prestígio do cronótopo que integra e constitui. Ao fazer isso, na relação com outros discursos, outras esferas, ele reflete e refrata posicionamentos assumidos por pacientes diante de médicos, de loucos diante de psiquiatras. É nesse momento também que, estando o discurso do autor orientado para o objeto – a relação eu-outro, paciente-médico –, como qualquer outro discurso, “qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Por isso, precisamos retomar o discurso do outro sobre o mesmo assunto e sobre o mesmo objeto. É Luzia de Maria (2005), em Sortilégios do avesso: razão e loucura na literatura brasileira, quem afirma que […] pode o texto de Coelho Neto ser lido como porta-voz do discurso científico. A psiquiatria nascente no Brasil do final do século [XIX], o saber da ciência exigindo seu espaço entre os assuntos em voga e a figura do médico assumindo o papel de controlador da saúde social, deram (sic) a Coelho Netto (sic) subsídios para a elaboração do romance Inverno em flor. Aqui, a literatura afirma o saber médico. (MARIA, 2005, p. 149) O que estamos dizendo, em outras palavras, é que, embora trate do discurso médico, da psiquiatria das duas primeiras décadas do século XX, o discurso de Lima em Diário do hospício “se choca no próprio objeto com o discurso do outro” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Podemos fazer um pequeno deslocamento e pensar que no próprio objeto o discurso do autor se choca com os discursos, com as vozes sociais de vários outros. No nosso caso específico, podemos constatar que entre esses vários outros discursos com os quais se choca o discurso de Lima está a voz de Coelho Neto em Inverno em flor, refletido/refratado pela leitura de Maria (2005). Mais do que isso: ao considerar o que Lima afirma sobre a literatura de Coelho Neto e sobre seu posicionamento no campo literário, podemos dizer que seu discurso se choca com o dele (Coelho Neto) ao elaborar narrativas que tratam de temas como a loucura, a psiquiatria nascente no início do século XX, aqui no Brasil, e da relação paciente-médico. Não por coincidência, Morson e Emerson (2008, p. 153), a partir da leitura que fazem da obra de Bakhtin e do Círculo, afirmam que Todas as vezes que falamos, respondemos a algo já falado antes e tomamos uma posição com respeito a enunciados anteriores sobre o tópico. O modo como percebemos esses enunciados anteriores – como hostis ou simpáticos, peremptórios ou frágeis, social ou temporalmente fechados ou distantes – molda o conteúdo e o estilo do que dizemos. Percebemos esses enunciados alheios no próprio objeto. É como se o objeto fosse revestido por uma espécie de cola que lhe preserva as caracterizações anteriores. São esses elementos e essas relações dialógicas que nos dão condições concretas de analisar a bivocalidade polêmica em Diário do hospício. Então, onde estaria a polêmica velada entre Lima Barreto e os outros literatos? Retomemos, rapidamente, o que dissemos antes sobre essa modalidade de polêmica, na qual “[…] a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere […]” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Quando Lima Barreto escreve suas obras literárias, a sua textualidade, o seu enunciado, não é um enunciado feito conforme os padrões estéticos dos parnasianos, simbolistas ou neoparnasianos, neossimbolistas. Ao construir seus enunciados mais próximos à linguagem comum dos leitores comuns, ele se distancia das construções verbo-axiológicas dos escritores hegemônicos de sua época. Aí já há a polêmica velada, porque, se ele não polemizasse, talvez os enunciados fossem construídos conforme os padrões parnasianos, simbolistas, do academismo tradicional cujos princípios ideológicos orientavam o fazer da literatura de prestígio do momento. Observemos que a palavra do outro não está explícita no enunciado limabarretiano, mas ele escreve em resposta a esse outro, polemizando com ele, com esse outro. Embora tenha influenciado a enunciação, o enunciado do autor Lima Barreto, a palavra do outro não está, explicitamente, “lá”, “[…] aqui a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação, mas age, influi e determina a palavra do autor, permanecendo ela mesma fora desta […]” (BAKHTIN, 2010, 224); mas, de alguma forma, Lima responde. Isso seria uma espécie de réplica dialógica, em que “[…] o interlocutor, ao orientar seu discurso para o objeto de sentido, reage ao discurso do outro, reelaborando-o […]”. (BAKHTIN, 2010, p. 225), o que podemos perceber tanto em Os bruzundangas quanto em Diário do hospício. Isso seria também uma espécie de refração, aí há uma refração discursiva. Assim, “[…] quando a refração discursiva não ocorre por meio desse objeto […]”, isto é, quando a refração discursiva acontece sem esse caráter velado, quando os elementos de um outro, de um discurso outro, estão explícitos, temos a bivocalidade polêmica, que “[…] se constitui pela tomada da palavra do outro como base de contestação.” (VELOSO, 2011, p. 46), o que configura o que estamos entendendo por polêmica aberta. Na polêmica aberta, os “[…] contornos linguísticos do discurso refutado emergem de modo evidente na fala do autor, por meio, por exemplo, do discurso citado indireto, nomeação, uso de advérbios de negação, conjunções adversativas […]”. (VELOSO, 2011, p. 47). Então, se, na polêmica velada, elementos enunciativos, linguísticos, do discurso do outro, isto é, as formações verbo-axiológicas do discurso do outro não estão presentes, mas a maneira de enunciar é uma resposta à maneira do outro enunciar, agora, com a presença dos elementos outros, isto é, do outro, elementos linguístico-ideológicos, temos a conformação de uma polêmica aberta. Convém lembrarmos que, no pensamento do Círculo, o signo é sempre ideológico, é a arena da luta ideológica, tem duas propriedades, as de refletir e refratar a realidade. Na refração do real, está um aspecto criativo, é aí que a linguagem consegue (re)criar essa realidade de alguma forma. Desse conceito de refração do signo, partimos para a derivação do conceito de refração discursiva, que acontece quando o discurso sofre alterações de acordo com a esfera de circulação, gêneros discursivos, interlocutores etc. Ao mesmo tempo, os reflexos estão no domínio das relações dialógicas e da palavra bivocal. Assim, Lima Barreto como autor dialoga com outros autores literários de sua época e com o discurso da ciência, com os autores da ciência. E aqui ciência e literatura constituem esferas da atividade humana. Esse diálogo, no entanto, não é, necessariamente, consensual; às vezes, como nesse caso, é a dissensão, a discordância, a polêmica que ocorrem. Não consideramos, desse modo, apenas a potencialidade semântica da língua, mas que a construção do sentido se dá, de maneira dialógica, entre sujeitos situados sócio-historicamente. Por isso, não consideramos apenas os valores linguísticos das palavras e dos enunciados. O discurso bivocal acontece quando, de alguma forma, os discursos se tangenciam, mas,“[…] se ambos os discursos não se tangenciarem em uma relação semântica que seja consonante ou dissonante, esse discurso não será bivocal, mas apenas objetivado, como nos diálogos dramáticos.” (VELOSO, 2011, p. 46). Nesse sentido, pautando-nos em Bakhtin (2010), podemos dizer que os discursos bivocais são aqueles que se tangenciam numa relação semântica de concordância ou de discordância. No nosso caso, essas relações nos põem diante das polêmicas. Isso não significa que a concordância estaria, por exemplo, para a polêmica velada e que a discordância estaria para a polêmica aberta. Não; há um tangenciamento; nesse tangenciamento, vemos a polêmica emergindo, e, na sua emergência, ela pode ser aberta ou velada. Então, na polêmica velada, “a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere” (BAKHTIN, 2010, p. 223). É o que vemos no fragmento de Os bruzundangas, que citamos no item 4 para constatarmos como o autor constrói a relação com a esfera literária e, por conseguinte, com seus discursos hegemônicos. A literatura da época são as literaturas parnasiana e simbolista ou ainda neoparnasiana e neossimbolista. Escritores como Rui Barbosa, Olavo Bilac e Coelho Neto assumiam lugares de destaque no âmbito da literatura, exercendo grande influência, tanto ideológica quanto literária. Entretanto, sua atividade ideológica é contestada por Lima em seus textos, o que lhe rende as polêmicas que integrou e que construiu. 6 (In)Conclusão Assim, pautando-nos em Bakhtin (2010), podemos dizer que os discursos bivocais são aqueles que se tangenciam numa relação semântica de concordância ou de discordância. Dessa forma, em Diário do hospício, vislumbramos esse tangenciamento discursivo entre as vozes da literatura e da ciência, quando, em seu enunciado, o autor (Lima-autor-criador) reproduz a palavra de seu outro (médico/ciência) por meio do discurso citado indireto, da nomeação, isto é, quando a palavra do outro é tomada explicitamente como uma espécie de apoio para a contestação a ser construída pelo autor. Por outro lado, no âmbito da esfera da atividade literária, essa mesma escrita se apresenta como ato responsivo ativo à(s) fala(s) de outro(s): outros sujeitos, outros autores, escritores; aqui, fazemos referência ao fato de a escrita de Lima considerar a palavra do outro que, mesmo permanecendo fora dos limites de seu discurso, influencia, interfere na sua produção/constituição. Discurso esse que, polêmica e veladamente ao outro aludindo, adota um estilo peculiar que, por isso mesmo, contesta o estilo do outro. Os fragmentos de Diário do hospício, objeto de nossas reflexões, bastam para percebermos que Lima-autor-criador estabelece uma polêmica explícita, aberta, com o discurso da medicina, especificamente, com o da psiquiatria. Quer dizer, constantemente, questiona o discurso médico: “Que médico é esse, que lê bastante, mas não consegue entender a alma humana? Que médico é esse, que parece mais acuado do que eu?” Então, ao mesmo tempo em que Diário do hospício é escrito numa linguagem mais próxima à linguagem comum das gentes da época, são enunciados que contestam a postura médica, psiquiátrica dentro do hospício. A partir disso, podemos dizer que, no mesmo texto, no mesmo enunciado, temos uma dupla orientação da palavra, uma polêmica velada em relação à escrita acadêmica, convencional, parnasiana, simbolista; quer dizer, ele se posiciona do lado oposto dos parnasianos, academicistas, conservadores, pelo tipo (estilo) de enunciado que ele escreve, e ele se posiciona, abertamente, do lado oposto da psiquiatria da época, questionando: “que psiquiatria é essa?” Referências ALMEIDA, L. G. Um autor em procura de uma alma: a crise da representação e a dimensão trágica em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2006. 134 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 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[2] Um esquema inicial e bastante preliminar deste artigo foi apresentado na comunicação A bivocalidade polêmica em O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, no XVIII Congresso Internacional da ABRALIN, em Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 2013. Uma segunda comunicação de mesmo título, mas com o acréscimo de outras reflexões, leituras e discussões, foi apresentada no IV Encontro em Análise do Discurso, em Araraquara, São Paulo, em agosto de 2013. [3] Uma primeira versão deste artigo foi desenvolvida como requisito de avaliação na disciplina Análise do discurso e violência: múltiplos olhares, ministrada pela professora Marina Célia Mendonça no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp, campus de Araraquara. [4] O que recebe, neste artigo, o status de “introdução” foi submetido, numa versão ampliada, como resumo para inscrição no IV Encontro em Análise do Discurso. Convém deixar claro, no entanto, que seu conteúdo está de acordo com nossos propósitos para este artigo. [5] Parte deste tópico está publicada em Melo (2014). [6] Em Problemas da poética de Dostoiévski, os títulos dos capítulos são, respectivamente, do primeiro ao quinto: O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária; A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski; A ideia em Dostoiévski; Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski; O discurso em Dostoiévski. (BAKHTIN, 2010) [7] Com isso não estamos defendendo que Coelho Neto seja parnasiano, mas que o discurso parnasiano, independente de Coelho Neto sê-lo ou não, estava num outro lugar da esfera de atividade literária que não era, definitivamente, o de Lima Barreto, mas que se relaciona com o discurso de Lima, constituindo-o pela alteridade e também nela se constituindo. [8] Uma primeira versão, reduzida e ainda imatura, deste item compõe o artigo A constituição do Autor-criador em O cemitério dos vivos, de Lima Barreto: reflexões iniciais, que foi publicado nos anais do II Encontro de Estudos Bakhtinianos, realizado na UFES, no período de 12 a 14 de novembro de 2013. #bivocalidade #discursocitado #Estética #enunciação #gênero #enunciado #literatura #diálogo
- A bivocalidade polêmica em Diário do hospício, de Lima Barreto: fragmentos de uma análise prévia
José Radamés Benevides de Melo[1][2][3] 1 Introdução[4] Ao construir sua identidade de escritor literário, Lima Barreto passa a polemizar com a literatura de prestígio de sua época. Ao ser internado no Hospital Nacional dos Alienados, passa a polemizar com a psiquiatria então praticada. Isso não nos impede, no entanto, de dizermos que, mesmo tendo uma vida conturbada, ele deixou um grande legado, do qual se destacam Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Marcadamente dialógicos, esses enunciados estabelecem diálogos com diversas vozes sociais; dentre elas, as da literatura e as da ciência de sua época. É a partir da leitura de Diário do hospício e dos postulados teóricos do Círculo de Bakhtin, que estabelecemos o objetivo de investigação deste artigo: apresentar parciais de uma análise prévia da bivocalidade polêmica da narrativa em questão. Assim, para atingir esse objetivo, procedemos à análise: 1) da polêmica aberta estabelecida entre o discurso de Lima Barreto e o discurso da ciência psiquiátrica de sua época e 2) da polêmica velada entre a fala limabarretiana e outras falas literárias do início do século XX expressa, na relação forma-conteúdo, por meio de seus enunciados. Para proceder à análise ora proposta, os postulados teóricos do dialogismo e a noção de discurso bivocal (no que concerne às polêmicas aberta e velada), tal como apresentados por Bakhtin (2010), fundamentam a análise. 2 O discurso bivocal[5] Não é nosso objetivo, nesta seção, descrever e comentar todo o capítulo que Bakhtin dedica ao estudo do discurso em Dostoiévski, mas apenas aquilo que, por razões teóricas e analíticas, interessam ao desenvolvimento do que propomos neste artigo. Por isso, entendemos ser importante explicitar nossa compreensão do percurso feito pelo pensador russo que vai desde a assunção do ângulo dialógico até a definição de polêmica aberta e polêmica velada. Isso não quer dizer que, no momento das análises, quando for necessário, não recorreremos ao que é dito ao longo de todo o capítulo ou mesmo de outras obras do círculo, mas apenas que estamos situando nossas reflexões sobre o discurso bivocal considerando somente o que é dito sobre essa modalidade de discurso no trecho a ela dedicado por Bakhtin (2010) em Problemas da poética de Dostoiévski. Bakhtin dedica o quinto e último capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski à análise do discurso na obra do romancista russo. Intitulado O discurso em Dostoiévski, apresenta quatro seções, cujos títulos são, respectivamente, de 1 a 4: Tipos de discurso na prosa. O discurso dostoievskiano, O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski, O discurso do herói e o discurso do narrador nos romances de Dostoiévski e O diálogo em Dostoiévski. Ao longo do capítulo, Bakhtin realiza, como faz, aliás, em todo o livro, um minucioso estudo das relações dialógicas e de sua realização nas obras de Dostoiévski, especialmente nas novelas e nos romances[6]. O capítulo começa com uma pequena, mas fundamental, seção, cujo título é “Algumas observações metodológicas prévias”. É nessa seção que Bakhtin esclarece ao leitor que os princípios que orientam suas análises não são advindos da linguística nem da estilística, que, para ele, apresentavam limitações no que diz respeito às investigações do estilo, da paródia e do skaz. É também aí e por isso que ele situa suas reflexões no âmbito da metalinguística, “subtendendo-a como um estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística” (BAKHTIN, 2010, p. 207). Nesse ato de extrapolar os limites impostos pelos estudos linguísticos, Bakhtin assume o ângulo dialógico como princípio orientador e fundamental de suas reflexões e é ele mesmo quem o diz: Mas é precisamente esse ângulo dialógico que não pode ser estabelecido por meio de critérios genuinamente linguísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu estudo. As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da metalinguística. (BAKHTIN, 2010, p. 208) A assunção do ângulo dialógico leva Bakhtin a assumir as relações dialógicas como objeto de estudo e de pesquisa da metalinguística, o que já está posto na citação acima, mas que fica ainda mais evidente no fragmento que segue: Assim, as relações dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 209) No seu posicionamento frente à linguística, Bakhtin afirma que As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas e concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 209) Depois disso, no fim dessa breve seção, é-nos apresentado o objetivo do capítulo que ora comentamos: “O objetivo principal do nosso exame, pode-se dizer, seu herói principal, é o discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas condições da vida autêntica da palavra.” (BAKHTIN, 2010, p. 211). Nas linhas seguintes, Bakhtin apresenta uma distinção minuciosa de três tipos de discurso: o primeiro deles diz respeito ao “que nomeia, comunica, enuncia, representa –, que visa à interpretação referencial do objeto”; já o segundo é chamado de […] discurso representado ou objetificado (segundo tipo). O tipo mais típico e difundido de discurso representado e objetificado é o discurso direto dos heróis. Este tem significação objetiva imediata, mas não se situa no mesmo plano ao lado do discurso do autor, e sim numa espécie de distância perspectiva em relação a ele. Não é entendido do ponto de vista do seu objeto, mas ele mesmo é o objeto da orientação como discurso característico, típico, colorido. (BAKHTIN, 2010, p. 213-214) A esses dois tipos de discurso Bakhtin chama de discursos monovocais. Já o terceiro tipo de discurso é aquele em que “ocorrem duas orientações semânticas, duas vozes.” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Acrescenta ainda o pensador russo o seguinte: “As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais.” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Em sua complexa classificação, cujo princípio é a alteridade (relação com o discurso do outro), dos discursos bivocais, Bakhtin chega a três subtipos: 1) o discurso bivocal de orientação única; 2) o discurso bivocal de orientação vária; e 3) o tipo ativo (discurso refletido do outro). Nesse último subtipo, situam-se: a) a polêmica interna velada; b) a autobiografia e confissões polemicamente refletidas; c) qualquer discurso que visa ao discurso do outro; d) a réplica do diálogo; e) o diálogo. Assim se refere Bakhtin ao tipo ativo: “O discurso do outro influencia de fora para dentro; são possíveis formas sumamente variadas de inter-relação com a palavra do outro e variados graus de sua influência deformante.” (BAKHTIN, 2010, p. 229). Aqui, retomamos Estética da criação verbal para lembrar uma passagem de O autor e a personagem na atividade estética, em que, falando da forma espacial da personagem, Bakhtin afirma: De fato, nossa situação diante do espelho é sempre meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos a partir do outro; também aqui tentamos vivificar e enformar a nós mesmos a partir do outro; daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida. (BAKHTIN, 2011, p. 30) Podemos dizer que o que está dito nos comentários acerca do discurso bivocal (tipo ativo/discurso refletido do outro) em muito se assemelha ao ato de, estando sozinhos, olharmo-nos no espelho no intuito de nos autocontemplar. Inevitavelmente, o outro constituirá esse momento, mesmo que não esteja presente, que há pouco tenha se retirado do recinto, que há anos não tenha dado a graça de sua presença. O autocontemplar-se do sujeito é um ato atravessado pela alteridade, “daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida”. Assim acontece também com o discurso de tipo ativo (refletido do outro); embora o discurso do outro não esteja presente por meio de palavras, enunciados, acentos, tons, etc., embora no discurso do sujeito, esse discurso outro, a palavra do outro permaneça […] fora dos limites do discurso do autor, […] esse discurso [o do autor] a leva em conta e a ela se refere. Aqui, a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação, mas age, influi e de um modo ou de outro determina a palavra do autor, permanecendo ela mesma fora desta. Assim é a palavra na polêmica velada e, na maioria dos casos, na réplica dialógica. (BAKHTIN, 2010, p. 223-224) É nesse âmbito do discurso de tipo ativo que se situa a polêmica interna velada. Nessa polêmica, […] o discurso do autor está orientado para o seu objeto, como qualquer outro discurso; neste caso, porém, qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto. (BAKHTIN, 2010, p. 224) Neste ponto, poderíamos estabelecer uma relação no interior da esfera de atividade literária entre os escritos parnasianos, pensemos na Profissão de fé, de Olavo Bilac, quanto à literatura e em Inverno em flor, de Coelho Neto (1864-1936), quanto à literatura e à loucura, por exemplo, e os escritos de Lima Barreto. Inverno em flor funcionaria muito mais como um porta-voz do discurso da psiquiatria de sua época do que Diário do hospício, de Lima Barreto. Referindo-se à loucura e à psiquiatria, Lima, na dinâmica da esfera literária, se contrapõe ao posicionamento adotado por Coelho Neto em Inverno em flor, tanto no que diz respeito às formações verbo-axiológicas quanto no que se refere ao discurso que se faz sobre a loucura e a psiquiatria. O discurso de Lima não apresenta no seu interior réplicas dialógicas a intervenções que, por ventura, viessem de seu outro, por exemplo, de Coelho Neto. No entanto, esse outro discurso está apenas subentendido e, “orientado para o seu objeto (a literatura, a loucura, a psiquiatria), o discurso se choca no próprio objeto com o discurso do outro.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Como afirma Bakhtin (2010, p. 224), “este último não se reproduz, é apenas subentendido” a tal ponto que “a estrutura do discurso seria inteiramente distinta se não houvesse essa reação ao discurso subentendido do outro.” É ainda sobre essa modalidade de polêmica que Bakhtin (2010, p. 224) assevera que […] na polêmica velada o discurso do outro é repelido e essa repelência não é menos relevante que o próprio objeto que se discute e determina o discurso do autor. Isso muda radicalmente a semântica da palavra: ao lado do sentido concreto surge um segundo sentido – a orientação centrada no discurso do outro. De fato, não vemos, em Diário do hospício, as palavras, os enunciados, fragmentos do discurso parnasiano[7], mas podemos perceber que, em relação aos discursos hegemônicos que circulavam na esfera literária naquele momento, o discurso construído na narrativa de Lima Barreto, que aqui tomamos como corpus de investigação, não segue os princípios orientadores das formações verbo-axiológicas das obras parnasianas ou simbolistas. Em outras palavras, o discurso parnasiano é repelido, mas essa repelência é importante porque determina o discurso do autor, o que muda, como diz o próprio Bakhtin, radicalmente a semântica da palavra, já que ao lado de seu sentido concreto, surge um segundo sentido, que, aqui compreendemos, polêmico. Por isso, não podemos compreender de “modo completo e essencial esse discurso, considerando apenas a sua significação concreta direta. O colorido polêmico dos discursos manifesta-se em outros traços puramente linguísticos: na entonação e na construção sintática.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Quanto à distinção entre as polêmicas aberta e velada, Bakhtin (2010, p. 224) afirma que […] as diferenças de significação são muito consideráveis. A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é seu objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto. Ao desenvolver suas reflexões, Bakhtin afirma que a polêmica velada é muito comum tanto nos discursos do cotidiano quanto no discurso literário. Nesse último, exerce grande influência na formação do estilo, o que lhe confere imenso valor no âmbito do literário. É o que nos diz o próprio Bakhtin (2010, p. 225): No discurso literário é imenso o valor da polêmica velada. Há propriamente em cada estilo um elemento de polêmica interna, residindo a diferença apenas no seu grau e no seu caráter. Todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crítico, cujas objeções antecipadas, apreciações e pontos de vista ele reflete. Além disso, o discurso literário sente ao seu lado outro discurso literário, outro estilo. O elemento da chamada reação ao estilo literário antecedente, presente em cada estilo novo, é essa mesma polêmica interna, por assim dizer, dissimulada pela antiestilização do estilo do outro, que se combina com uma paródia patente deste. Por isso, compreendemos que, em Diário do hospício, é fundamental analisar as relações dialógicas (aberta e veladamente polêmicas) estabelecidas com outros discursos, enunciados, sujeitos de sua época. Tendo apresentado brevemente o tratamento dado por Bakhtin ao discurso bivocal, suas variantes e nuanças, tratemos dos enunciados Diário do hospício e O cemitério dos vivos. 3 Que enunciados são estes: Diário do hospício e O cemitério dos vivos?[8] O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação. (VOLOCHÍNOV, 2013a [1926]) Essa epígrafe muito atesta do nosso objetivo neste tópico, que é, a partir de uma breve reflexão sobre o conceito de enunciado na obra do círculo, proceder à apresentação da narrativa que tomamos como corpus para análise. Mesmo sendo apenas uma apresentação, o que aqui propomos nos auxiliará a: 1) entender Diário do hospício e O cemitério dos vivos como enunciados concretos no processo de construção e delimitação de nosso corpus e 2) atentar para as exigências e demandas que essa articulação teoria/corpus nos impõe. Assim como outras noções que orientam os estudos e as pesquisas que se fundamentam na arquitetura filosófica de Bakhtin e do Círculo, as concepções de enunciado e enunciação não aparecem explicitadas numa única obra dos membros do círculo, mas as considerações acerca do enunciado e da enunciação estão espalhadas e podem ser encontradas em várias obras assinadas pelos pensadores russos. Da leitura que temos empreendido das obras do círculo, notamos que as noções de enunciado e enunciação são, geralmente, tratadas juntas ou, quando não, se imbricam implicitamente. Como no pensamento dialógico é difícil desvincular o eu do outro, a identidade da alteridade, o processo de seu produto, o mesmo acontece com o enunciado e a enunciação. Em Marxismo e filosofia da linguagem, assim se pronunciam Volochínov e Bakhtin sobre a enunciação: Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 101) O que foi dito a respeito do enunciado e o conteúdo dessa citação, a nosso ver, provocam um deslocamento na maneira de lidar tanto com Diário do hospício quanto com O cemitério dos vivos. Ao considerar o enunciado e sua enunciação ou a enunciação e seu enunciado, colocamo-nos diante de uma cadeia discursiva onde as palavras circulam, onde elas dialogam, onde sujeitos se posicionam responsivamente, o que nos leva a pensar na complexa realidade sociocultural brasileira de inícios do século XX, o que nos leva a não considerar os dois enunciados/enunciações que ora tomamos para reflexão separadamente de suas situações reais, vivas, de existência. É mais ou menos isso o que está inscrito em A construção da enunciação. Nesse ensaio, diz-nos Volochínov (2013b [1930], p. 158) que […] a comunicação verbal não passa de uma das inumeráveis formas do desenvolvimento – “de formação” – da comunidade social na qual se realiza a interação verbal entre pessoas que vivem uma vida social. Por isso, seria uma tarefa desesperada tentar compreender a construção das enunciações, que formam a comunicação verbal, sem ter presente nenhum de seus vínculos com a efetiva situação social que as provoca. Assim, chegamos a nossa última conclusão: a essência efetiva da linguagem está representada pelo fato social da interação verbal, que é realizada por uma ou mais enunciações. (destaques do autor) É por isso que, ao tratar de Diário do hospício e O cemitério dos vivos, não abandonamos a comunidade social em que ocorrem nem os sujeitos que vivem em sociedade e que partilham enunciados concretos que foram ditos e escritos antes dessa narrativa de Lima Barreto sobre a loucura, a psiquiatria, a literatura e daqueles que foram ditos e escritos depois dela. Estando esses enunciados ou não na mesma esfera de atividade ideológica, ocorre, historicamente, a interação verbal de enunciados e de seus autores, o que, numa complexa malha de reflexos e refrações, vai construindo diálogos, polêmicas, conversas, embates. Nesse sentido, pensar Diário do hospício e O cemitério dos vivos enquanto enunciados é resgatar sua história de constituição e construção numa grande temporalidade, é tentar refazer a cadeia textológica do campo literário na relação com outros autores, outros enunciados e também na sua relação com outros campos, a exemplo do científico. Assim, na nossa investigação, colocamo-nos no evento social da interação verbal e passamos a dialogar com autores e enunciados sem os quais seria extremamente difícil pensar as questões da polêmica numa abordagem dialógica. Diário do hospício narra as vivências da segunda internação de Lima Barreto, do dia 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920, no Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. As primeiras anotações datam de quatro de janeiro de 1920. Nas edições de 1956, 1993, 2004 e 2010, o diário tem dez capítulos. O primeiro, cuja inscrição data de 04 de janeiro de 1920, narra a recepção no hospício, o primeiro banho coletivo e nu, fala de suas consultas com os médicos Adauto Botelho, Henrique Roxo e Ayrosa; da visita que recebeu do irmão e do senhor Ventura no dia 28 de dezembro de 1919; também comenta seu encontro com Juliano Moreira, à época, diretor do Hospício Nacional. No segundo capítulo, comenta sua entrada e experiência na seção Calmeil, que ocorreu numa segunda-feira, dia 29 de dezembro de 1919, a falta de livros na biblioteca (para ele, houve um desfalque), sua consulta com Humberto Gottuzo, médico elogiado por ele, e reflete sobre seu vício. No terceiro, reflete sobre as causas que o colocaram no Hospício Nacional, revela a leitura da obra de Henry Maudsley, O crime e a loucura, livro que leu em francês e que o impressionou bastante, fazendo-o elaborar um decálogo para o governo de sua vida, elenca os problemas que acabaram provocando sua internação no dia 25 de dezembro de 1919: confessa que iniciou o consumo de bebida alcoólica por meio da cerveja; depois, pela falta de dinheiro, passa a beber cachaça – “parati” –, a qual ele “bebia desbragadamente” (BARRETO, 2010, p. 61); fala da decepção com a recepção apática de seu primeiro livro, Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909; narra o episódio em que cai de tão bêbado que estava, circunstância na qual, estando na companhia de V. (Joaquim Vilarinho)[1] recebeu ajuda de uma terceira pessoa: uma mulher mandou que sua empregada fosse oferecer-lhe um vaso de éter e recomendar ao senhor V. que levasse o escritor para casa com cuidado. Além disso, aborda os hábitos de higiene íntima e pessoal: “Não me preocupava com meu corpo. Deixava crescer o cabelo, a barba, não me banhava a miúdo.” (BARRETO, 2010, p. 63). Ainda neste terceiro capítulo, comenta o estado deplorável em que era encontrado quando acordava depois de ter passado a noite em capinzais e dos roubos que sofria. Revela que faltava à repartição onde trabalhava semanas e meses. Descreve a crise que teve em 1919 e que culminou na sua internação. No quarto capítulo, Lima Barreto conta-nos de sua experiência entre os loucos; confessa que leu algumas coisas sobre a loucura e que conversou com estudantes e médicos que se dedicavam ao estudo da alienação mental; narra o caso o louco F. B. e descreve seu comportamento perante os outros lunáticos e os funcionários do hospício (guardas, enfermeiros, médicos); narra o encontro com V. de O., que lhe deixa bastante impressionado, narra o caso do “louco bacharel” e do “louco engenheiro”; fala ainda do louco que jogava bilhar com um médico, de O., que explicava aritmética. No quinto capítulo, dedica-se aos casos dos loucos silenciosos: fala da relação entre loucos e enfermeiros; informa que, entre os enfermeiros, havia estrangeiros, especialmente portugueses e espanhóis; diferencia bons e pacientes enfermeiros dos maus, “que não prestam”, entre esses últimos, especificamente os particulares, levados para dentro do hospício pelos “doentes abastados” (BARRETO, 2010, p. 80); descreve aspectos da vida no hospício, de seu cotidiano, como os namoros entre os enfermeiros e as enfermeiras. Refere-se ao mau tratamento conferido pelos guardas aos loucos; confessa dores e angústias, vontade de ter outra vida, fala das humilhações pelas quais passou no hospício. Neste capítulo, aparecem ainda nomes de personagens fictícios, como Tito Flamínio, e fragmentos de ficcionalização. Ainda neste quinto capítulo, o autor relata o suicídio de um doente acontecido no Pavilhão de Observação, que, segundo nota de Massi e Moura (2010, p. 84), “Os jornais noticiaram o suicídio em 17 de janeiro de 1920. Ernani da Costa Couto, 22 anos, havia sido internado na véspera. A mesma ideia sempre rondou Lima Barreto: “Desde menino, eu tenho a mania do suicídio”, anotou em seu Diário íntimo, em 16 de julho de 1908.” No capítulo sexto, o autor, já no início, fala da leitura de Plutarco. Depois disso, censura os parentes que o internaram no hospício e a ilegalidade da polícia, que os ajudou. Fala dos casos dos uxoricidas que há no hospício e também dos que aparecem nos jornais. Em seguida, discute, brevemente, se a loucura é contagiosa ou não, volta a falar da presença de loucos assassinos, não necessariamente uxoricidas, no hospício e dos hábitos dos loucos. No capítulo sétimo, Lima Barreto fala do dia de São Sebastião, das paisagens que avista a partir do hospício e do tédio que o acompanha nesse momento. Escreve sobre as desventuras da vida, da falta de dinheiro. Nesse dia, o cotidiano do hospício seria diferente, marcado por atividades distintas das dos dias comuns, mas que são interrompidas por um surto de D. E., um dos internados. No capítulo oitavo, Lima Barreto fala da biblioteca do hospício e de um desfalque que constata em seu acervo ao compará-lo com o de cinco anos atrás, quando esteve internado pela primeira vez num hospício, de agosto a outubro de 1914. Lembra as experiências de leitura das obras de Júlio Verne, o que lhe remete à infância. Volta a tratar do seu desejo de morte e de sua incapacidade para buscá-la. Revela que deixa de frequentar a biblioteca por causa das provocações dos loucos. Volta a falar da leitura de Plutarco. Refere-se à dificuldade que enfrenta quando sua atividade é a leitura. Descreve seu dormitório e seus colegas de quarto. Faz referência a episódios de conflitos entre os internos. Ainda neste capítulo, reproduz os poucos e curtíssimos diálogos com alguns loucos. No nono capítulo, o autor continua descrevendo colegas de dormitório. Compara o hospício com outro estabelecimento de saúde por onde passou e onde também ficou internado. Fala da visita de um fiscal do governo e de seus efeitos no cotidiano e na rotina do hospício. Nesse episódio, os pacientes apresentam queixas e denúncias, insatisfações, fazem cobranças; Lima revisa algumas representações. Mais uma vez, volta ao caso de V. O./V. de O. A partir do que expomos, podemos dizer que, ao longo de todo o texto, é descrito e narrado o cotidiano no interior do hospício: as situações de humilhação no banho coletivo; as consultas com os psiquiatras e as impressões sobre cada um deles; reflexões acerca da loucura e da psiquiatria, a convivência diária com os outros internados, com os guardas e enfermeiros; as mudanças de uma seção para outra; a arquitetura do hospício e de seu entorno geográfico; momentos de tédio; afeição a um ou outro doente; momentos de melancolia, tristeza; o encontro com os livros da biblioteca do hospício. Por fim, no décimo capítulo, é apresentada uma série de notas que, segundo os editores (MASSI; MOURA, 2010), foram desenvolvidas tanto em Diário do hospício quanto em O cemitério dos vivos. O cemitério dos vivos é um romance inacabado de Lima Barreto, elaborado em 1920 e em 1921, cujos originais, assim como os de Diário do hospício, se encontram na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Em 1921, a Revista Souza Cruz, nº 49, publicou suas páginas iniciais com o título As origens (MASSI; MOURA, 2010, p. 142). Junto com Diário do hospício, teve cinco edições. Desde sua primeira publicação em livro, feita pela editora Mérito, em 1953, aos cuidados de Francisco de Assis Barbosa, essa narrativa tem despertado o interesse de pesquisadores, editores, críticos e leitores em geral. De suas edições, temos notícia dessa primeira, de 1953 e de quatro outras edições. A segunda delas ocorreu em 1956, feita pela editora Brasiliense, com prefácio de Eugênio Gomes. Em 1993, veio a público uma organização feita por Maria Lúcia M. de Oliveira, Diva Maria D. Graciosa e Rosa M. de Carvalho Gens para a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, sob o título de Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Uma quarta edição foi publicada em 2004, pela editora Planeta, com prefácio de Fábio Lucas, e organização e notas de Diogo de Hollanda. E uma quinta, e última edição, com organização e notas de Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura, publicada em 2010 pela editora Cosac Naify, também com o título de Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Como vemos, tratamos de textos com uma história singular. O segundo que apresentamos teve suas primeiras páginas publicadas numa revista em 1921, trecho cujos manuscritos se perderam; não foi publicado inteiramente com seu autor vivo; esse autor não cuidou sequer de uma primeira edição da obra, nem a concluiu; seus manuscritos são de difícil trato, dadas as condições em que foram escritos – quando Lima Barreto ainda estava internado no Hospício Nacional de Alienados. Além disso, passou por cinco edições, todas póstumas e com intervalos de tempo relativamente longos: de 1956 a 1993, são nada mais nada menos que 37 anos. Também a primeira demorou a ser publicada, 31 anos. O que é bastante significativo, se considerarmos que o trabalho de editar um texto também inclui processos de interpretação (e influencia a construção da autoria?). Isso nos permite dizer que Diário do hospício e O cemitério dos vivos passaram pelas mãos de leitores-editores os mais diversos, que lhes tiraram elementos ou lhes acrescentaram, o que, do ponto de vista de uma abordagem bakhtiniana, faz toda a diferença no processo de construção de sua autoria. Não tanto pela quantidade de edições, mas, sobretudo, pelo fato de a obra não ter recebido acabamento de Lima Barreto para publicação. Outro dado a ser considerado é o fato de O cemitério dos vivos vir, desde 1956[3], antecedido apenas de Diário do hospício, que, segundo a edição de 1993 (organizada para a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro), seriam “anotações para O cemitério dos vivos”. É tão recorrente, nas várias edições da obra, Diário do hospício anteceder O cemitério dos vivos e ser considerado um “enunciado-rascunho” do segundo, que Alfredo Bosi (2006, p. 322), em sua História concisa da literatura brasileira, chega a afirmar que A obra, coligida postumamente, apresenta-se dividida em duas partes: a primeira contém o diário do escritor relativo à sua estada no casarão da Praia Vermelha (do Natal de 1919 a 2 de fevereiro de 1920); a segunda, que é propriamente o romance, constitui-se do esboço de uma tragédia doméstica cujos fragmentos alternam com as memórias da vida no hospício. Afirmação que torna possível a compreensão de que Diário do hospício e O cemitério dos vivos fariam parte de uma mesma obra ou romance, como A terra, O homem e A luta compõem Os sertões, de Euclides da Cunha (1902). Posicionamento do qual discordamos, embora, por questões de espaço, não discutiremos no âmbito deste artigo. O cemitério dos vivos é formado por cinco capítulos, que, mesmo inacabado, por conta da morte de seu autor (lima-autor-pessoa) em novembro de 1922, narra a história de Vicente Mascarenhas a partir do diálogo com o texto de Diário do hospício, insistentemente chamado de “primeira parte” nas edições e pela crítica especializada – a esse respeito ver Lucas (2004) e Bosi (2010). A singularidade a que nos referimos mais acima reside também no fato de O cemitério dos vivos (arte, literatura) ter sido escrito num diálogo estreito com Diário do hospício (vida). Na constituição de nosso corpus, estamos diante, portanto, do encontro entre a vida e a arte, como nos mostram Volochínov e Bakhtin no texto fundante Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica, de 1926. Nesse romance inacabado de Lima Barreto, lemos a história de Vicente Mascarenhas, nossa personagem protagonista, que é, também, nosso narrador. Vicente Mascarenhas é um jovem rapaz de mais ou menos 17 anos de idade, canhestro e tímido, que, apesar de ter vivido fora do ambiente doméstico, em internatos, no meio de meninos e rapazes desenvoltos, nunca foi dado à sociabilidade feminina. Inábil para tratar com damas, ainda que tivesse uma irmã, nunca havia namorado. Como não sabia lidar com mulheres e moças, das situações com elas, saía aborrecido. Mascarenhas é também um leitor: lia José de Alencar, Macedo, Manuel de Almeida, Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Castro Alves, Gonzaga, Bilac, Júlio Verne, Miguel de Cervantes. Também tem o hábito de pensar depois que age, de julgar a si mesmo, é dado a autoavaliações morais. Autodenomina-se ainda como positivista (BARRETO, 2010). Ao chegar ao Rio de Janeiro, com mais ou menos 17 anos, vai morar, por indicação de um amigo, na pensão de dona Clementina Dias, viúva, mãe de três filhos, dois rapazes e uma moça. Esta, um pouco mais jovem que Mascarenhas. É com ela que ele se casará, a pedido da viúva, e terá um filho. A narrativa começa com dona Efigênia no leito de morte pedindo a Vicente que desenvolva “aquela história da rapariga, num livro.”; um conto que ele começara a fazer antes de casar-se com ela. Já a partir do segundo capítulo, e nos seguintes, nossa personagem narra seu ingresso no hospício e as experiências vividas na sua passagem por ele: conversas com pacientes dos mais diversos tipos; consultas com médicos (psiquiatras, alienistas); sua relação com enfermeiros, guardas, funcionários em geral; suas impressões a respeito da arquitetura do hospício e de sua história, dos loucos, dos psiquiatras e da loucura. 4 Na berlinda, literatura e ciência Não só em Diário do hospício e O cemitério dos vivos há indícios das polêmicas (Lima x literatura de prestígio, Lima x ciência psiquiátrica), mas em outros momentos de sua produção. Em outro trabalho, analisamos, a partir da polêmica com a ciência, o processo de constituição do ethos discursivo em As teorias do doutor Caruru, de Lima Barreto[2]. Nesse artigo, compreendemos os mecanismos de funcionamento do discurso literário, refletimos sobre o discurso literário como discurso constituinte e analisamos as estratégias discursivas de deslegitimação do discurso científico. O doutor Caruru da Fonseca é ridicularizado enquanto metonímia da ciência do início ao fim da crônica. Essa crítica segue acompanhada de outras: como a crítica a um certo projeto de nação, ao modelo de língua ou de uso da língua e à chamada “cultura do doutor”. Ao analisar a crônica de Lima Barreto A Universidade, Matias (2007, p. 58) escreve que, nessa crônica, O cronista tece ainda considerações a respeito do que denomina de “superstição doutoral”, que implica a reserva das oportunidades para dirigentes em empresas, como Lloyd, os Correios e Telégrafos e da Central do Brasil (sic), destinadas aos engenheiros, fixando uma estranha compulsão pela “doutomania”. (BARRETO, 1956a, p. 120). Já àquela época, o cronista identificava que a universidade estava mais para funcionar como um trampolim dos doutores para alcançar os privilégios dos cargos públicos ou privados, do que para compor um quadro de ensino superior adequado à realidade brasileira. A maneira pela qual esta “doutomania” se revela freqüentemente é o vezo pela oratória dos doutores, que se apropriam das mais fugazes oportunidades para deitarem falação sobre os mais variados assuntos. Entretanto, se, em As teorias do doutor Caruru, Lima posiciona-se contrariamente à ciência que se praticava na época e também discute, mesmo que tangencialmente, a língua e seu uso, como, aliás, demonstramos no artigo a que nos referimos, em Os samoiedas, o alvo é a literatura de prestígio, com quem o embate é diretamente travado. É a isto que se presta este tópico: a partir da retomada da análise da constituição do ethos discursivo do doutor Caruru da Fonseca e de uma breve análise de Os samoiedas, texto retirado do livro de sátiras Os bruzundangas (2000 [1923]), de Lima Barreto, apresentar o posicionamento que esse autor assume no campo literário das duas primeiras décadas do século XX, momento de sua produção. Essa retomada e essa breve análise nos auxiliarão na análise da bivocalidade polêmica em O cemitério dos vivos, a partir de dois fragmentos que consideramos representativos da relação estabelecida/construída com o discurso outro, o da ciência e o da literatura de prestígio. Antes, porém, temos de deixar claro para nosso leitor que as polêmicas que ora analisamos não são novidade para aqueles que se debruçam sobre a obra de Lima Barreto. Como exemplos, podemos citar as reflexões de Mauro Silva (1999) em Confrontos linguísticos no Pré-Modernismo brasileiro: Lima Barreto versus Coelho Neto e Lima Barreto e Coelho Neto: divergências literárias na literatura brasileira da passagem do século; Lenivaldo Gomes de Almeida (2006) em Um autor em procura de uma alma: a crise da representação e a dimensão trágica em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá; José Luiz Matias (2007) em Vida urbana, Marginália, Feiras e mafuás: a modernidade urbana nas crônicas de Lima Barreto; Fabiana Delana Viegas Galindo (2007) em A polifonia nas crônicas de Lima Barreto; Regina Célia Ramalho (2007) em A língua e a história no conto literário de Lima Barreto; André Luiz dos Santos (2007) em Caminhos de alguns ficcionista brasileiros após as Impressões de leitura de Lima Barreto; Marta Rodrigues (2007) em Entre a crítica e a paixão: os discursos do narrador e do protagonista em Triste fim de Policarpo Quaresma; Carlos José Bertolazzi (2008) em Lima Barreto: representações, diálogos e trajetórias literário-culturais; Zélia Ramona Nolasco dos Santos Freire (2009) em A concepção de arte em Lima Barreto e Leon Tolstói: divergências e convergências; Deysiane Farias Pontes (2009) em A tradição intelectual do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto; André Luiz Dias Lima (2009) em Lima Barreto e Dosloiévski: vozes dissonantes; Alice Atsuko Matsuda (2009) em Presença do pensamento utópico nos discursos de Lima Barreto; Paulo Alves (2009) em A farpa e a lira: uma análise socioliterária a partir de Cruz e Sousa e Lima Barreto; Jackson Diniz (2010) em Identidade negra e modernidade na obra de Lima Barreto. Todos esses estudos fazem referência a polêmicas travadas entre Lima Barreto e os escritores realistas, naturalistas, parnasianos, simbolistas, principalmente àquela que, talvez, tenha sido a mais intensa, àquela travada com Coelho Neto, autor de Inverno em flor (1897). Além desses estudos indicados no parágrafo anterior, também Alfredo Bosi (2006 [1970]), em História concisa da literatura brasileira, alude à polêmica entre Lima Barreto e Coelho Neto. Em várias passagens de sua obra, Lima Barreto se refere ao estado da literatura, a Coelho Neto, conforme os fragmentos que seguem: Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma cousa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias… (BARRETO, 1956, p. 191) O senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual. […] Os estudos do senhor Coelho Neto sempre foram insuficientes; ele não viu que um literato, um romancista não pode ficar adstrito a esse aspecto, aparente de sua arte; ele nunca teve a intuição de que era preciso ir mais além das antíteses e das comparações brilhantes. (BARRETO, 1956b, p. 189) Em um século de crítica social, de renovação latente das bases das nossas instituições; em um século que levou a sua análise até os fundamentos da geometria, que viu pouco a pouco desmontar-se o mecanismo do Estado, da Legislação, da Pátria, para chegar aos seus elementos primordiais de superstições grosseiras e coações sem justificações nos dias de hoje; em um século deste, o Senhor Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico, um contemplativo, magnetizado pelo Flaubert da Mme Bovary, com suas chinesices de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita, e sempre fascinado por uma Grécia que talvez não seja a que existiu mas, mesmo que fosse, só nos deve interessar arqueologicamente. (BARRETO, 1956a, p. 75) Em anos como os que estão correndo, de uma literatura militante, cheia de preocupações políticas, morais e sociais, a literatura do Senhor Coelho Neto ficou sendo puramente contemplativa, estilizante, sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro. (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 76). A missão da literatura é fazer comunicar umas almas com as outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando desse modo a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para conquista do planeta e se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade. (Histrião ou literato? 15/02/1918. V. I. p. 319) O deputado [Coelho Neto] ficou sendo o romancista que só se preocupou com o estilo, com o vocabulário, com a paisagem, mas que não fez do seu instrumento artístico um veículo de difusão das grandes idéias do tempo, em quem não repercutiram as ânsias de infinita justiça dos seus dias; em quem não encontrou eco nem revolta o clamor das vítimas da nossa brutalidade burguesa, feita de avidez de ganho, com a mais sinistra amoralidade para também edificar, por sua vez, uma utopia ou ajudar a solapar a construção social que já encontrou balançando. (BARRETO, 1961e, p. 76). Nesses fragmentos, temos indícios da relação de alteridade entre Lima Barreto e Coelho Neto, entre dois posicionamentos no interior do campo literário. Também podemos perceber, nesses trechos, por meio da sugestibilidade das passagens, duas polêmicas: uma, velada; e outra, aberta. Assim, compreendemos que, quando Lima trata explicitamente da literatura coelhonetana, trata-a polemicamente, tensamente, o que nos leva a pensar que estamos diante de uma polêmica aberta. Além disso, as formações verbo-axiológicas de Lima, que marcam um posicionamento na dinâmica do campo literário, alude, polemicamente, a outras formações verbo-axiológicas. É nesse diálogo com Coelho Neto que não está marcado e delimitado apenas no conteúdo do que é dito, mas também na forma como o que é dito é dito, no tom, no estilo construído nas relações estabelecidas com o outro – outro discurso, outro sujeito –, que as polêmicas vão sendo construídas na esfera literária. Diante disso, podemos ouvir Bakhtin (2010, p. 287) quando, ao comentar as relações dialógicas na obra de Dostoiévski, afirma que “uma ideia é evidente, determina o conteúdo do discurso, a outra é velada, contudo, determina a construção do discurso lançando sobre ela a sua sombra.” É com base nesse pensamento bakhtiniano que entendemos o discurso limaberretiano, nesses fragmentos apresentados, como um discurso duplamente polêmico, sua contestação não se dá apenas nos enunciados enquanto afirmações, conteúdos, críticas endereçadas diretamente a Coelho Neto e, por tabela, aos escritores parnasianos e ao parnasianismo enquanto movimento estético-ideológico, mas se dá também na sua construção, no seu estilo, nas suas formações verbo-axiológicas. Aqui, é importante ressaltarmos que a construção desse posicionamento limabarretiano se dá na dialogia que há entre a construção, o estilo e o próprio posicionamento, sempre responsivo. Algo semelhante é encontrado em Os bruzundangas. Logo no início do livro, na primeira sátira, lemos: Queria evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado. Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais: idéias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dous séculos ou três. Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito. (…) Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis o volume. Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia. São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por “expoentes” e não há moça rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar. O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por “Escola Samoieda”. Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. (BARRETO, 2000 [1923], p. 8-12) Embora os nomes de escritores e poetas não estejam escritos, materialmente enunciados, no tecido dessa crônica, quando a lemos, atualizamos sentidos que aludem, de alguma forma, ao debate no campo da atividade literária. É dessa sugestão advinda da alusão provocada pela atualização dos sentidos, processo inerente à vida do enunciado concreto, que, de maneira refletida e refratada, podemos perceber, ainda por meio do diálogo com o que foi dito antes, mais uma vez as “alfinetadas” ao posicionamento de uma literatura tradicional, conservadora, purista, “douta”, sobretudo por meio das formações verbo-axiológicas construídas tanto nas crônicas de Lima Barreto quanto em Os samoiedas. 5 A bivocalidade polêmica em Diário do hospício Como essa dupla polêmica aparece em Diário do hospício, de Lima Barreto? Para respondermos a essa pergunta e, por conseguinte, alcançarmos o objetivo que propomos neste artigo, selecionamos dois fragmentos de Diário do hospício. A seleção a que procedemos se justifica no fato de tais fragmentos nos darem as condições necessárias para analisarmos a polêmica com a literatura de prestígio da época e com a ciência psiquiátrica. Senão, vejamos: Sentei-me ao lado de um preto moço, tipo completo do espécime mais humilde da nossa sociedade. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço e calçava uns chinelos muito sujos, que tinha descoberto no porão da varanda. Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério — que mistério! — que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele. Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício. Creio que ele não gostou. (BARRETO, 2010, p. 46-47) Esperei o médico. Era um doutor Airosa, creio eu ser esse o nome, interrogou-me, respondi-lhe com toda a verdade, e ele não me pareceu mau rapaz, mas sorriu enigmaticamente, ou, como dizendo: “você fica mesmo aí” ou querendo exprimir que os meus méritos literários nada valiam, naturalmente à vista das burrices do Aluísio. Fosse uma coisa, fosse outra, fossem ambas conjuntamente, não me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no caso dele, eu talvez pensasse da mesma forma. (BARRETO, 2010, p. 48-49) Outra coisa que me fez arrepiar de medo na Seção Pinel foi o alienista. Se entre nós, no Rio, houvesse uma universidade, eu poderia dizer que ele havia sido meu colega, porquanto, quando ele freqüentava a Escola de Medicina, eu passeava pelos corredores da Escola Politécnica. Nunca travamos relações, mas nós nos conhecíamos. Ele, porém, não se deu a conhecer e eu, no estado de humilhação em que estava, não devia ser o primeiro a me dar a conhecer. Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante de novidades, do vient de paraitre, das últimas criações científicas ou que outro nome tenham. (BARRETO, 2010, p. 55-56) Nesses excertos, vislumbramos as críticas ao doutor, ao médico. Se, em outros discursos, o médico e seu discurso seriam ovacionados, bajulados ou algo do gênero, no discurso limabarretiano, o médico e seu discurso aparecem, no jogo das vozes sociais, criticado. Se, na época, havia discursos defensores da “cultura do doutor”, que conferia aos magistrados, engenheiros e médicos grande prestígio social, em Diário do hospício, não é isso o que acontece. Lima, como fizera em Os bruzundangas, subverte a relação com os discursos de prestígio do cronótopo que integra e constitui. Ao fazer isso, na relação com outros discursos, outras esferas, ele reflete e refrata posicionamentos assumidos por pacientes diante de médicos, de loucos diante de psiquiatras. É nesse momento também que, estando o discurso do autor orientado para o objeto – a relação eu-outro, paciente-médico –, como qualquer outro discurso, “qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Por isso, precisamos retomar o discurso do outro sobre o mesmo assunto e sobre o mesmo objeto. É Luzia de Maria (2005), em Sortilégios do avesso: razão e loucura na literatura brasileira, quem afirma que […] pode o texto de Coelho Neto ser lido como porta-voz do discurso científico. A psiquiatria nascente no Brasil do final do século [XIX], o saber da ciência exigindo seu espaço entre os assuntos em voga e a figura do médico assumindo o papel de controlador da saúde social, deram (sic) a Coelho Netto (sic) subsídios para a elaboração do romance Inverno em flor. Aqui, a literatura afirma o saber médico. (MARIA, 2005, p. 149) O que estamos dizendo, em outras palavras, é que, embora trate do discurso médico, da psiquiatria das duas primeiras décadas do século XX, o discurso de Lima em Diário do hospício “se choca no próprio objeto com o discurso do outro” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Podemos fazer um pequeno deslocamento e pensar que no próprio objeto o discurso do autor se choca com os discursos, com as vozes sociais de vários outros. No nosso caso específico, podemos constatar que entre esses vários outros discursos com os quais se choca o discurso de Lima está a voz de Coelho Neto em Inverno em flor, refletido/refratado pela leitura de Maria (2005). Mais do que isso: ao considerar o que Lima afirma sobre a literatura de Coelho Neto e sobre seu posicionamento no campo literário, podemos dizer que seu discurso se choca com o dele (Coelho Neto) ao elaborar narrativas que tratam de temas como a loucura, a psiquiatria nascente no início do século XX, aqui no Brasil, e da relação paciente-médico. Não por coincidência, Morson e Emerson (2008, p. 153), a partir da leitura que fazem da obra de Bakhtin e do Círculo, afirmam que Todas as vezes que falamos, respondemos a algo já falado antes e tomamos uma posição com respeito a enunciados anteriores sobre o tópico. O modo como percebemos esses enunciados anteriores – como hostis ou simpáticos, peremptórios ou frágeis, social ou temporalmente fechados ou distantes – molda o conteúdo e o estilo do que dizemos. Percebemos esses enunciados alheios no próprio objeto. É como se o objeto fosse revestido por uma espécie de cola que lhe preserva as caracterizações anteriores. São esses elementos e essas relações dialógicas que nos dão condições concretas de analisar a bivocalidade polêmica em Diário do hospício. Então, onde estaria a polêmica velada entre Lima Barreto e os outros literatos? Retomemos, rapidamente, o que dissemos antes sobre essa modalidade de polêmica, na qual “[…] a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere […]” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Quando Lima Barreto escreve suas obras literárias, a sua textualidade, o seu enunciado, não é um enunciado feito conforme os padrões estéticos dos parnasianos, simbolistas ou neoparnasianos, neossimbolistas. Ao construir seus enunciados mais próximos à linguagem comum dos leitores comuns, ele se distancia das construções verbo-axiológicas dos escritores hegemônicos de sua época. Aí já há a polêmica velada, porque, se ele não polemizasse, talvez os enunciados fossem construídos conforme os padrões parnasianos, simbolistas, do academismo tradicional cujos princípios ideológicos orientavam o fazer da literatura de prestígio do momento. Observemos que a palavra do outro não está explícita no enunciado limabarretiano, mas ele escreve em resposta a esse outro, polemizando com ele, com esse outro. Embora tenha influenciado a enunciação, o enunciado do autor Lima Barreto, a palavra do outro não está, explicitamente, “lá”, “[…] aqui a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação, mas age, influi e determina a palavra do autor, permanecendo ela mesma fora desta […]” (BAKHTIN, 2010, 224); mas, de alguma forma, Lima responde. Isso seria uma espécie de réplica dialógica, em que “[…] o interlocutor, ao orientar seu discurso para o objeto de sentido, reage ao discurso do outro, reelaborando-o […]”. (BAKHTIN, 2010, p. 225), o que podemos perceber tanto em Os bruzundangas quanto em Diário do hospício. Isso seria também uma espécie de refração, aí há uma refração discursiva. Assim, “[…] quando a refração discursiva não ocorre por meio desse objeto […]”, isto é, quando a refração discursiva acontece sem esse caráter velado, quando os elementos de um outro, de um discurso outro, estão explícitos, temos a bivocalidade polêmica, que “[…] se constitui pela tomada da palavra do outro como base de contestação.” (VELOSO, 2011, p. 46), o que configura o que estamos entendendo por polêmica aberta. Na polêmica aberta, os “[…] contornos linguísticos do discurso refutado emergem de modo evidente na fala do autor, por meio, por exemplo, do discurso citado indireto, nomeação, uso de advérbios de negação, conjunções adversativas […]”. (VELOSO, 2011, p. 47). Então, se, na polêmica velada, elementos enunciativos, linguísticos, do discurso do outro, isto é, as formações verbo-axiológicas do discurso do outro não estão presentes, mas a maneira de enunciar é uma resposta à maneira do outro enunciar, agora, com a presença dos elementos outros, isto é, do outro, elementos linguístico-ideológicos, temos a conformação de uma polêmica aberta. Convém lembrarmos que, no pensamento do Círculo, o signo é sempre ideológico, é a arena da luta ideológica, tem duas propriedades, as de refletir e refratar a realidade. Na refração do real, está um aspecto criativo, é aí que a linguagem consegue (re)criar essa realidade de alguma forma. Desse conceito de refração do signo, partimos para a derivação do conceito de refração discursiva, que acontece quando o discurso sofre alterações de acordo com a esfera de circulação, gêneros discursivos, interlocutores etc. Ao mesmo tempo, os reflexos estão no domínio das relações dialógicas e da palavra bivocal. Assim, Lima Barreto como autor dialoga com outros autores literários de sua época e com o discurso da ciência, com os autores da ciência. E aqui ciência e literatura constituem esferas da atividade humana. Esse diálogo, no entanto, não é, necessariamente, consensual; às vezes, como nesse caso, é a dissensão, a discordância, a polêmica que ocorrem. Não consideramos, desse modo, apenas a potencialidade semântica da língua, mas que a construção do sentido se dá, de maneira dialógica, entre sujeitos situados sócio-historicamente. Por isso, não consideramos apenas os valores linguísticos das palavras e dos enunciados. O discurso bivocal acontece quando, de alguma forma, os discursos se tangenciam, mas,“[…] se ambos os discursos não se tangenciarem em uma relação semântica que seja consonante ou dissonante, esse discurso não será bivocal, mas apenas objetivado, como nos diálogos dramáticos.” (VELOSO, 2011, p. 46). Nesse sentido, pautando-nos em Bakhtin (2010), podemos dizer que os discursos bivocais são aqueles que se tangenciam numa relação semântica de concordância ou de discordância. No nosso caso, essas relações nos põem diante das polêmicas. Isso não significa que a concordância estaria, por exemplo, para a polêmica velada e que a discordância estaria para a polêmica aberta. Não; há um tangenciamento; nesse tangenciamento, vemos a polêmica emergindo, e, na sua emergência, ela pode ser aberta ou velada. Então, na polêmica velada, “a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere” (BAKHTIN, 2010, p. 223). É o que vemos no fragmento de Os bruzundangas, que citamos no item 4 para constatarmos como o autor constrói a relação com a esfera literária e, por conseguinte, com seus discursos hegemônicos. A literatura da época são as literaturas parnasiana e simbolista ou ainda neoparnasiana e neossimbolista. Escritores como Rui Barbosa, Olavo Bilac e Coelho Neto assumiam lugares de destaque no âmbito da literatura, exercendo grande influência, tanto ideológica quanto literária. Entretanto, sua atividade ideológica é contestada por Lima em seus textos, o que lhe rende as polêmicas que integrou e que construiu. 6 (In)Conclusão Assim, pautando-nos em Bakhtin (2010), podemos dizer que os discursos bivocais são aqueles que se tangenciam numa relação semântica de concordância ou de discordância. Dessa forma, em Diário do hospício, vislumbramos esse tangenciamento discursivo entre as vozes da literatura e da ciência, quando, em seu enunciado, o autor (Lima-autor-criador) reproduz a palavra de seu outro (médico/ciência) por meio do discurso citado indireto, da nomeação, isto é, quando a palavra do outro é tomada explicitamente como uma espécie de apoio para a contestação a ser construída pelo autor. Por outro lado, no âmbito da esfera da atividade literária, essa mesma escrita se apresenta como ato responsivo ativo à(s) fala(s) de outro(s): outros sujeitos, outros autores, escritores; aqui, fazemos referência ao fato de a escrita de Lima considerar a palavra do outro que, mesmo permanecendo fora dos limites de seu discurso, influencia, interfere na sua produção/constituição. Discurso esse que, polêmica e veladamente ao outro aludindo, adota um estilo peculiar que, por isso mesmo, contesta o estilo do outro. Os fragmentos de Diário do hospício, objeto de nossas reflexões, bastam para percebermos que Lima-autor-criador estabelece uma polêmica explícita, aberta, com o discurso da medicina, especificamente, com o da psiquiatria. Quer dizer, constantemente, questiona o discurso médico: “Que médico é esse, que lê bastante, mas não consegue entender a alma humana? Que médico é esse, que parece mais acuado do que eu?” Então, ao mesmo tempo em que Diário do hospício é escrito numa linguagem mais próxima à linguagem comum das gentes da época, são enunciados que contestam a postura médica, psiquiátrica dentro do hospício. A partir disso, podemos dizer que, no mesmo texto, no mesmo enunciado, temos uma dupla orientação da palavra, uma polêmica velada em relação à escrita acadêmica, convencional, parnasiana, simbolista; quer dizer, ele se posiciona do lado oposto dos parnasianos, academicistas, conservadores, pelo tipo (estilo) de enunciado que ele escreve, e ele se posiciona, abertamente, do lado oposto da psiquiatria da época, questionando: “que psiquiatria é essa?” Referências ALMEIDA, L. G. Um autor em procura de uma alma: a crise da representação e a dimensão trágica em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2006. 134 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 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A palavra na vida e a palavra na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. [Tradução de Fabrício César de Oliveira e Valdemir Miotello] In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2013a. VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação. In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2013b. [1] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do doutorado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da professora Luciane de Paula. [2] Um esquema inicial e bastante preliminar deste artigo foi apresentado na comunicação A bivocalidade polêmica em O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, no XVIII Congresso Internacional da ABRALIN, em Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 2013. Uma segunda comunicação de mesmo título, mas com o acréscimo de outras reflexões, leituras e discussões, foi apresentada no IV Encontro em Análise do Discurso, em Araraquara, São Paulo, em agosto de 2013. [3] Uma primeira versão deste artigo foi desenvolvida como requisito de avaliação na disciplina Análise do discurso e violência: múltiplos olhares, ministrada pela professora Marina Célia Mendonça no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp, campus de Araraquara. [4] O que recebe, neste artigo, o status de “introdução” foi submetido, numa versão ampliada, como resumo para inscrição no IV Encontro em Análise do Discurso. Convém deixar claro, no entanto, que seu conteúdo está de acordo com nossos propósitos para este artigo. [5] Parte deste tópico está publicada em Melo (2014). [6] Em Problemas da poética de Dostoiévski, os títulos dos capítulos são, respectivamente, do primeiro ao quinto: O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária; A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski; A ideia em Dostoiévski; Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski; O discurso em Dostoiévski. (BAKHTIN, 2010) [7] Com isso não estamos defendendo que Coelho Neto seja parnasiano, mas que o discurso parnasiano, independente de Coelho Neto sê-lo ou não, estava num outro lugar da esfera de atividade literária que não era, definitivamente, o de Lima Barreto, mas que se relaciona com o discurso de Lima, constituindo-o pela alteridade e também nela se constituindo. [8] Uma primeira versão, reduzida e ainda imatura, deste item compõe o artigo A constituição do Autor-criador em O cemitério dos vivos, de Lima Barreto: reflexões iniciais, que foi publicado nos anais do II Encontro de Estudos Bakhtinianos, realizado na UFES, no período de 12 a 14 de novembro de 2013. #bivocalidade #discursocitado #Estética #enunciação #gênero #enunciado #literatura #diálogo
- Uma nota sobre a influência do pensamento bakhtiniano
José Radamés Benevides de Melo[1] A linguística do século XX nos deixou como legado uma grande quantidade de máximas, proposições, construtos teóricos, disciplinas, campos de estudo, ciências, interdisciplinaridade e a abertura para a criação de inúmeros outros campos de investigação científica da natureza da linguagem humana, suas formas de apresentação, representação, seus valores simbólico-semióticos, sua relação com a construção de realidades e identidades, fundamentos para ciências diversas. Entretanto, uma de suas maiores contribuições – e, neste caso, por outro lado, da filosofia de Marx – talvez tenha sido a possibilidade de provocar o advento das teorias dialógicas propostas e apresentadas pelos estudiosos russos Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev e Valentin Volochínov como uma densa, complexa e revolucionária contrapalavra àquela da linguística, da filosofia da linguagem e da estilística de base marcadamente idealista. Depois deles, os estudos sobre a linguagem humana e sua abordagem científica mudaram significativamente de rumo sem, no entanto, anularem as outras possibilidades de investigação. Na verdade, essa contrapalavra ficou, por algumas décadas, esquecida e isolada ou sofreu a indiferença daqueles que enxergavam nela um espectro que rondava a linguística moderna centralizadora, aquela mesma que constrói uma “língua nacional como um todo monolítico, unificado e homogêneo” que define quem pertence ou não à nação, também concebida como um todo monolítico, unificado e homogêneo. Segundo Saussure (2006 [1916]), o objeto da ciência linguística seria, dentro da divisão língua/fala, a langue em detrimento da parole. Durante três ou quatro décadas, linguistas de renome como Martinet, Hjelmslev, Benveniste e outros entenderam que a função da linguística era, conforme preconizara o mestre genebrino, investigar os fatos da língua, e não da fala; dessa tarefa se ocuparam intensa e consistentemente. Assim, acreditava-se que, no estudo dessa instituição social, que é a língua, estavam as possibilidades de descrição e demonstração científicas do funcionamento e estrutura das línguas naturais. Mesmo que linguistas como Hjelmslev, Benveniste e Jakobson tenham atinado, respectivamente, para as questões da enunciação e da comunicação e tenham, inclusive, engendrado um corpus teórico bastante consistente, cujas ressonâncias estão presentes em teorias como as dos atos de fala, da pragmática, da interação verbal e da ação verbal; os estudos da linguagem permaneciam aprisionados ao nível da frase, da sentença/enunciado, a uma concepção sistêmica de língua(gem) fundamentada no mais puro objetivismo abstrato. Todavia, é com a abordagem dialógica dos estudos da linguagem feitos por Bakhtin, Medviédev e Volochínov, já nos idos da década de 1920, que o cenário da linguística do século XX começaria – antes mesmo da criação, na França, da Análise do Discurso –, potencialmente, a sofrer alterações que marcariam profundamente, num futuro muito próximo, as bases da ciência linguística. Ultrapassando os limites impostos pelo pensamento saussuriano, dos formalistas russos e de estruturalistas radicais, os teóricos do dialogismo firmaram fundamentos epistemológicos que, apropriados por disciplinas linguísticas, revolucionariam, e de fato revolucionaram, não só a abordagem científica e acadêmica das línguas, mas também sua abordagem na escola e as consequências e/ou efeitos decorrentes dela. As publicações bakhtinianas (e aqui se considerem todas as obras do chamado Círculo de Bakhtin) são tão reveladoras, que alteraram a própria maneira de os homens se relacionarem com a linguagem, com a realidade e consigo mesmos (pelo menos, aqueles que a conhecem). Isso pode ser comprovado com uma superficial passagem pelas obras das ciências humanas da segunda metade do século XX. Ciências como a psicologia, a história, a psicanálise, a antropologia, a sociologia, a geografia, o direito, a teoria literária e as aplicadas como a pedagogia não foram mais as mesmas depois de incorporarem preceitos e construtos da teoria dialógica da linguagem. Referimo-nos à segunda metade do século XX porque é desse período a divulgação das obras do Círculo no Ocidente. Evidentemente, ao lado da tradição linguística, há outra igualmente, ou até mais, antiga: a dos estudos literários. Quanto às investigações da obra literária, podemos dizer que houve quatro grandes tendências de estudo do texto literário na história das disciplinas que dele se ocuparam. A primeira delas é a filologia na Antiguidade e nos séculos XIX e XX; a segunda, poderíamos dizer, é a que orienta os estudos de cunho estilístico; a terceira seria o das correntes de vertente estruturalista; e a quarta seria formada pelas críticas de cunho marxista – neste caso, um marxismo vulgar e/ou mecanicista, que não se confunde com o de Gramsci, Benjamin, Lukács ou Goldman (KONDER, 2013). Essas quatro formas de abordagem do texto literário incorreram em equívocos, ou porque o consideravam como o documento de uma época, capaz de fornecer dados sobre a sociedade, o comportamento dos grupos sociais, ou porque o consideravam a expressão de uma consciência criadora, ou um objeto que produzia o sentido a partir de si mesmo, numa vertente imanentista, ou como um texto que serviria apenas para expressar a ideologia de uma classe social numa dada época, num processo mecânico e automático e representação (BAKHTIN, 2010 [1934-1935]); MEDVIÉDEV, 2012 [1928]; COMPAGNON, 2010; MAINGUENEAU, 2001 [1995], 2006; VOLOCHÍNOV, 2006 [1930], 2013 [1930]; ZILBERMAN, 1989). Mas é com o advento das teorias da enunciação, com o desenvolvimento da pragmática, com o surgimento da análise do discurso e com a divulgação dos trabalhos do “Círculo de Bakhtin”, que envolviam e envolvem temas como dialogismo, polifonia e carnavalização, que o texto literário passa a ser pensado não como documento, ou expressão de uma consciência criadora, ou como um sistema fechado em si mesmo ou um reflexo da ideologia de uma classe social numa dada época (MAINGUENEAU, 2001 [1995], 2006). É também a partir da divulgação dos estudos do “Círculo de Bakhtin”, através de trabalhos como os de Kristeva (1967, 1969, 1974)[2], de Todorov (1981)[3] e da publicação de obras do próprio círculo (BAKHTIN, 1970a, 1970b)[4], dos estudos de Genette (1979, 1982)[5] – no âmbito da Teoria da Literatura –, dos estudos de Authier-Revuz (1982)[6], que se constituiu, nas décadas de 1960 e 1970, um cenário intelectual e teórico que considerava as relações entre textos, a relação com o O/outro, o dialogismo, a heterogeneidade, inter-relações entre textos, história e sujeitos. O tratamento dicotômico dispensado à obra literária separava o texto de seu contexto, a obra de suas condições de produção. Esse modelo é superado quando se considera, numa perspectiva discursiva (MAINGUENEAU, 2001[1995]; MAINGUENEAU, 2006[2005]), que a obra não apenas representa o contexto em que é produzida, mas funda seu próprio contexto de enunciação dentro do campo literário, como parte integrante de um dispositivo comunicacional e institucional. Assim, conceitos como os de dialogismo, intertextualidade, gêneros do discurso, heterogeneidade constitutiva e enunciativa se tornaram frequentes tanto nos estudos literários (teoria e crítica) quanto nos textuais e discursivos (Linguística Textual, Análise do Discurso francesa, estudos bakhtinianos, Semiótica Discursiva) especialmente no Brasil. Aqui, encontramos o nó que amarra este texto ao anterior que publicamos neste blog, ou seja, a intertextualidade como fenômeno que interessa tanto aos estudiosos do primeiro grupo quanto aos do segundo. Retomando nosso texto anterior, sugerimos, entre outras coisas, no seu parágrafo final, “um percurso de investigação que problematizasse as relações entre intertextualidade e dialogismo ao longo da história de seus usos”. Claro está que esse é um empreendimento que não se faz num texto dessa natureza, mas também está claro que podemos levantar discussões neste espaço. Por ora, continuamos a que foi iniciada no texto publicado em maio deste ano. Coerentes com isso, dedicar-nos-emos ao tratamento dado por Koch (1998), Koch e Travaglia (2008 [1990]) e Bentes (2005 [2000]) à intertextualidade. Koch (1998), em O texto e a construção dos sentidos, tenta mostrar as diferenças entre os conceitos de intertextualidade e polifonia; segundo ela, bastante presentes na literatura linguística das últimas décadas. Sendo assim, a autora procede a um levantamento das concepções de intertextualidade em diversos autores como Barthes, Beaugrande e Dressler e outros. Entretanto, ela volta a uma distinção feita num trabalho de 1986 em que discute a intertextualidade em sentido amplo e a intertextualidade em sentido restrito. A primeira diz respeito à intertextualidade como condição para a existência do próprio discurso e/ou de práticas discursivas. É como se cada discurso estivesse entremeado, mesclado e/ou misturado a outros discursos. Essa concepção, para ela, advinda da Análise do Discurso, é talvez a mais aceita por aqueles que trabalham com a intertextualidade. Em outras palavras, o conceito de intertextualidade em sentido amplo se confunde, segundo Koch (1998), com o de interdiscursividade, como assinalado por Authier-Revuz (1982), é como se ele fosse gerado de discursos e textos previamente existentes; desse modo, ele surge como uma resposta, uma contestação, uma síntese dos já ditos, uma vez que discurso algum surgirá do nada. Nas palavras de Maingueneau (1976, p. 39 apud Koch, 1998, p. 47) “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição”. Já a intertextualidade em sentido restrito consiste na relação de um texto com outros existentes. Ela se dá, geralmente, pela presença material de outros textos com fragmentos, citações, pedaços de frase, sentenças etc. Além disso, está classificada em quatro tipos, a saber: a) de conteúdo x de forma/conteúdo; b) explícita x implícita; c) das semelhanças x da diferenças e d) com intertexto alheio, com intertexto próprio ou com intertexto atribuído a um enunciado genérico. Integrariam, pois, esse rol a paráfrase, a paródia, a tradução entre outros. Koch (1998) se fundamenta em autores como Authier, Maingueneau, Pêcheux, Verón (ponto de vista sócio-semiológica), Van Dijk e Kristeva. Disso, depreendemos que, se, por um lado, seria muito difícil ou, praticamente, impossível apresentar-se uma concepção teoricamente “pura” de intertextualidade como hoje a entendemos, ou seja, sem considerar resquício algum das constituições epistemológicas conseguidas através da história de sua formação enquanto categoria, por outro, algo muito semelhante se dá quando a tratamos como fenômeno essencialmente textual, aquela intertextualidade em sentido amplo, que está presente em todas as práticas discursivo-sociais. Quanto à diferenciação entre intertextualidade e polifonia, a autora conclui que há uma diferença básica entre os dois conceitos. Enquanto a polifonia é mais ampla, a intertextualidade seria um tipo de polifonia. Assim, a partir da postulação feita por Ducrot, Koch (1998) considera que toda prática intertextual é também polifônica, mas nem toda polifonia é intertextual. Convém ressaltar, ainda, que, embora busquem uma abordagem de cunho mais linguístico, os estudos de intertextualidade apresentados por Koch (1998) deixam muito claro que sua fonte de pesquisa é também o ensaio A estratégia da forma, de Laurent Jenny (1979), teórico da literatura francês. Koch e Travaglia (2008 [1990]) apresentam a intertextualidade como mais um fator de contextualização ao lado da intencionalidade e da aceitabilidade. Classificam-na em intertextualidade de forma e intertextualidade de conteúdo. A primeira ocorre quando o produtor de um texto usa expressões, fragmentos, trechos, enunciados, o estilo de algum autor ou de determinados discursos. A segunda é constante e diz respeito ao diálogo que há entre textos de uma mesma época, de um mesmo campo do conhecimento, de uma mesma cultura etc. Ela pode, ainda, ser explícita ou implícita: será explícita quando a fonte estiver indicada; e implícita, quando não. Os autores lembram a distinção feita por Afonso Romano de Sant’Anna (1999) entre intertextualidade das semelhanças e intertextualidade das diferenças. Além disso, eles fornecem exemplos ilustrativos de cada uma delas. Nessa obra, os autores apresentam a intertextualidade como um dos fatores determinantes da coerência textual. Em Lingüística textual, publicado no livro Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, Bentes (2005 [2000]), assim como Koch (1998) e Koch e Travaglia (2008 [1990]), coloca a intertextualidade como mais um fator de textualidade usado, geralmente, no processamento textual, seja na produção ou na compreensão. A autora é partidária das concepções apresentadas em obras de Linguística Textual. Dessa forma, seu artigo faz referências às classificações apresentadas por Koch (1998) e Koch e Travaglia (2008 [1990]). Assim como esses autores, ela faz alusão à intertextualidade das diferenças, à intertextualidade explícita, implícita etc. Como vemos, no âmbito da Linguística Textual, há uma “apropriação” peculiar da noção de intertextualidade, tratada, ressaltemos, como uma teoria. As abordagens que fundamentam as reflexões de Koch (1998), Koch e Travaglia (2008 [1990]) e Bentes (2005 [2000]) advêm das mais distintas perspectivas epistemológicas: Kristeva, Barthes, Maingueneau, Pêcheux, Verón, Ducrot, Jenny, Van Dijk, Bakhtin (entenda-se Bakhtin, Medviédev e Volochínov). Aí temos misturados filosofia da linguagem de base marxista, estruturalismo francês de base saussuriana, análise do discurso francesa (em, pelo menos, três perspectivas), pragmática linguística, sócio-semiologia. Cada uma dessas tendências teóricas com suas concepções de sujeito, língua(gem), signo, texto, discurso, comunicação, história, conhecimento, objeto de investigação científica. De fato, desde que Kristeva, na década de 1960, cunhou o termo e a concepção de intertextualidade a partir das reflexões bakhtinianas, tanto o termo quanto o conceito/a concepção passaram por alterações diversas, várias recepções e “apropriações” também várias e peculiares. É, por exemplo, o que depreendemos da Linguística Textual, pelo menos, aqui no Brasil. De um fenômeno constitutivo do texto, a intertextualidade é (re)construída e tratada como um fator de textualidade, mais especificamente “como fator dos mais relevantes na construção da coerência textual” (KOCH, 1998, p. 50), agora associado à cognição, ao sociocognitivismo, a estratégias sociointeracionais e sociocognitivas de produção e de compreensão de textos. Quando relacionada à polifonia, é posta na malha conceitual e terminológica da pragmática linguística de Ducrot, especialmente seus trabalhos dos fins da década de 1970 e inícios da de 1980. Com isso, não estamos defendendo que o conceito foi “deturpado” e que as alterações e apropriações foram negativas; estamos apenas apontando os diferentes modos de concepção e de trabalho com a intertextualidade, neste caso, na Linguística Textual. Evidentemente, o que temos dito até aqui ainda tem caráter especulativo e superficial; afinal, embora Koch (1998), Koch e Travaglia (2008 [1990]) e Bentes (2005 [2000]) sejam expressões significativas da Linguística Textual no Brasil, falta-nos a constituição de corpora que possibilitem uma observação mais panorâmica e profunda da apropriação de intertextualidade como fator da coerência textual. Por ora, contentamo-nos em apresentar, mesmo que brevemente, uma das muitas influências ou alterações possibilitadas em vários campos do conhecimento pelo pensamento bakhtiniano. Se aqui esboçamos essa influência nos estudos linguístico-textuais dos processos de produção e de compreensão de textos de base sociointeracionista e sociocognitivista, nossa próxima publicação versará sobre essas influências e alterações nos estudos literários. Referências BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo de Aurora Bernardini et al. 6 ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2010. AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une approche de l’autre dans le discours, DRLAV, nº 26. Paris, 1982. BENTES, A. C. Lingüística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005. V. 2. COMPAGNON, A. O demônio da teoria. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. JENNY, L. et al. Intertextualidades – Poétique nº27. Coimbra: Almedina, 1979. KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1998. KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. 8 ed. São Paulo: Contexto, 2008. KONDER, L. Os marxistas e a arte. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013. MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução do russo de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012. MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006. SANTANA, Afonso R. de. Paródia, paráfrase & Cia. 7 ed. São Paulo: Ática, 1999. SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Tradução do francês de Antonio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. 28 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. VOLOCHÍNOV, V. N. Sobre as fronteiras entre a poética e a linguística. In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2013 [1930]. ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. [1] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara. [2] Revista Critique: “Bakhtin, o discurso, o diálogo, o romance”, 1967; informação recolhida de FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008, p. 14. Kristeva, Sémiotiké, Seuil, 1969. Kristeva, La révolution du langue poétique, Seuil, 1974. [3] TODOROV, T. M. Bakhtin, Le principle dialogic, 1981. [4] BAKHTIN, M. L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance. Paris: Gallimard, 1970. BAKHTIN, M. La poétique de Dostoïevski. Paris: Seuil, 1970. [5] GENETTE, G. Introduction à l’architexte. Paris: Seuil, 1979. GENETTE, G. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982. [6] AUTHIER-REVUZ, J. “Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une approche de l’autre dans Le discours”, DRLAV, 26. Paris, 1982.
- O ATO DE LER NA ESCOLA E NA VIDA
Jessica de Castro Gonçalves Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado linguístico do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo. Essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início , às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2011, p. 271) Interagir com o(s) outro(s) em sociedade é constitutivo da vida do sujeito. Ouço, falo, silencio, respondo, concordo e discordo não somente a/de pessoas, mas do que por elas é enunciado. As relações que estabelecemos são, de acordo com as ideias do Círculo de Bakhtin/Mediviédev/Volochínov, mediadas pela linguagem em suas diversas naturezas. Produzimos enunciados a partir de enunciados, os quais se alteram de acordo com os propósitos valorativos escolhidos pelo sujeito. Bakhtin discute que essa interação vai mais além do que certos esquemas de comunicação propostos por pensamentos da linguística, baseados naquele que fala e naquele que escuta. Na epígrafe acima, o autor questiona a passividade do sujeito. Segundo ele, mesmo na condição de ouvinte, este já se posiciona ativa e responsivamente àquilo que ouve. Mesmo que haja um momento de recepção e silêncio, nesta já começa a posição responsiva do sujeito, nunca passivo. O silêncio pode até existir, mas este já é uma escolha, a qual é valorativamente responsiva. Posiciono-me aquilo que ouço, de acordo com as valorações que possuo, as quais podem se modificar segundo as diversas situações de interação. A esse processo constitutivo da vida, de colocar-se ante a enunciados, e estabelecer diálogos e posicionamentos segundo intenções axiológicas, podemos chamar leitura. Lê-se em cada momento da nossa vivência, pois se o relacionar em sociedade se dá por meio de enunciados, ler é algo integrante do ato de viver. Há aqueles que reduzem a leitura somente àqueles momentos em que colocamo-nos ante a enunciados, seja este de qualquer natureza (verbo-voco-visual), com objetivo de olhar para este e lê-los. No entanto, se viver é posicionar-se ante a enunciados a todo momento, viver é ler. A leitura do mundo e a leitura da palavra são processos concomitantes na constituição dos sujeitos. Ao’ lermos’ o mundo, usamos palavras. Ao lermos as palavras reencontramos leituras do mundo. Em cada palavra, a história das compreensões do passado e a construção das compreensões do presente que se projetam como futuro. Na palavra, passado presente e futuro se articulam. (GERALDI, 2010, p.32) João Wanderley Geraldi, ao discutir a constituição da subjetividade nas diversas interações estabelecidas entre sujeitos, a partir das concepções bakhtinianas, traz a leitura como um elemento presente e essencial na/à formação do sujeito. Segundo o autor, na epígrafe acima, ler palavras é ir muito além do linguístico, é um olhar para o mundo. Ao se colocar ante a um enunciado, qualquer que seja este, iniciam-se diálogos com vozes, discursos e posicionamentos diversos. A leitura é colocada pelo autor não como algo solitário, mas como um encontro com discursos passados, presentes e futuros. Ler constitui-se, portanto um ato. Nas discussões sobre a natureza deste, travadas pelo Círculo de Bakhtin/Medviédev/Voloschínov, o viver do sujeito é formado pelos seus posicionamentos valorativos e axiológicos, sobre os quais é responsável, assumidos de maneira responsiva ao(s) outro(s) em sociedade. Se a leitura nos coloca diante de modos diversos de olhar o mundo e compreender o presente, o passado e o futuro, ela configura-se como um ato na medida em que ler é posicionar-se responsiva e responsavelmente, de forma valorativa, às vozes presentes naquilo que é lido, e aos outros envolvidos nos contexto de produção e recepção dos enunciados. A leitura então é um ato constante no dia a dia do ser humano, no inconclusivo processo de formação deste como sujeito nas diversas interações sociais. Em cada uma destas é necessário olhar e compreender os significados aflorados nos enunciados, com as mais diferentes funções sociais. A vida em sociedade exige-nos o ler e o entender do verbal e do visual, do dito e do não dito em/de espaços e momentos variados. Dada essa importância desse ato na constituição do sujeito e parte integrante da vida, um lugar social no qual ele é colocado como uma atividade a ser praticada e aprendida é a escola, a qual tem como objetivo geral a formação de sujeitos. Geraldi (2010) discute a existência de diversos gêneros na sala de aula a partir do objetivo educacional de preparo para as situações reais de interação social. No entanto acaba-se em alguns momentos gerando-se uma separação: ler na escola e ler na vida, ler na escola para preparar para a vida. Seria isso a leitura? Uma atividade? Um colocar-se ante a um texto em um determinado suporte somente? Haveria na escola, ao se proporem a partir da década de 80/90 vários gêneros (tiras, charges, notícias, etc) uma simples simulação do real, para o preparo do aluno para a vida em sociedade? Ler na escola seria apenas um simulacro da sociedade? A escola é um espaço social em que sujeitos estão socialmente organizados e hierarquizados. Há relações ideológicas diversas nesse lugar, as quais variam de instituição para instituição, de sala para sala, de sujeitos para sujeitos. Os outros deste lugar influenciam a constituição dos enunciados e dos posicionamentos do aluno e do professor. Estes enunciam e se posicionam responsivamente, de maneiras variadas, às avaliações propostas, à figura do professor, dos outros alunos, dos pais e da instituição escola. Esse espaço é hierárquico e formado por embates entre sujeitos e seus discursos e ideologias. Há aqueles que na condição de superiores, mais inteligentes e detentores de saber podem fazer outros se silenciarem ante a eles. Ao passo que podem gerar atos de posicionamento de oposição por parte de outros. Há alunos que escolhem falar o que pensam que o professor quer ouvir, mesmo não concordando, para obter certa nota, ao mesmo tempo em que há os que escolhem se posicionar contra o lugar do professor, por meio de risos, piadas, indiferenças e até mesmo silencio. O aluno pode exprimir o que pensa de verdade, em oposição ao professor e outros sujeitos, ou simplesmente falar o que não pensa ou se calar. O professor poder ou não moldar seus enunciados segundo os alunos e o instituído pela instituição escola e pelos pais. Há na escola submissão, resistência, oposição, luta por poder entre outros atos que há também em sociedade. As relações de poder nesse ambiente são inúmeras, e os sujeitos em meio aos vários outros, posições hierárquicas e ideologias, são colocados ante a enunciados e posicionam-se a todo momento a eles. O ato de ler em sala de aula começa muito antes do soar do sinal e do início das aulas. À medida que o aluno, nas várias interações, entra em contato com enunciados e posiciona-se ante a eles, o ato de ler já acontece. Leitura não se constitui apenas a atividade da prova ou um texto diante dos olhos dos alunos/professor para responder perguntas, mas o olhar para aquilo enunciado pelos outros e o ato responsivo ante a isto. Ler na escola é ler na vida. Aluno e professor leem. Em sociedade também lemos e nos posicionamos a enunciados em meio a relações ideológicas, hierárquicas e de poder. Se olharmos para a leitura em sala de aula como uma atividade, uma simples simulação da realidade, reduzimo-la. O ato de ler é algo muito mais complexo e muito mais presente e integrante na vida do sujeito. A sala de aula já é realidade, e já é vida em sociedade, à medida que ali discursos encontram-se em embate em meio a relações ideológicas. É necessário refletir sobre isso. Referências BAKHTIN, M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João editores, 2010.
- O ATO DE LER NA ESCOLA E NA VIDA
Jessica de Castro Gonçalves Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado linguístico do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo. Essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início , às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2011, p. 271) Interagir com o(s) outro(s) em sociedade é constitutivo da vida do sujeito. Ouço, falo, silencio, respondo, concordo e discordo não somente a/de pessoas, mas do que por elas é enunciado. As relações que estabelecemos são, de acordo com as ideias do Círculo de Bakhtin/Mediviédev/Volochínov, mediadas pela linguagem em suas diversas naturezas. Produzimos enunciados a partir de enunciados, os quais se alteram de acordo com os propósitos valorativos escolhidos pelo sujeito. Bakhtin discute que essa interação vai mais além do que certos esquemas de comunicação propostos por pensamentos da linguística, baseados naquele que fala e naquele que escuta. Na epígrafe acima, o autor questiona a passividade do sujeito. Segundo ele, mesmo na condição de ouvinte, este já se posiciona ativa e responsivamente àquilo que ouve. Mesmo que haja um momento de recepção e silêncio, nesta já começa a posição responsiva do sujeito, nunca passivo. O silêncio pode até existir, mas este já é uma escolha, a qual é valorativamente responsiva. Posiciono-me aquilo que ouço, de acordo com as valorações que possuo, as quais podem se modificar segundo as diversas situações de interação. A esse processo constitutivo da vida, de colocar-se ante a enunciados, e estabelecer diálogos e posicionamentos segundo intenções axiológicas, podemos chamar leitura. Lê-se em cada momento da nossa vivência, pois se o relacionar em sociedade se dá por meio de enunciados, ler é algo integrante do ato de viver. Há aqueles que reduzem a leitura somente àqueles momentos em que colocamo-nos ante a enunciados, seja este de qualquer natureza (verbo-voco-visual), com objetivo de olhar para este e lê-los. No entanto, se viver é posicionar-se ante a enunciados a todo momento, viver é ler. A leitura do mundo e a leitura da palavra são processos concomitantes na constituição dos sujeitos. Ao’ lermos’ o mundo, usamos palavras. Ao lermos as palavras reencontramos leituras do mundo. Em cada palavra, a história das compreensões do passado e a construção das compreensões do presente que se projetam como futuro. Na palavra, passado presente e futuro se articulam. (GERALDI, 2010, p.32) João Wanderley Geraldi, ao discutir a constituição da subjetividade nas diversas interações estabelecidas entre sujeitos, a partir das concepções bakhtinianas, traz a leitura como um elemento presente e essencial na/à formação do sujeito. Segundo o autor, na epígrafe acima, ler palavras é ir muito além do linguístico, é um olhar para o mundo. Ao se colocar ante a um enunciado, qualquer que seja este, iniciam-se diálogos com vozes, discursos e posicionamentos diversos. A leitura é colocada pelo autor não como algo solitário, mas como um encontro com discursos passados, presentes e futuros. Ler constitui-se, portanto um ato. Nas discussões sobre a natureza deste, travadas pelo Círculo de Bakhtin/Medviédev/Voloschínov, o viver do sujeito é formado pelos seus posicionamentos valorativos e axiológicos, sobre os quais é responsável, assumidos de maneira responsiva ao(s) outro(s) em sociedade. Se a leitura nos coloca diante de modos diversos de olhar o mundo e compreender o presente, o passado e o futuro, ela configura-se como um ato na medida em que ler é posicionar-se responsiva e responsavelmente, de forma valorativa, às vozes presentes naquilo que é lido, e aos outros envolvidos nos contexto de produção e recepção dos enunciados. A leitura então é um ato constante no dia a dia do ser humano, no inconclusivo processo de formação deste como sujeito nas diversas interações sociais. Em cada uma destas é necessário olhar e compreender os significados aflorados nos enunciados, com as mais diferentes funções sociais. A vida em sociedade exige-nos o ler e o entender do verbal e do visual, do dito e do não dito em/de espaços e momentos variados. Dada essa importância desse ato na constituição do sujeito e parte integrante da vida, um lugar social no qual ele é colocado como uma atividade a ser praticada e aprendida é a escola, a qual tem como objetivo geral a formação de sujeitos. Geraldi (2010) discute a existência de diversos gêneros na sala de aula a partir do objetivo educacional de preparo para as situações reais de interação social. No entanto acaba-se em alguns momentos gerando-se uma separação: ler na escola e ler na vida, ler na escola para preparar para a vida. Seria isso a leitura? Uma atividade? Um colocar-se ante a um texto em um determinado suporte somente? Haveria na escola, ao se proporem a partir da década de 80/90 vários gêneros (tiras, charges, notícias, etc) uma simples simulação do real, para o preparo do aluno para a vida em sociedade? Ler na escola seria apenas um simulacro da sociedade? A escola é um espaço social em que sujeitos estão socialmente organizados e hierarquizados. Há relações ideológicas diversas nesse lugar, as quais variam de instituição para instituição, de sala para sala, de sujeitos para sujeitos. Os outros deste lugar influenciam a constituição dos enunciados e dos posicionamentos do aluno e do professor. Estes enunciam e se posicionam responsivamente, de maneiras variadas, às avaliações propostas, à figura do professor, dos outros alunos, dos pais e da instituição escola. Esse espaço é hierárquico e formado por embates entre sujeitos e seus discursos e ideologias. Há aqueles que na condição de superiores, mais inteligentes e detentores de saber podem fazer outros se silenciarem ante a eles. Ao passo que podem gerar atos de posicionamento de oposição por parte de outros. Há alunos que escolhem falar o que pensam que o professor quer ouvir, mesmo não concordando, para obter certa nota, ao mesmo tempo em que há os que escolhem se posicionar contra o lugar do professor, por meio de risos, piadas, indiferenças e até mesmo silencio. O aluno pode exprimir o que pensa de verdade, em oposição ao professor e outros sujeitos, ou simplesmente falar o que não pensa ou se calar. O professor poder ou não moldar seus enunciados segundo os alunos e o instituído pela instituição escola e pelos pais. Há na escola submissão, resistência, oposição, luta por poder entre outros atos que há também em sociedade. As relações de poder nesse ambiente são inúmeras, e os sujeitos em meio aos vários outros, posições hierárquicas e ideologias, são colocados ante a enunciados e posicionam-se a todo momento a eles. O ato de ler em sala de aula começa muito antes do soar do sinal e do início das aulas. À medida que o aluno, nas várias interações, entra em contato com enunciados e posiciona-se ante a eles, o ato de ler já acontece. Leitura não se constitui apenas a atividade da prova ou um texto diante dos olhos dos alunos/professor para responder perguntas, mas o olhar para aquilo enunciado pelos outros e o ato responsivo ante a isto. Ler na escola é ler na vida. Aluno e professor leem. Em sociedade também lemos e nos posicionamos a enunciados em meio a relações ideológicas, hierárquicas e de poder. Se olharmos para a leitura em sala de aula como uma atividade, uma simples simulação da realidade, reduzimo-la. O ato de ler é algo muito mais complexo e muito mais presente e integrante na vida do sujeito. A sala de aula já é realidade, e já é vida em sociedade, à medida que ali discursos encontram-se em embate em meio a relações ideológicas. É necessário refletir sobre isso. Referências BAKHTIN, M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João editores, 2010.
- DAS LEITURAS EM FOUCAULT E AS EPIFANIAS COTIDIANAS (POR QUE NÃO?)
Glaucia Vaz Quando assistimos às aulas de texto acadêmico, nossa principal lição é citar as referências, apontar o embasamento teórico, dar nome aos tigres. No entanto, se partimos para a leitura de grandes pensadores franceses, por exemplo, caímos numa grande cilada: eles não fazem as referências. Pelo menos não da maneira como aprendemos. Digamos que nossa obrigação seria a de saber o que leram e de quem se trata tal conceito ou livro ou pesquisa. Em momentos como esses, simplesmente dizemos que Foucault funda/cria/propõe uma genealogia do poder. E há lá em seus textos, aqui, acolá (ou não!), o nome Nietzsche. Porém, seguimos leitura, citações, estudos etc sem dar importância a esse nome e de que forma ele entrou ali. De repente, aparece outro nome alemão, Heidegger. Porém, como não somos estudantes de filosofia, bem, não nos cabe realizar uma busca das relações entre esses filósofos e outros (Sim, isso existe na academia). Além disso, nossa tarefa seria a de buscar conceitos que serão discutidos para a Análise do Discurso e isso não implicaria definitivamente ler Nietzsche ou Heidegger, de acordo com uma espécie de “senso comum” acadêmico”. Remeto-me a uma observação que, longe de ser nova, é ainda recorrente: à leitura de Foucault para trazer dele conceitos para a Análise do Discurso. Vejo que muitos pesquisadores, respeitados e com trabalhos importantíssimos para a área, ainda se recusam a ver que Foucault não se lê por si só. E que, como área de entremeio, é evidente que transitemos, nem que seja a título de (e principalmente por isso) posicionar nosso lugar de pesquisa, de recortar nosso objeto e definir nossa perspectiva metodológica. Ora, este texto trata muito mais de um desabafo sobre certa petulância acadêmica do que propriamente sobre o que Heidegger tem a ver com Foucault. Porém, ainda assim, quero apontar, para não ficar apenas na crítica sem fundamento, um pequeno exemplo da necessidade de se conhecer a relação de Foucault não apenas com estes dois alemães, mas com outros estudiosos – embora eu fique com a relação entre este filósofo francês e o proponente do Dasein. Ler tais autores, não necessariamente para se tornar um expert em suas obras, dá-nos uma localização bastante frutuosa nos estudos foucaultianos. Afinal, mesmo que dele busquemos o que é operatório e conceitual para a Análise do Discurso, é importante considerarmos que o pensamento de Foucault não veio de um nada e, principalmente, como o próprio Foucault nos ensina, as epistemes são discursos, portanto, marcadas historicamente. O ponto de partida será esta fala de Foucault e, logo adiante, apontarei o papel de Heidegger para a importância de Nietzsche: Certamente, Heidegger foi sempre para mim o filósofo essencial. Comecei a ler Hegel, depois Marx, e me pus a ler Heidegger em 1951 ou 1951; e, em 1953, li Nietzsche. Tenho ainda aqui as notas que fiz sobre Heidegger no momento em que o lia (tenho toneladas!), e elas são mais importantes do que as que eu tinha feito sobre Hegel e Marx. Todo meu devir filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger. Mas reconheço que foi Nietzsche quem ganhou. Eu não conheço suficientemente Heidegger, não conheço praticamente Ser e tempo nem as coisas editadas recentemente. Meu conhecimento de Nietzsche é muito melhor do que o que tenho de Heidegger. No entanto, essas são as duas experiências fundamentais que fiz. É provável que, se eu não tivesse lido Heidegger, não teria lido Nietzsche. Eu tinha tentado ler Nietzsche nos anos cinquenta, mas Nietzsche sozinho não me dizia nada! Nietzsche junto com Heidegger, esse foi o choque filosófico! (FOUCAULT apud CASTRO, 2009, p. 200). Sem Heidegger, não haveria leitura de Nietzsche. Eis uma ótima oportunidade de se perguntar de onde Foucault tirou essa ideia brilhante de genealogia, de enunciado, de ética e estética de si, de poder etc? Uma resposta esperada poderia ser: não importa de onde, já que não nos preocupamos com a origem ou ele buscou em Nietzsche. Da primeira, posso dizer: sim, não se trata da origem, mas de uma postura científica ignorante. Afinal, um postulado teórico aparece em negação ao outro e devemos considerar a historicidade dos saberes; da segunda, posso dizer: e de onde Nietzsche tirou tal ideia? Então, voltaria à primeira pergunta. Ora, realmente não se trata de buscar a origem do pensamento de determinado estudioso, mas de saber seu campo de luta. Os saberes são produzidos. E são produzidos em meio às lutas, ao embate e ao exercício de poder em que se busca fazer valer, cada qual, suas verdades. Quem nunca leu Arqueologia do saber e ficou meio perdido pelo fato de que o livro não diz, primeiramente, o que são os conceitos enunciado, discurso, formação discursiva? O livro começa dizendo o que esses conceitos não são. Começa por dizer como não se fazer história, como não olhar para a descontinuidade como problema e resto. O que temos é que o enunciado, por exemplo, não é frase, não é speech nem proposição… Nada mais foucaultiano. Voltando a Heidegger em Foucault num embate com Nietzsche (sim, nessa relação). Heidegger e Nietzsche tiveram em comum uma crítica à Metafísica que se iniciou desde Sócrates e Platão. Como cada um a criticou é a questão. Se, para Heidegger, a Metafísica se esqueceu do Ser para tratar do ente, para Nietzsche a questão não era o Ser e, sim, o ente. E isso está em Foucault. De maneira geral, Heidegger critica a Metafísica do ente (que, para ele, não era efetivamente uma Metafísica) e propõe a Metafísica propriamente dita, que pensa o Ser (“e agora, José?” Ser e ente, isso não estava no programa da disciplina de Análise do Discurso). Heidegger é conhecido por nos dar o ser aí (pre-sença). O susto não é preciso. No colegial e nas aulas de teoria da literatura, lemos sobre a epifania em Clarice Lispector. Entre comer uma barata e amar o cego que mascava chicletes há algo de projetar-se para fora de si: existir (ex-istir). Grosso modo, sair da facticidade, do cotidiano e do viver automático para projetar-se e tornar-se um ser no mundo, um ser para os outros e um ser para a morte… A epifania lispectoriana é essa angústia de assumir a responsabilidade de existir, compreendendo o sentido do Ser e tornando-se ser-aí. Ufa![1] Mariana Lima no monólogo A Paixão segundo GH, de Clarice Lispector, com direção de Enrique Diaz. O que isso tem a ver com Foucault, cuja obra se volta exatamente para a materialidade, para os sujeitos em seu cotidiano? Exatamente porque são formas de pensar opostas. Eis que “Nietzsche venceu”. Para compreender Nietzsche é preciso ver que houve um batimento entre a transcendência do Ser que busca um lugar em que a Verdade está fora do Ser para se chegar ao posicionamento de que os entes produzem verdades. Nietzsche falava da ilusão de uma Verdade que está em algum lugar esperando para que o Ser a alcance. Falava da construção de verdades “deste mundo” dos entes, ou seja, dos sujeitos em seu cotidiano, em sua historicidade. Há críticas a ambos os pensadores alemães quanto ao fato de proporem um abandono da Metafísica (que até então se fazia) sem deixar de fazer Metafísica. No entanto, se Heidegger nega um determinado tipo de Metafísica, em que a preocupação com o Ser é esquecida para dar conta do ente, Nietzsche se propõe a não fazer metafísica, nem no sentido criticado por Heidegger (ente), nem no sentido dado por Heidegger (voltar a pensar o Ser). E admitimos que se trata de assunto para outro texto e para mais cabeças. Nietzsche está em Foucault e, sem Heidegger para se fazer uma contraposição radical, Nietzsche não faria sentido. Portanto, este texto é muito mais sobre a contribuição das contradições do que da contribuição das convergências. Quando se pensa em Heidegger como filósofo essencial para Foucault, vemos que a contraposição radical entre Heidegger e Nietzsche serve de referência para o pensamento de Foucault. É na negação que Foucault sempre constrói seu pensamento. E nada melhor do que, na contramão de Heidegger, fazer valer o sujeito como produtor da verdade e fazer do cotidiano a própria materialidade para compreender o sujeito. O objetivo mesmo é compreender determinadas teorias ou pensamentos em sua negação a outras teorias ou pensamentos. O conhecimento se dá pela negação daquilo que foi efetivamente produzido. Se isso é ser chamada estruturalista (no seu sentido amplo), sim, que seja. Pois é a materialidades que quero me referir. Ao que está ali, posto, produzido, criado e que serve de matéria prima para o novo… E que a origem é uma questão vã quando se tem a positividade para refletir e para nos compreender enquanto sujeitos. REFERÊNCIAS CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Tradução de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo (parte I). Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 2005. ___. Carta sobre o Humanismo. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua obra. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. [1] Sugiro a leitura do capítulo “A despeito de Heidegger”, de Paul Veyne, cuja referência está ao final do texto.






