Jessica de Castro Gonçalves
Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado linguístico do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo. Essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início , às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2011, p. 271)
Interagir com o(s) outro(s) em sociedade é constitutivo da vida do sujeito. Ouço, falo, silencio, respondo, concordo e discordo não somente a/de pessoas, mas do que por elas é enunciado. As relações que estabelecemos são, de acordo com as ideias do Círculo de Bakhtin/Mediviédev/Volochínov, mediadas pela linguagem em suas diversas naturezas. Produzimos enunciados a partir de enunciados, os quais se alteram de acordo com os propósitos valorativos escolhidos pelo sujeito.
Bakhtin discute que essa interação vai mais além do que certos esquemas de comunicação propostos por pensamentos da linguística, baseados naquele que fala e naquele que escuta. Na epígrafe acima, o autor questiona a passividade do sujeito. Segundo ele, mesmo na condição de ouvinte, este já se posiciona ativa e responsivamente àquilo que ouve. Mesmo que haja um momento de recepção e silêncio, nesta já começa a posição responsiva do sujeito, nunca passivo. O silêncio pode até existir, mas este já é uma escolha, a qual é valorativamente responsiva. Posiciono-me aquilo que ouço, de acordo com as valorações que possuo, as quais podem se modificar segundo as diversas situações de interação.
A esse processo constitutivo da vida, de colocar-se ante a enunciados, e estabelecer diálogos e posicionamentos segundo intenções axiológicas, podemos chamar leitura. Lê-se em cada momento da nossa vivência, pois se o relacionar em sociedade se dá por meio de enunciados, ler é algo integrante do ato de viver. Há aqueles que reduzem a leitura somente àqueles momentos em que colocamo-nos ante a enunciados, seja este de qualquer natureza (verbo-voco-visual), com objetivo de olhar para este e lê-los. No entanto, se viver é posicionar-se ante a enunciados a todo momento, viver é ler.
A leitura do mundo e a leitura da palavra são processos concomitantes na constituição dos sujeitos. Ao’ lermos’ o mundo, usamos palavras. Ao lermos as palavras reencontramos leituras do mundo. Em cada palavra, a história das compreensões do passado e a construção das compreensões do presente que se projetam como futuro. Na palavra, passado presente e futuro se articulam. (GERALDI, 2010, p.32)
João Wanderley Geraldi, ao discutir a constituição da subjetividade nas diversas interações estabelecidas entre sujeitos, a partir das concepções bakhtinianas, traz a leitura como um elemento presente e essencial na/à formação do sujeito. Segundo o autor, na epígrafe acima, ler palavras é ir muito além do linguístico, é um olhar para o mundo. Ao se colocar ante a um enunciado, qualquer que seja este, iniciam-se diálogos com vozes, discursos e posicionamentos diversos. A leitura é colocada pelo autor não como algo solitário, mas como um encontro com discursos passados, presentes e futuros.
Ler constitui-se, portanto um ato. Nas discussões sobre a natureza deste, travadas pelo Círculo de Bakhtin/Medviédev/Voloschínov, o viver do sujeito é formado pelos seus posicionamentos valorativos e axiológicos, sobre os quais é responsável, assumidos de maneira responsiva ao(s) outro(s) em sociedade. Se a leitura nos coloca diante de modos diversos de olhar o mundo e compreender o presente, o passado e o futuro, ela configura-se como um ato na medida em que ler é posicionar-se responsiva e responsavelmente, de forma valorativa, às vozes presentes naquilo que é lido, e aos outros envolvidos nos contexto de produção e recepção dos enunciados.
A leitura então é um ato constante no dia a dia do ser humano, no inconclusivo processo de formação deste como sujeito nas diversas interações sociais. Em cada uma destas é necessário olhar e compreender os significados aflorados nos enunciados, com as mais diferentes funções sociais. A vida em sociedade exige-nos o ler e o entender do verbal e do visual, do dito e do não dito em/de espaços e momentos variados.
Dada essa importância desse ato na constituição do sujeito e parte integrante da vida, um lugar social no qual ele é colocado como uma atividade a ser praticada e aprendida é a escola, a qual tem como objetivo geral a formação de sujeitos. Geraldi (2010) discute a existência de diversos gêneros na sala de aula a partir do objetivo educacional de preparo para as situações reais de interação social. No entanto acaba-se em alguns momentos gerando-se uma separação: ler na escola e ler na vida, ler na escola para preparar para a vida. Seria isso a leitura? Uma atividade? Um colocar-se ante a um texto em um determinado suporte somente? Haveria na escola, ao se proporem a partir da década de 80/90 vários gêneros (tiras, charges, notícias, etc) uma simples simulação do real, para o preparo do aluno para a vida em sociedade? Ler na escola seria apenas um simulacro da sociedade?
A escola é um espaço social em que sujeitos estão socialmente organizados e hierarquizados. Há relações ideológicas diversas nesse lugar, as quais variam de instituição para instituição, de sala para sala, de sujeitos para sujeitos. Os outros deste lugar influenciam a constituição dos enunciados e dos posicionamentos do aluno e do professor. Estes enunciam e se posicionam responsivamente, de maneiras variadas, às avaliações propostas, à figura do professor, dos outros alunos, dos pais e da instituição escola. Esse espaço é hierárquico e formado por embates entre sujeitos e seus discursos e ideologias. Há aqueles que na condição de superiores, mais inteligentes e detentores de saber podem fazer outros se silenciarem ante a eles. Ao passo que podem gerar atos de posicionamento de oposição por parte de outros. Há alunos que escolhem falar o que pensam que o professor quer ouvir, mesmo não concordando, para obter certa nota, ao mesmo tempo em que há os que escolhem se posicionar contra o lugar do professor, por meio de risos, piadas, indiferenças e até mesmo silencio. O aluno pode exprimir o que pensa de verdade, em oposição ao professor e outros sujeitos, ou simplesmente falar o que não pensa ou se calar. O professor poder ou não moldar seus enunciados segundo os alunos e o instituído pela instituição escola e pelos pais. Há na escola submissão, resistência, oposição, luta por poder entre outros atos que há também em sociedade.
As relações de poder nesse ambiente são inúmeras, e os sujeitos em meio aos vários outros, posições hierárquicas e ideologias, são colocados ante a enunciados e posicionam-se a todo momento a eles. O ato de ler em sala de aula começa muito antes do soar do sinal e do início das aulas. À medida que o aluno, nas várias interações, entra em contato com enunciados e posiciona-se ante a eles, o ato de ler já acontece. Leitura não se constitui apenas a atividade da prova ou um texto diante dos olhos dos alunos/professor para responder perguntas, mas o olhar para aquilo enunciado pelos outros e o ato responsivo ante a isto.
Ler na escola é ler na vida. Aluno e professor leem. Em sociedade também lemos e nos posicionamos a enunciados em meio a relações ideológicas, hierárquicas e de poder. Se olharmos para a leitura em sala de aula como uma atividade, uma simples simulação da realidade, reduzimo-la. O ato de ler é algo muito mais complexo e muito mais presente e integrante na vida do sujeito. A sala de aula já é realidade, e já é vida em sociedade, à medida que ali discursos encontram-se em embate em meio a relações ideológicas. É necessário refletir sobre isso.
Referências
BAKHTIN, M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro e João editores, 2010.
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