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  • Para ser: viver o paradoxo

    Bárbara Melissa Santana e Luciane de Paula “O ser humano contemporâneo se sente seguro, com inteira liberdade e conhecedor de si, precisamente lá onde ele, por princípio, não está, isto é, no mundo autônomo de um domínio cultural e da sua lei imanente de criação; mas se sente inseguro, privado de recursos e desanimado quando se trata dele mesmo, quando ele é o centro da origem do ato, na vida real e única. Ou seja, agimos com segurança quando o fazemos não partindo de nós mesmos, mas como alguém possuído da necessidade imanente do sentido deste ou de outro domínio da cultura.” (Para uma filosofia do ato responsável, Bakhtin) Do início, o ponto de partida da dúvida: quem somos nós? Sujeitos constituintes e constituídos por uma sociedade composta por modelos, padrões e diversas ideologias. Valores incutidos a determinadas formas de pensamento que geram e regeneram pontos de vista de grupos, partes configuradas em um complexo cultural com perspectivas dominantes e cotidianas, bem como por defensores autônomos de “verdades”, muitas vezes, impostas, aceitas e veementemente reproduzidas. Mas, como somos constituintes e constituídos? Por meio de discursos que se concretizam em textos. Enunciados amalgamados em um extrato superior homogêneo determinante, tanto quanto no dia-a-dia, numa perspectiva sócio-individual. O olhar dos sujeitos se constrói sob as sombras de superestruturas sociais em embate constante com a experiência vivida na infraestrutura, em grupos sociais cotidianos. O individual também se compõe de maneira dialética com o social. E os sujeitos assim se constituem em nós. O posicionamento individual é concebido, nessa sociedade e nessa época em que vivemos, mascaradamente, como perspectiva particular, interiormente indivisível. O “Eu” é a base de uma sociedade narcísica, voltada à ilusão de sua unidade, calcada em traumas e neuroses centradas na visão unilateral do “ego sunt”. Entretanto, os estudos do Círculo revelam que não há “eu” sem “outro”, assim como não existe discurso individual que não responda a discursos existentes ou por-vir, uma vez que tanto a constituição dos sujeitos quanto a dos discursos ocorre de maneira indissociável (os sujeitos só existem quando enunciados e os enunciados só existem quando proferidos por sujeitos). Bakhtin e o os demais filósofos do Círculo concebem a constituição dos sujeitos e dos discursos por meio da ligação desmesurável com outros discursos e sujeitos, tanto aqueles já proferidos quanto os ainda não construídos, constituintes de nossa “memória de futuro”. Essa perspectiva salienta o caráter não-individual (no sentido imanente e gramatical do termo) dos enunciados e dos sujeitos. Para os filósofos russos, um é sempre, no mínimo, dois. O “eu” é, ao mesmo tempo, “eu”-“outro”, tanto sujeito quanto enunciado. Desse ponto de vista, o sujeito atua sob e sobre uma gama de fatores ideológicos que delineiam sua “realidade”. Nesse cenário, verificamos o “sentir-se seguro” relatado por Bakhtin em Para uma Filosofia do Ato Responsável. “Ser livre”, mas pensar a partir do pré-concebido ou permitido consensualmente; a expressão da “própria opinião” que reproduz uma perspectiva já digerida; “certezas” que compõem uma comodidade falha e fugidia que garante a reprodução sistêmica. Por isso, Bakhtin “prega” o “não-álibi da existência” como /dever-fazer/ para o despertar da consciência, atado a uma realidade, mediante um discurso de alienação de si, do outro e da relação ente-espécie. A ética responsiva e consciente como possibilidade única de enfrentamento e ruptura com a hegemonia reinante, que adormece os sujeitos e transforma seus atos em ações. O filósofo russo propõe uma inversão enunciativa: tornar-se sujeito como tornar-se autor, dono de seu nariz nessa rede tramada por fios invisíveis que nos faz marionetes em nossas ações. Agir com consciência: atuar. O ato, não como resultado, mas como processo constitutivo responsivo e responsável dos sujeitos é, sem dúvidas, para o Círculo, a expressão sem álibi e de total encargo de nossas tramas sujeito-enunciativas. Afinal, o sujeito não é apenas um. Sua unidade é divisível. Melhor, multiplicável, como declamou Pessoa em uma de suas pessoas (Álvaro de Campos): “Multipliquei-me para me sentir / Para me sentir, precisei sentir tudo / Transbordei, não fiz senão extravasar-me”. O sujeito (“eu”) é uma infinidade de “outros” que emanam de seu “eu” e de demais direções, um complexo de aspectos provenientes de “outros”. Esses “outros” que constituem o “eu” são discursos e estes, encadeamentos de inúmeras opiniões divergentes que elaboram o mundo. Somos, portanto, fragmentos de totalidades de sujeitos (e) enunciados que constroem o mundo que nos envolve. Somos mosaico formados na relação de diálogo que nos transforma, reforma, dá forma e não nos delineia. De-linear, impor linha, limite e isso, de limites e ponto final, não nos envolve. Acima de tudo por sermos in-acabados. Sem limiar entre “eu” e o “outro”. Sem bordas, sem ser fôrma, em forma-ação, constantemente, em infinita construção. Temos, nesse espaço de “ser” múltiplo, a responsabilidade do que somos ao mesmo tempo em que somos em um espaço que não é completamente nosso. Somos influenciados e construídos nessa arena de discursos que também construímos e influenciamos. Sentimo-nos confortáveis ao agirmos, sentimos confiança em ser sem pensar sobre o sentido de nossa existência, em vir-a-ser sendo, no ato de nossa existência. Muitos acreditam que se é quem se quer ser, livremente. Contudo, como não contestar e questionar nosso aprisionamento à linguagem – essa mesma linguagem que nos faz humanos – que nos reformula por meio dos discursos que também nos constituem, sempre ideológicos, ao determinar tons e sobretons às cores que nos compõem como sujeitos-enunciados que somos? Atuamos pelo que somos ao mesmo tempo em que somos o que fazemos e dizemos. Discursivamente fundidos, de maneira complexa. Pensar fora desse paradoxo seria desconectar-se daquilo que nos torna vivos. A essência do mundo envolve nosso discurso e neles [mundo (e) discurso] vive o homem, constituindo-se como sujeitos. Nesse espaço-tempo é que somos construídos e construímos, de maneira responsável por seus atos, responsivamente. Viver o paradoxo de nossa essência-existência é assumir quem somos, em processo contínuo e descontínuo de construção e desconstrução enunciativa. Antes de tudo, somos vir-a-ser, sempre, seres sígnicos que, para serem-sentidos falam e falham. Afinal, ser humano é isso: falar e falhar em ato, calado, visual e/ou sonoro, mas sempre em atuação sócio-cultural-enunciativa. #discurso #ato #outro #sujeito #ideologia #responsabilidade

  • Para ser: viver o paradoxo

    Bárbara Melissa Santana e Luciane de Paula “O ser humano contemporâneo se sente seguro, com inteira liberdade e conhecedor de si, precisamente lá onde ele, por princípio, não está, isto é, no mundo autônomo de um domínio cultural e da sua lei imanente de criação; mas se sente inseguro, privado de recursos e desanimado quando se trata dele mesmo, quando ele é o centro da origem do ato, na vida real e única. Ou seja, agimos com segurança quando o fazemos não partindo de nós mesmos, mas como alguém possuído da necessidade imanente do sentido deste ou de outro domínio da cultura.” (Para uma filosofia do ato responsável, Bakhtin) Do início, o ponto de partida da dúvida: quem somos nós? Sujeitos constituintes e constituídos por uma sociedade composta por modelos, padrões e diversas ideologias. Valores incutidos a determinadas formas de pensamento que geram e regeneram pontos de vista de grupos, partes configuradas em um complexo cultural com perspectivas dominantes e cotidianas, bem como por defensores autônomos de “verdades”, muitas vezes, impostas, aceitas e veementemente reproduzidas. Mas, como somos constituintes e constituídos? Por meio de discursos que se concretizam em textos. Enunciados amalgamados em um extrato superior homogêneo determinante, tanto quanto no dia-a-dia, numa perspectiva sócio-individual. O olhar dos sujeitos se constrói sob as sombras de superestruturas sociais em embate constante com a experiência vivida na infraestrutura, em grupos sociais cotidianos. O individual também se compõe de maneira dialética com o social. E os sujeitos assim se constituem em nós. O posicionamento individual é concebido, nessa sociedade e nessa época em que vivemos, mascaradamente, como perspectiva particular, interiormente indivisível. O “Eu” é a base de uma sociedade narcísica, voltada à ilusão de sua unidade, calcada em traumas e neuroses centradas na visão unilateral do “ego sunt”. Entretanto, os estudos do Círculo revelam que não há “eu” sem “outro”, assim como não existe discurso individual que não responda a discursos existentes ou por-vir, uma vez que tanto a constituição dos sujeitos quanto a dos discursos ocorre de maneira indissociável (os sujeitos só existem quando enunciados e os enunciados só existem quando proferidos por sujeitos). Bakhtin e o os demais filósofos do Círculo concebem a constituição dos sujeitos e dos discursos por meio da ligação desmesurável com outros discursos e sujeitos, tanto aqueles já proferidos quanto os ainda não construídos, constituintes de nossa “memória de futuro”. Essa perspectiva salienta o caráter não-individual (no sentido imanente e gramatical do termo) dos enunciados e dos sujeitos. Para os filósofos russos, um é sempre, no mínimo, dois. O “eu” é, ao mesmo tempo, “eu”-“outro”, tanto sujeito quanto enunciado. Desse ponto de vista, o sujeito atua sob e sobre uma gama de fatores ideológicos que delineiam sua “realidade”. Nesse cenário, verificamos o “sentir-se seguro” relatado por Bakhtin em Para uma Filosofia do Ato Responsável. “Ser livre”, mas pensar a partir do pré-concebido ou permitido consensualmente; a expressão da “própria opinião” que reproduz uma perspectiva já digerida; “certezas” que compõem uma comodidade falha e fugidia que garante a reprodução sistêmica. Por isso, Bakhtin “prega” o “não-álibi da existência” como /dever-fazer/ para o despertar da consciência, atado a uma realidade, mediante um discurso de alienação de si, do outro e da relação ente-espécie. A ética responsiva e consciente como possibilidade única de enfrentamento e ruptura com a hegemonia reinante, que adormece os sujeitos e transforma seus atos em ações. O filósofo russo propõe uma inversão enunciativa: tornar-se sujeito como tornar-se autor, dono de seu nariz nessa rede tramada por fios invisíveis que nos faz marionetes em nossas ações. Agir com consciência: atuar. O ato, não como resultado, mas como processo constitutivo responsivo e responsável dos sujeitos é, sem dúvidas, para o Círculo, a expressão sem álibi e de total encargo de nossas tramas sujeito-enunciativas. Afinal, o sujeito não é apenas um. Sua unidade é divisível. Melhor, multiplicável, como declamou Pessoa em uma de suas pessoas (Álvaro de Campos): “Multipliquei-me para me sentir / Para me sentir, precisei sentir tudo / Transbordei, não fiz senão extravasar-me”. O sujeito (“eu”) é uma infinidade de “outros” que emanam de seu “eu” e de demais direções, um complexo de aspectos provenientes de “outros”. Esses “outros” que constituem o “eu” são discursos e estes, encadeamentos de inúmeras opiniões divergentes que elaboram o mundo. Somos, portanto, fragmentos de totalidades de sujeitos (e) enunciados que constroem o mundo que nos envolve. Somos mosaico formados na relação de diálogo que nos transforma, reforma, dá forma e não nos delineia. De-linear, impor linha, limite e isso, de limites e ponto final, não nos envolve. Acima de tudo por sermos in-acabados. Sem limiar entre “eu” e o “outro”. Sem bordas, sem ser fôrma, em forma-ação, constantemente, em infinita construção. Temos, nesse espaço de “ser” múltiplo, a responsabilidade do que somos ao mesmo tempo em que somos em um espaço que não é completamente nosso. Somos influenciados e construídos nessa arena de discursos que também construímos e influenciamos. Sentimo-nos confortáveis ao agirmos, sentimos confiança em ser sem pensar sobre o sentido de nossa existência, em vir-a-ser sendo, no ato de nossa existência. Muitos acreditam que se é quem se quer ser, livremente. Contudo, como não contestar e questionar nosso aprisionamento à linguagem – essa mesma linguagem que nos faz humanos – que nos reformula por meio dos discursos que também nos constituem, sempre ideológicos, ao determinar tons e sobretons às cores que nos compõem como sujeitos-enunciados que somos? Atuamos pelo que somos ao mesmo tempo em que somos o que fazemos e dizemos. Discursivamente fundidos, de maneira complexa. Pensar fora desse paradoxo seria desconectar-se daquilo que nos torna vivos. A essência do mundo envolve nosso discurso e neles [mundo (e) discurso] vive o homem, constituindo-se como sujeitos. Nesse espaço-tempo é que somos construídos e construímos, de maneira responsável por seus atos, responsivamente. Viver o paradoxo de nossa essência-existência é assumir quem somos, em processo contínuo e descontínuo de construção e desconstrução enunciativa. Antes de tudo, somos vir-a-ser, sempre, seres sígnicos que, para serem-sentidos falam e falham. Afinal, ser humano é isso: falar e falhar em ato, calado, visual e/ou sonoro, mas sempre em atuação sócio-cultural-enunciativa. #discurso #ato #outro #sujeito #ideologia #responsabilidade

  • O mito do respeito e do sucesso. Resta saber: a que e a quem

    Ana Paula Lopes Cardoso Desde sempre, vivemos numa sociedade que, constantemente, nos impôs modelos a serem seguidos, nas mais diversas esferas como exemplos de “perfeição contemporânea” que vêm com a intenção de formatar o pensamento e minimizar a capacidade crítica da sociedade, de modo a fazer dela uma grande massa “bela”, do ponto de vista da homogeneização social, idealista, castradora e machista – basta nos atentarmos ao “Mito da Beleza”, de Naomi Wolf. As indústrias da moda e da beleza nunca estiveram tão em alta e nunca se disseram tão democráticas como se dizem agora: “a moda para todos”, “a beleza de todos, em qualquer idade”! Mas bastam breves passeios pelos outdoors da cidade, pelas páginas das revistas ou mesmo alguns minutos em frente à televisão para notarmos que a principal intenção das marcas, por meio da mídia, é a difusão de pensamentos hegemônicos ditatoriais: o massacre da ideologia dominante sobre o cotidiano. Tomemos, como exemplos, duas peças publicitárias televisivas, sendo uma de Chronos (Natura Chronos 70+) e uma de Renew (Avon Renew Platinum), linhas de duas grandes marcas de cosméticos do patamar nacional atual. Ambas são marcas de tradição, consagradas no Brasil e com um público consumidor já bem definido. Suas peças publicitárias nos revelam, no entanto, certa “fragilidade” por parte das marcas: a necessidade de conquistar (no sentido de “pescar”, “capturar”, como numa disputa) seus clientes, por meio de táticas que, de certa forma, não se focam tanto na venda dos produtos em si, mas sim na imposição de um discurso valorativo de empatia, seja com o politicamente correto (Natura) seja com a fama (Avon). Segundo a concepção bakhtiniana, o discurso é carregado de valores do sujeito. Por meio da ideologia, ele se afirma e se concretiza no e por meio do signo. Dessa forma, as marcas escolhem qual é a imagem que pretendem passar ao seu público, a imagem que, dadas pesquisas mercadológicas extremamente bem realizadas, convencerá e, mais que isso, persuadirá o consumidor, fazendo-o crer no discurso das empresas e, com isso, via peça publicitária, as marcas atingem seus objetivos: vender. Com os objetivos “declarados” (a conquista de clientes e, consequentemente, as possíveis vendas), Natura e Avon exaltam e veiculam os ideais nos quais esperam que seus públicos, cada vez maiores, acreditem: uma, a Natura, volta-se a uma suposta postura de empresa preocupada com o meio ambiente, com as diferenças étnicas, com a diversidade física do povo brasileiro, com o respeito à diversidade e às fases da vida. A peça publicitária televisiva da Natura aqui mencionada traz à cena diversas mulheres, de idades variadas (as quais são, inclusive, reveladas, juntamente com os seus nomes), com diferentes estilos de vida, modos de se vestir e de se comportar, além das diferentes etnias contempladas: observam-se, no comercial, mulheres claras, loiras, morenas, de olhos claros e uma negra (apenas uma). Todas aparecem em momentos de descontração, muitas vezes, ao ar livre, compartilhando uma suposta alegria por serem como são, mulheres maduras e bonitas em suas particularidades. Além disso, essa peça publicitária televisiva de Chronos, que lança um novo antissinais na linha, o 70+ (indicado para mulheres acima de setenta anos), apresenta um jogo de sentidos quando a voz do comercial (que, por acaso, é masculina) diz “A história da mulher de setenta…”. Nesse momento, pode-se fazer uma ligação não apenas com a mulher de setenta anos, mas também com a mulher dos anos setenta, que desenvolveu um papel importante na economia e, consequentemente, na história. A outra, da Avon, explicita a voz de uma empresa que quer ser vista como aquela que “veste”, supostamente, valor “profissional” de “sucesso” à mulher e pretende voltar-se única e exclusivamente à sua “fama”, mas o que parece ser “descolado”, é machista e pessoal. Na peça publicitária televisiva em questão, a marca apresenta a atriz britânica Jacqueline Bisset, que encena o papel de mulher poderosa e sensual, mesmo acima dos sessenta anos, como modelo a ser seguido. Ela aparece em uma espécie de estúdio de fotografia/filmagem e, maquiada e vestida “para matar”, encara a telespectadora, fazendo poses sensuais, embalada por uma música agitada. Logo no início, a voz que é, aparentemente, dela diz: “Eu não minto a minha idade. A minha pele, sim”. Em seguida, a apresentação do produto e de seus benefícios é realizada (diferentemente do que ocorre em “Natura Chronos 70+”, em que o produto só é apresentado ao final da peça). Pela breve descrição acima, pode-se notar que, por um lado, o comercial da Natura tem a intenção de representar uma empresa “limpa”, “responsável” socialmente, que aceita os diferentes estilos e modos de ser e que, inclusive, apoia as diferenças, até como se insistisse para o consumidor assumir sua personalidade. O fato de quase não mencionar o produto, a não ser no final da peça, quando a voz masculina (que soa, aqui, como o reconhecimento da importância da mulher na sociedade e também como o valor atribuído a ela pelo homem, quem a julga – uma duplicidade de significações que nos leva a pensar o papel na mulher numa sociedade patriarcal) entoa “Natura Chronos 70+. Agora, tem um para a sua história.”, nos remete ao fato de a empresa vender apenas uma ideologia, não necessariamente em que acredita, mas com a qual potencializa conquistar clientes e vendas, “deixando de lado” o produto que é porta-voz dessa ideologia de empresa “responsável”, “respeitosa”, “limpa” e “honesta”. Pretexto para atingir um público cada vez maior e mais amplo. Por outro lado, o comercial da Avon nos remete a um discurso capitalista, hegemônico, preconceituoso com “cara” de feminista, mas extremamente machista, pois, de certa forma, cobra da mulher que ela seja como a imagem da atriz apresentada: uma mulher poderosa e segura de si, capaz de alcançar seus objetivos e de ter quem quiser aos seus pés. Soa como uma empresa mais prática, que sabe o que quer: vender um produto que cuide da pele da consumidora e que a faça se sentir segura e confiante, o que se confirma pelo slogan entoado ao fim, pela mesma voz que representa Jacqueline Bisset: “Você quer? Agora você pode!” e, depois, pela voz feminina que narra o comercial: “Fale com uma revendedora Avon e peça Renew Platinum!”. Se Natura e Avon fazem escolhas tão distintas nas peças publicitárias televisivas em questão, se vestem ideologias tão opostas, fica claro que pretendem atingir diferentes públicos e, consequentemente, diferentes camadas da sociedade. Dessa forma, suas escolhas (de vocabulário, de imagens, de pessoas, de música, de informações veiculadas, etc.) refletem e refratam ideologias que acreditam serem dos públicos que pretendem atingir por empatia. As empresas são sujeitos discursivos responsáveis por suas ações (concretizadas por meio da linguagem). Sujeitos profusores de ideologias capitais com “maquiadas” de “verdades”. Mais do que isso, sujeitos que incutem valores e homogeneízam o seu público, assolando as diferenças como se as respeitassem (Natura) e impondo um modelo de sucesso canônico (Avon). Com isso, reproduzem valores que continuam vendo a mulher como objeto. Sujeitos que ecoam outros e vão ser ecoados por outros, constituindo, assim, um longo processo de construção de sentidos, de atuação e colocação no mundo. Aqui, Natura e Avon interagem e, com isso, criam seus lugares no mundo e se responsabilizam por seus atos-ações, tanto quanto nós, ao consumirmos e, com isso, assumirmos nossos valores, em empatia ou não com o que nos é “imposto”. Será mesmo que só há uma beleza? E que as belezas precisam ser “retocadas”? Será mesmo que o “cuidado” de si, com a pele, o tempo etc é amar-se? Ou será que é falta de amor-próprio? Assumir nossas heterogeneidades e belezas também passou a ser filão vendável. E como vende! Resta-nos refletir sobre como esses valores nos constituem, bem como em que sentido nós os garantimos, por reproduzi-los em nosso cotidiano. #discurso #ideologia #publicidade #sujeito

  • O mito do respeito e do sucesso. Resta saber: a que e a quem

    Ana Paula Lopes Cardoso Desde sempre, vivemos numa sociedade que, constantemente, nos impôs modelos a serem seguidos, nas mais diversas esferas como exemplos de “perfeição contemporânea” que vêm com a intenção de formatar o pensamento e minimizar a capacidade crítica da sociedade, de modo a fazer dela uma grande massa “bela”, do ponto de vista da homogeneização social, idealista, castradora e machista – basta nos atentarmos ao “Mito da Beleza”, de Naomi Wolf. As indústrias da moda e da beleza nunca estiveram tão em alta e nunca se disseram tão democráticas como se dizem agora: “a moda para todos”, “a beleza de todos, em qualquer idade”! Mas bastam breves passeios pelos outdoors da cidade, pelas páginas das revistas ou mesmo alguns minutos em frente à televisão para notarmos que a principal intenção das marcas, por meio da mídia, é a difusão de pensamentos hegemônicos ditatoriais: o massacre da ideologia dominante sobre o cotidiano. Tomemos, como exemplos, duas peças publicitárias televisivas, sendo uma de Chronos (Natura Chronos 70+) e uma de Renew (Avon Renew Platinum), linhas de duas grandes marcas de cosméticos do patamar nacional atual. Ambas são marcas de tradição, consagradas no Brasil e com um público consumidor já bem definido. Suas peças publicitárias nos revelam, no entanto, certa “fragilidade” por parte das marcas: a necessidade de conquistar (no sentido de “pescar”, “capturar”, como numa disputa) seus clientes, por meio de táticas que, de certa forma, não se focam tanto na venda dos produtos em si, mas sim na imposição de um discurso valorativo de empatia, seja com o politicamente correto (Natura) seja com a fama (Avon). Segundo a concepção bakhtiniana, o discurso é carregado de valores do sujeito. Por meio da ideologia, ele se afirma e se concretiza no e por meio do signo. Dessa forma, as marcas escolhem qual é a imagem que pretendem passar ao seu público, a imagem que, dadas pesquisas mercadológicas extremamente bem realizadas, convencerá e, mais que isso, persuadirá o consumidor, fazendo-o crer no discurso das empresas e, com isso, via peça publicitária, as marcas atingem seus objetivos: vender. Com os objetivos “declarados” (a conquista de clientes e, consequentemente, as possíveis vendas), Natura e Avon exaltam e veiculam os ideais nos quais esperam que seus públicos, cada vez maiores, acreditem: uma, a Natura, volta-se a uma suposta postura de empresa preocupada com o meio ambiente, com as diferenças étnicas, com a diversidade física do povo brasileiro, com o respeito à diversidade e às fases da vida. A peça publicitária televisiva da Natura aqui mencionada traz à cena diversas mulheres, de idades variadas (as quais são, inclusive, reveladas, juntamente com os seus nomes), com diferentes estilos de vida, modos de se vestir e de se comportar, além das diferentes etnias contempladas: observam-se, no comercial, mulheres claras, loiras, morenas, de olhos claros e uma negra (apenas uma). Todas aparecem em momentos de descontração, muitas vezes, ao ar livre, compartilhando uma suposta alegria por serem como são, mulheres maduras e bonitas em suas particularidades. Além disso, essa peça publicitária televisiva de Chronos, que lança um novo antissinais na linha, o 70+ (indicado para mulheres acima de setenta anos), apresenta um jogo de sentidos quando a voz do comercial (que, por acaso, é masculina) diz “A história da mulher de setenta…”. Nesse momento, pode-se fazer uma ligação não apenas com a mulher de setenta anos, mas também com a mulher dos anos setenta, que desenvolveu um papel importante na economia e, consequentemente, na história. A outra, da Avon, explicita a voz de uma empresa que quer ser vista como aquela que “veste”, supostamente, valor “profissional” de “sucesso” à mulher e pretende voltar-se única e exclusivamente à sua “fama”, mas o que parece ser “descolado”, é machista e pessoal. Na peça publicitária televisiva em questão, a marca apresenta a atriz britânica Jacqueline Bisset, que encena o papel de mulher poderosa e sensual, mesmo acima dos sessenta anos, como modelo a ser seguido. Ela aparece em uma espécie de estúdio de fotografia/filmagem e, maquiada e vestida “para matar”, encara a telespectadora, fazendo poses sensuais, embalada por uma música agitada. Logo no início, a voz que é, aparentemente, dela diz: “Eu não minto a minha idade. A minha pele, sim”. Em seguida, a apresentação do produto e de seus benefícios é realizada (diferentemente do que ocorre em “Natura Chronos 70+”, em que o produto só é apresentado ao final da peça). Pela breve descrição acima, pode-se notar que, por um lado, o comercial da Natura tem a intenção de representar uma empresa “limpa”, “responsável” socialmente, que aceita os diferentes estilos e modos de ser e que, inclusive, apoia as diferenças, até como se insistisse para o consumidor assumir sua personalidade. O fato de quase não mencionar o produto, a não ser no final da peça, quando a voz masculina (que soa, aqui, como o reconhecimento da importância da mulher na sociedade e também como o valor atribuído a ela pelo homem, quem a julga – uma duplicidade de significações que nos leva a pensar o papel na mulher numa sociedade patriarcal) entoa “Natura Chronos 70+. Agora, tem um para a sua história.”, nos remete ao fato de a empresa vender apenas uma ideologia, não necessariamente em que acredita, mas com a qual potencializa conquistar clientes e vendas, “deixando de lado” o produto que é porta-voz dessa ideologia de empresa “responsável”, “respeitosa”, “limpa” e “honesta”. Pretexto para atingir um público cada vez maior e mais amplo. Por outro lado, o comercial da Avon nos remete a um discurso capitalista, hegemônico, preconceituoso com “cara” de feminista, mas extremamente machista, pois, de certa forma, cobra da mulher que ela seja como a imagem da atriz apresentada: uma mulher poderosa e segura de si, capaz de alcançar seus objetivos e de ter quem quiser aos seus pés. Soa como uma empresa mais prática, que sabe o que quer: vender um produto que cuide da pele da consumidora e que a faça se sentir segura e confiante, o que se confirma pelo slogan entoado ao fim, pela mesma voz que representa Jacqueline Bisset: “Você quer? Agora você pode!” e, depois, pela voz feminina que narra o comercial: “Fale com uma revendedora Avon e peça Renew Platinum!”. Se Natura e Avon fazem escolhas tão distintas nas peças publicitárias televisivas em questão, se vestem ideologias tão opostas, fica claro que pretendem atingir diferentes públicos e, consequentemente, diferentes camadas da sociedade. Dessa forma, suas escolhas (de vocabulário, de imagens, de pessoas, de música, de informações veiculadas, etc.) refletem e refratam ideologias que acreditam serem dos públicos que pretendem atingir por empatia. As empresas são sujeitos discursivos responsáveis por suas ações (concretizadas por meio da linguagem). Sujeitos profusores de ideologias capitais com “maquiadas” de “verdades”. Mais do que isso, sujeitos que incutem valores e homogeneízam o seu público, assolando as diferenças como se as respeitassem (Natura) e impondo um modelo de sucesso canônico (Avon). Com isso, reproduzem valores que continuam vendo a mulher como objeto. Sujeitos que ecoam outros e vão ser ecoados por outros, constituindo, assim, um longo processo de construção de sentidos, de atuação e colocação no mundo. Aqui, Natura e Avon interagem e, com isso, criam seus lugares no mundo e se responsabilizam por seus atos-ações, tanto quanto nós, ao consumirmos e, com isso, assumirmos nossos valores, em empatia ou não com o que nos é “imposto”. Será mesmo que só há uma beleza? E que as belezas precisam ser “retocadas”? Será mesmo que o “cuidado” de si, com a pele, o tempo etc é amar-se? Ou será que é falta de amor-próprio? Assumir nossas heterogeneidades e belezas também passou a ser filão vendável. E como vende! Resta-nos refletir sobre como esses valores nos constituem, bem como em que sentido nós os garantimos, por reproduzi-los em nosso cotidiano. #discurso #ideologia #publicidade #sujeito

  • A leveza insustentável da vida e o peso de viver

    Aline do Prado Aleixo Soares e Luciane de Paula “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo” (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa) “A vida humana só acontece uma vez e não poderemos nunca verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira, uma quarta vida para que possamos comparar decisões diferentes” (A insustentável leveza do ser, Milan Kundera) Em A insustentável leveza do ser, lemos, em suas diversas (e frequentes) digressões, ideias acerca da vida que não se repete: a vida, essa mesma, que todos nós vivemos e que é semiotizada no romance de Kundera, por meio de suas personagens. Essa vida é descrita, no romance, por meio de um discurso ambíguo que parte do narrador, como sendo pesada e, ao mesmo tempo, leve. Essa contradição eterna se estende à vida de cada um, de cada sujeito, responsável, na acepção bakhtiniana do termo, já que a arte e a vida são duas instâncias que dialogam em suas constituições. A arte, segundo as ideias do Círculo, só adquire sentido quando incorporada, pelos sujeitos responsáveis que a experimentam, às suas vidas e passam, assim, a formar uma unidade com ela. Contraditoriamente. Como o ser humano o é: eufórico e disfórico, entusiasta e depressivo, amoroso e detestável, crítico e submisso, resistente e entregue…conflituoso (e) complexus. Esse ser humano só vive, com todas as suas mazelas e ideais, quando trans-formado em linguagem. A linguagem o constitui tanto quanto ele constitui a linguagem. Por meio dela (e só por meio dela) sua existência passa a fazer sentido. Sentido enunciado sentido. Apenas na linguagem, o ser existe como sujeito. Não um sujeito qualquer, mas um sujeito ativo. Em atividade enunciada responsiva. Sujeito como pensado por Bakhtin: sem álibi na existência. Isto é, consciente de seus atos e, portanto, indesculpável. Sujeito que deve arcar com a responsabilidade de viver. E, pior, viver bem; bem viver. O que eu faço vai de encontro ao e ao encontro do que outros fizeram, fazem e farão: os meus atos possuem consequências e eles são, querendo ou não, responsabilidade minha. Afinal, é na interação entre os diversos sujeitos que esses se constituem. O diálogo entre mim e o outro (todos os outros: o que existe em mim e os externos) é que constitui os sujeitos, já que sozinhos somos incompletos: falta a mim o excedente de visão, que apenas o outro tem, de mim e outros-outros. Excedente que permite a ele – e somente a ele – me ver com completude. Se somos, então, conscientes e responsáveis por nossos atos, ainda que incompletos e inacabados, em constante processo de vir-a-ser, como saber de que maneira responder à vida, numa existência em construção, que não se sabe viver exatamente porque processo de nossos atos e não produto a ser contemplado de fora? Os meus atos têm consequências não só para mim, mas também – e isso é o que parece tornar a vida mais difícil – para o outro. Como saber viver, se a vida que vivemos uma única vez é esse eterno ensaio em concretização e sem rascunho de uma obra que se quer prima ao mesmo tempo em que o seu projeto de dizer se encontra em formação? Essa é a leveza e ao mesmo tempo o peso da vida: só se vive uma vez. E isso implica, justamente, em duas coisas: como não podemos saber viver, tudo o que fazemos parece ser desculpado, destituído da responsabilidade de antemão – daí a leveza; e como devemos saber viver, ou seja, devemos escolher um caminho, tomar decisões, o peso da escolha e da responsabilidade recai, inevitavelmente, sobre os nossos atos, uma vez que temos consciência, no processo da vida, do que é ético e do que não é; do que queremos para nós e para os outros e do que não queremos e não devemos fazer. Nesse sentido, os nossos atos nos aprisionam e, ao mesmo tempo, libertam. Atos de linguagem, já concretos desde a raiz, em pensamento. Afinal, se somos seres enunciados, seres de linguagem, semiotizados, a expressão de nossos anseios já re-vela nossa representatividade e, portanto, nos liberta de determinadas amarras e nos enlaça em outras correntes. Seja como for, a vida, inacabada, é reflexo e refração humana. Causa e consequência de nossos atos. Também linguagem em construção junto com os sujeitos. História em percurso. E, por isso, sempre, peso e leveza. Viver-se. Perigo de se ser, sendo-se. E assim, é. Já foi e será. Impossível querer apenas uma ponta, a delícia da leveza que liberta e libera. Somos viventes em construção como a vida se constrói em nós. Nós, não laços. Apertados e sufocantes, às vezes. Outras, brandos e frouxos. Diálogo entre vidas que se tecem em conjunto, de retalhos, por fios translúcidos, ao mesmo tempo, frágeis e flexíveis. Fios-bambus, difíceis de serem rompidos, mas, uma vez a ruptura realizada, jamais um remendo pode fazer fluir o ponto como outrora. Nesse sentido, somos todos moiras da linguagem cosendo-a, sem saber ao certo o que tricotamos, tendo como fim aprender-viver na vida que nos torna e já-é vir-a-ser. Esse é o deleite humano: ser sem ter sido. Essa também (é) a sua contenção: responder por seu fazer sem saber exatamente onde o rio da vida vai desembocar. Ainda que, no fim, todos saibamos: tecido findo, ponto final colocado, não mais espaço para se enunciar…morte do sujeito, morte do homem. A leveza da vida recém-nascida se transforma com o peso da responsabilidade de vivê-la e bem. Peso que se quer leve, bem viver e que é constante, sempre a balizar todas as nossas de-cisões, os nossos atos responsáveis e responsivos. Como apender a viver com o peso da responsabilidade? Vivendo. Sem álibi da existência. De maneira leve e pesada, livre e enlaçada nas tramas tecidas full time por todos nós. E, com isso, aprender a viver, vivendo. Aprender que os atos são repercussão de outros atos, proprios e de outros, ontem, hoje e amanhã. E assim, a vida segue sendo tecida pelos sujeitos que nela vivem e a bordam. Mesmo sem que saibamos o que está por vir, devemos, inevitavelmente, encarar a responsabilidade dos nossos atos. Esse é o não-álibi no viver. Sua delicadeza e, como cantaria Caetano (“Dom de Iludir”), a “delícia de ser o que é”. Afinal, “Eu tentei compreender a costura da vida / Me enrolei porque a linha era muito comprida / E como é que eu vou fazer para desenrolar?” (“Costura da vida”, Interior – A 4 vozes). Desenrolar enrola. E enrolar dá (em) nó(s). Não há compreensão apenas mental da vida. Compreendê-la pede ato ou, como diria Clarice (Lispector), “Viver ultrapassa todo o entendimento”. #sujeito #ética #responsabilidade #exotopia #diálogo

  • A leveza insustentável da vida e o peso de viver

    Aline do Prado Aleixo Soares e Luciane de Paula “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo” (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa) “A vida humana só acontece uma vez e não poderemos nunca verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira, uma quarta vida para que possamos comparar decisões diferentes” (A insustentável leveza do ser, Milan Kundera) Em A insustentável leveza do ser, lemos, em suas diversas (e frequentes) digressões, ideias acerca da vida que não se repete: a vida, essa mesma, que todos nós vivemos e que é semiotizada no romance de Kundera, por meio de suas personagens. Essa vida é descrita, no romance, por meio de um discurso ambíguo que parte do narrador, como sendo pesada e, ao mesmo tempo, leve. Essa contradição eterna se estende à vida de cada um, de cada sujeito, responsável, na acepção bakhtiniana do termo, já que a arte e a vida são duas instâncias que dialogam em suas constituições. A arte, segundo as ideias do Círculo, só adquire sentido quando incorporada, pelos sujeitos responsáveis que a experimentam, às suas vidas e passam, assim, a formar uma unidade com ela. Contraditoriamente. Como o ser humano o é: eufórico e disfórico, entusiasta e depressivo, amoroso e detestável, crítico e submisso, resistente e entregue…conflituoso (e) complexus. Esse ser humano só vive, com todas as suas mazelas e ideais, quando trans-formado em linguagem. A linguagem o constitui tanto quanto ele constitui a linguagem. Por meio dela (e só por meio dela) sua existência passa a fazer sentido. Sentido enunciado sentido. Apenas na linguagem, o ser existe como sujeito. Não um sujeito qualquer, mas um sujeito ativo. Em atividade enunciada responsiva. Sujeito como pensado por Bakhtin: sem álibi na existência. Isto é, consciente de seus atos e, portanto, indesculpável. Sujeito que deve arcar com a responsabilidade de viver. E, pior, viver bem; bem viver. O que eu faço vai de encontro ao e ao encontro do que outros fizeram, fazem e farão: os meus atos possuem consequências e eles são, querendo ou não, responsabilidade minha. Afinal, é na interação entre os diversos sujeitos que esses se constituem. O diálogo entre mim e o outro (todos os outros: o que existe em mim e os externos) é que constitui os sujeitos, já que sozinhos somos incompletos: falta a mim o excedente de visão, que apenas o outro tem, de mim e outros-outros. Excedente que permite a ele – e somente a ele – me ver com completude. Se somos, então, conscientes e responsáveis por nossos atos, ainda que incompletos e inacabados, em constante processo de vir-a-ser, como saber de que maneira responder à vida, numa existência em construção, que não se sabe viver exatamente porque processo de nossos atos e não produto a ser contemplado de fora? Os meus atos têm consequências não só para mim, mas também – e isso é o que parece tornar a vida mais difícil – para o outro. Como saber viver, se a vida que vivemos uma única vez é esse eterno ensaio em concretização e sem rascunho de uma obra que se quer prima ao mesmo tempo em que o seu projeto de dizer se encontra em formação? Essa é a leveza e ao mesmo tempo o peso da vida: só se vive uma vez. E isso implica, justamente, em duas coisas: como não podemos saber viver, tudo o que fazemos parece ser desculpado, destituído da responsabilidade de antemão – daí a leveza; e como devemos saber viver, ou seja, devemos escolher um caminho, tomar decisões, o peso da escolha e da responsabilidade recai, inevitavelmente, sobre os nossos atos, uma vez que temos consciência, no processo da vida, do que é ético e do que não é; do que queremos para nós e para os outros e do que não queremos e não devemos fazer. Nesse sentido, os nossos atos nos aprisionam e, ao mesmo tempo, libertam. Atos de linguagem, já concretos desde a raiz, em pensamento. Afinal, se somos seres enunciados, seres de linguagem, semiotizados, a expressão de nossos anseios já re-vela nossa representatividade e, portanto, nos liberta de determinadas amarras e nos enlaça em outras correntes. Seja como for, a vida, inacabada, é reflexo e refração humana. Causa e consequência de nossos atos. Também linguagem em construção junto com os sujeitos. História em percurso. E, por isso, sempre, peso e leveza. Viver-se. Perigo de se ser, sendo-se. E assim, é. Já foi e será. Impossível querer apenas uma ponta, a delícia da leveza que liberta e libera. Somos viventes em construção como a vida se constrói em nós. Nós, não laços. Apertados e sufocantes, às vezes. Outras, brandos e frouxos. Diálogo entre vidas que se tecem em conjunto, de retalhos, por fios translúcidos, ao mesmo tempo, frágeis e flexíveis. Fios-bambus, difíceis de serem rompidos, mas, uma vez a ruptura realizada, jamais um remendo pode fazer fluir o ponto como outrora. Nesse sentido, somos todos moiras da linguagem cosendo-a, sem saber ao certo o que tricotamos, tendo como fim aprender-viver na vida que nos torna e já-é vir-a-ser. Esse é o deleite humano: ser sem ter sido. Essa também (é) a sua contenção: responder por seu fazer sem saber exatamente onde o rio da vida vai desembocar. Ainda que, no fim, todos saibamos: tecido findo, ponto final colocado, não mais espaço para se enunciar…morte do sujeito, morte do homem. A leveza da vida recém-nascida se transforma com o peso da responsabilidade de vivê-la e bem. Peso que se quer leve, bem viver e que é constante, sempre a balizar todas as nossas de-cisões, os nossos atos responsáveis e responsivos. Como apender a viver com o peso da responsabilidade? Vivendo. Sem álibi da existência. De maneira leve e pesada, livre e enlaçada nas tramas tecidas full time por todos nós. E, com isso, aprender a viver, vivendo. Aprender que os atos são repercussão de outros atos, proprios e de outros, ontem, hoje e amanhã. E assim, a vida segue sendo tecida pelos sujeitos que nela vivem e a bordam. Mesmo sem que saibamos o que está por vir, devemos, inevitavelmente, encarar a responsabilidade dos nossos atos. Esse é o não-álibi no viver. Sua delicadeza e, como cantaria Caetano (“Dom de Iludir”), a “delícia de ser o que é”. Afinal, “Eu tentei compreender a costura da vida / Me enrolei porque a linha era muito comprida / E como é que eu vou fazer para desenrolar?” (“Costura da vida”, Interior – A 4 vozes). Desenrolar enrola. E enrolar dá (em) nó(s). Não há compreensão apenas mental da vida. Compreendê-la pede ato ou, como diria Clarice (Lispector), “Viver ultrapassa todo o entendimento”. #sujeito #ética #responsabilidade #exotopia #diálogo

  • Sugestão de leitura: “Questões bakhtinianas para uma heterociência humana”

    Sugerimos a leitura do texto “Questões bakhtinianas para uma heterociência humana” (disponível neste link), que apresenta uma entrevista com o professor Valdemir Miotello, da Universidade federal de São Carlos (UFSCar). Fica aqui uma deixa ao diálogo, no melhor sentido pensado por Bakhtin. Vamos ao embate? #diálogo #entrevista #Miotello #sugestãodeleitura

  • Sugestão de leitura: “Questões bakhtinianas para uma heterociência humana”

    Sugerimos a leitura do texto “Questões bakhtinianas para uma heterociência humana” (disponível neste link), que apresenta uma entrevista com o professor Valdemir Miotello, da Universidade federal de São Carlos (UFSCar). Fica aqui uma deixa ao diálogo, no melhor sentido pensado por Bakhtin. Vamos ao embate? #diálogo #entrevista #Miotello #sugestãodeleitura

  • Jorro de voz pelo blog e não quero estar só

    Luciane de Paula “Solto a voz nas estradas, já não quero parar Meu caminho é de ferro, como posso sonhar Sonho feito de brisa, vento ver (g)terminar (…) Já não sonho, hoje faço, com meu braço, o meu viver” (“Travessia” de e na voz solta de Milton Nascimento) Galin Tihanov tem um livro sobre Bakhtin e Lukács, chamado As lições que Bakhtin deixou para nós, onde diz que a grande lição que Bakhtin nos deixou foi a reflexão sobre a concepção de diálogo. Diálogo do ponto de vista filosófico. Não um filosófico abstrato, mas um filosófico concreto. Afinal, diálogo é o ato (portanto, o /fazer/) concreto ético, responsivo e responsável acerca de dado conteúdo. Como sabemos que não é possível ato qualquer sem linguagem, trata-se o diálogo de um fazer enunciativo, qualquer que seja ele (verbal, não-verbal ou sincrético). Linguagem é o que distingue o homem, fisiologicamente, de outros animais i-racionais (assim mesmo: não-racionais). Mas, como também escreveu Morin em textos como “Ciência com consciência” e “Amor Poesia Sabedoria”, o homem não pode ser chamado de “homo sapiens” porque essa palavra “sapiens” significa, no mínimo, razão; e, no máximo sabedoria. E o homem também é composto por sua parcela “demens”. Isso mesmo, sua porção “demente”. Demência, em dicotomia à racionalidade, é o élan passional que nos move. Paixão, semioticamente, no sentido de alteração de estado de ânimo, como já explanou Aristóteles em sua “Arte Retórica” – o pathos, para alguns, doentio. Mas, aqui, não me refiro à passionalidade como patológica ou demente e sim à passionalidade patêmica, do sujeito que re-age, às vezes, racionalmente (de maneira retórica, seja mais convincente ou mais persuasiva); às vezes, de maneira demente (tomado por algum tipo de paixão – raiva, inconformismo, inveja, indignação, passividade, medo, amor etc). Seja como for, há ato. Ato de linguagem. Ato-ação. E como essa atuação se realiza? Por meio de enunciados concretos, de forma dialógica. Diálogo, como nos explica Bakhtin, não significa concordância e nada tem de passividade. Diálogo é embate. Por isso, ele diz que o discurso é “a arena onde se digladiam as vozes sociais”. Digladiar de ideias e vozes heterogêneas, sem hierarquia. Polifonia. Dialogar significa falar o que se pensa e escutar o que o outro tem a dizer. Isso é resposta. E todo discurso é prenhe de resposta, ele já se compõe como resposta – seja a algo passado ou futuro, pois prevê reações. Escutar é tão ou mais importante que falar, pois é também um ato. Refiro-me à “escuta ativa” sobre a qual reflete Ponzio. Dialogar não é simples porque vivemos num mundo hierárquico, cheio de jogos de poder e interesses, tanto pessoais quanto coletivos. Mas, dialogar implica dizer e escutar o outro. Escutar com respeito ético, sem desnivelamento social. Escutar discordando do outro, mas escutar. Escutar e não ouvir. Barthes nos diz que ouvir, ouvimos indistintamente qualquer ruído. Escutar requer atenção. Ouvir significa deixar o outro falar enquanto penso em qualquer outra coisa. Não resolve. Menciono a importância de escutar. Isto é, deixar o outro falar o que pensa mesmo discordando dele, mas aberto a um outro ponto de vista. Isso não significa escutar pronto pra guerra, mas sim aberto à reflexão. Mudar de postura e deslocar-se, num exercício exotópico, ao se colocar no lugar do outro, sem deixar de ser “eu” mesmo. Isso não significa ser “vaquinha de presépio”, mas se dar a oportunidade de captar algo que passou, enxergar de outro ponto de vista. E, se achar, após refletir, que o ponto de vista do outro está equivocado, continuar com o seu. Fazer-se escutar. Hora de fala. Dialogar não como “emissor” de uma verdade absoluta inexistente ou como um “receptor” passivo e sem voz, tal qual prevê Jakobson. Não. Diálogo como concebe Bakhtin e o Círculo, como embate. Isso pede, no mínimo, tempo e, no máximo, matur-idade. Dialogar não é impor ao outro a sua visão, mas colocar-se da mesma maneira que pede que se ouça o ponto de vista do outro. Ninguém fala/faz o que quer sem ouvir ou consequências. Seja o ato que for. Não se dialoga quando se impõe. Seja o lado que for. Não se dialoga quando se age nas sombras, às escondidas, por conchavos, abuso de poder e sem sequer chamar o outro para lhe dizer, face a face, o que se pensa; nem se está disposto a escutar o que o outro pensa. Podemos dizer e escutar tudo, desde que saibamos como conduzir, como nos conduzir. Ser “racional” é saber que num determinado espaço-tempo é possível dialogar sem ofensas e todos os pontos de vista serem postos num mesmo nível; sair daquele espaço-tempo e não tornar os pontos de vista pessoalistas, pois se assim ocorrer, o ato não é ético e a toda ação, uma re-ação aparece como consequência de um ato inicial. Diálogo como embate se refere a diálogo de ideias e posturas. Com deveres e direitos. Com responsabilidade e responsividade. Maduramente, feito gente grande, melhor, feito gente pequena. As crianças dialogam muito melhor que nós. Aprendamos com elas e com os bichos, barrosianamente e sem vaidades. Sem álibi de medos e choros, fragilidades inexistentes quando pensamos em atos (delinquentes) institucionalizados e protegidos por leis (que são também instrumentos de poder, já dizia Foucault), a fim de se fortalecer. Repito: imposição, de qualquer tipo, é violência, perda de razão, demência – no sentido doentio do vocábulo. Por que não sermos “demens” para criar/construir algo melhor, mais interessante? Ceder em determinados aspectos, bater o pé em outros. Sim porque é a demência, segundo Morin, que constitui a poesia da vida e nos tira de sua “prosa ordinária”. Mas, ela também pode ser barbárie. Basta saber o que queremos. De novo, como conduzir. A forma e o direcionamento do conteúdo é fatal. É fácil nomear o outro, instiga-lo, apontar o dedo indicador e, depois, correr para trás da asa e da barra da saia de sujeitos mais poderosos chorando como vítima. O que me assusta é o “adulto” dessa relação tomar partido de uma das crianças sendo mais criança que elas. Sem ouvir os dois pontos de vista. E, injustamente, colocar um dos dois de castigo. Como já mencionei: as crianças sabem dialogar muito melhor que nós. Elas não mentem, não fingem, não escondem. Elas jogam aberto e limpo. Polêmica e pacificamente. Jamais passivamente, a não ser que assim sejam adestradas (porque abuso de poder de adultos por meio de instrumentos amedrontadores – bater, ameaçar, colocar de castigo etc – não é educação). Quando nos referimos à educação, vemos institucionalizada, nas escolas, de todos os níveis, uma lógica que atravessa os mais variados discursos e as mais variadas relações, em diversas esferas. É essa a lógica que queremos re-produzir? É a ela que respondemos. E mesmo quando pensamos que não queremos nos meter nisso, essa já é uma postura. Indignação, seja qual for, de qualquer tipo, sem noção do que se faz, sem horizonte e sem perspectiva, sem organização e sem diálogo “morre na praia”. Temos de considerar que, mesmo dentro de um determinado grupo, há posturas distintas, visões heterogêneas acerca do mesmo objeto, que pode ser visto como um prisma. Lidar com isso não é simples. Mas necessário. Porque a vida é assim. Compõe como arena, logo, pede, melhor, exige luta interminável, “full time”. Mas, as lutas podem ocorrer de maneira festiva. Não precisamos fazer de lutas diárias “cavalos de batalha”. Aliás, numa das batalhas mais conhecidas da história, quando apareceu um cavalo houve traição não-ética (que é diferente de anti-ética). Só para refletir um pouco, instigar respostas e soltar de vozes e sonhos, com braços não-armados (e também armados, se preciso for), feito brisa a germinar com o vento, venho espalhar diálogo em “Travessia”, embalado por Milton Nascimento e tantas outras vozes, a partir dessa resposta a um texto que não vem ao caso – são tantas as situações cotidianas! Reflexão alavancada pela voz do outro que me constitui e entrou em mim como escuta, suscitando-me resposta. Minha fala. Minha voz. Como o convite sugere, soltei a minha voz. Espero que, de alguma forma, ela ecoe. Não. Não gosto de ecos. Eles sugerem repetições e jamais a enunciação se repete. Ela é única. Irrepetível. Então, espero que ela re-verb-ere, afinal, como diz a letra de uma outra canção entoada por Milton Nascimento: “Há canções e há momentos Eu não sei como explicar Em que a voz é um instrumento Que eu não posso controlar Ela vai ao infinito Ela amarra (a) todos nós” (“Canções e Momentos”) Cadê sua voz? #ética #diálogo #enunciado #responsabilidade

  • Jorro de voz pelo blog e não quero estar só

    Luciane de Paula “Solto a voz nas estradas, já não quero parar Meu caminho é de ferro, como posso sonhar Sonho feito de brisa, vento ver (g)terminar (…) Já não sonho, hoje faço, com meu braço, o meu viver” (“Travessia” de e na voz solta de Milton Nascimento) Galin Tihanov tem um livro sobre Bakhtin e Lukács, chamado As lições que Bakhtin deixou para nós, onde diz que a grande lição que Bakhtin nos deixou foi a reflexão sobre a concepção de diálogo. Diálogo do ponto de vista filosófico. Não um filosófico abstrato, mas um filosófico concreto. Afinal, diálogo é o ato (portanto, o /fazer/) concreto ético, responsivo e responsável acerca de dado conteúdo. Como sabemos que não é possível ato qualquer sem linguagem, trata-se o diálogo de um fazer enunciativo, qualquer que seja ele (verbal, não-verbal ou sincrético). Linguagem é o que distingue o homem, fisiologicamente, de outros animais i-racionais (assim mesmo: não-racionais). Mas, como também escreveu Morin em textos como “Ciência com consciência” e “Amor Poesia Sabedoria”, o homem não pode ser chamado de “homo sapiens” porque essa palavra “sapiens” significa, no mínimo, razão; e, no máximo sabedoria. E o homem também é composto por sua parcela “demens”. Isso mesmo, sua porção “demente”. Demência, em dicotomia à racionalidade, é o élan passional que nos move. Paixão, semioticamente, no sentido de alteração de estado de ânimo, como já explanou Aristóteles em sua “Arte Retórica” – o pathos, para alguns, doentio. Mas, aqui, não me refiro à passionalidade como patológica ou demente e sim à passionalidade patêmica, do sujeito que re-age, às vezes, racionalmente (de maneira retórica, seja mais convincente ou mais persuasiva); às vezes, de maneira demente (tomado por algum tipo de paixão – raiva, inconformismo, inveja, indignação, passividade, medo, amor etc). Seja como for, há ato. Ato de linguagem. Ato-ação. E como essa atuação se realiza? Por meio de enunciados concretos, de forma dialógica. Diálogo, como nos explica Bakhtin, não significa concordância e nada tem de passividade. Diálogo é embate. Por isso, ele diz que o discurso é “a arena onde se digladiam as vozes sociais”. Digladiar de ideias e vozes heterogêneas, sem hierarquia. Polifonia. Dialogar significa falar o que se pensa e escutar o que o outro tem a dizer. Isso é resposta. E todo discurso é prenhe de resposta, ele já se compõe como resposta – seja a algo passado ou futuro, pois prevê reações. Escutar é tão ou mais importante que falar, pois é também um ato. Refiro-me à “escuta ativa” sobre a qual reflete Ponzio. Dialogar não é simples porque vivemos num mundo hierárquico, cheio de jogos de poder e interesses, tanto pessoais quanto coletivos. Mas, dialogar implica dizer e escutar o outro. Escutar com respeito ético, sem desnivelamento social. Escutar discordando do outro, mas escutar. Escutar e não ouvir. Barthes nos diz que ouvir, ouvimos indistintamente qualquer ruído. Escutar requer atenção. Ouvir significa deixar o outro falar enquanto penso em qualquer outra coisa. Não resolve. Menciono a importância de escutar. Isto é, deixar o outro falar o que pensa mesmo discordando dele, mas aberto a um outro ponto de vista. Isso não significa escutar pronto pra guerra, mas sim aberto à reflexão. Mudar de postura e deslocar-se, num exercício exotópico, ao se colocar no lugar do outro, sem deixar de ser “eu” mesmo. Isso não significa ser “vaquinha de presépio”, mas se dar a oportunidade de captar algo que passou, enxergar de outro ponto de vista. E, se achar, após refletir, que o ponto de vista do outro está equivocado, continuar com o seu. Fazer-se escutar. Hora de fala. Dialogar não como “emissor” de uma verdade absoluta inexistente ou como um “receptor” passivo e sem voz, tal qual prevê Jakobson. Não. Diálogo como concebe Bakhtin e o Círculo, como embate. Isso pede, no mínimo, tempo e, no máximo, matur-idade. Dialogar não é impor ao outro a sua visão, mas colocar-se da mesma maneira que pede que se ouça o ponto de vista do outro. Ninguém fala/faz o que quer sem ouvir ou consequências. Seja o ato que for. Não se dialoga quando se impõe. Seja o lado que for. Não se dialoga quando se age nas sombras, às escondidas, por conchavos, abuso de poder e sem sequer chamar o outro para lhe dizer, face a face, o que se pensa; nem se está disposto a escutar o que o outro pensa. Podemos dizer e escutar tudo, desde que saibamos como conduzir, como nos conduzir. Ser “racional” é saber que num determinado espaço-tempo é possível dialogar sem ofensas e todos os pontos de vista serem postos num mesmo nível; sair daquele espaço-tempo e não tornar os pontos de vista pessoalistas, pois se assim ocorrer, o ato não é ético e a toda ação, uma re-ação aparece como consequência de um ato inicial. Diálogo como embate se refere a diálogo de ideias e posturas. Com deveres e direitos. Com responsabilidade e responsividade. Maduramente, feito gente grande, melhor, feito gente pequena. As crianças dialogam muito melhor que nós. Aprendamos com elas e com os bichos, barrosianamente e sem vaidades. Sem álibi de medos e choros, fragilidades inexistentes quando pensamos em atos (delinquentes) institucionalizados e protegidos por leis (que são também instrumentos de poder, já dizia Foucault), a fim de se fortalecer. Repito: imposição, de qualquer tipo, é violência, perda de razão, demência – no sentido doentio do vocábulo. Por que não sermos “demens” para criar/construir algo melhor, mais interessante? Ceder em determinados aspectos, bater o pé em outros. Sim porque é a demência, segundo Morin, que constitui a poesia da vida e nos tira de sua “prosa ordinária”. Mas, ela também pode ser barbárie. Basta saber o que queremos. De novo, como conduzir. A forma e o direcionamento do conteúdo é fatal. É fácil nomear o outro, instiga-lo, apontar o dedo indicador e, depois, correr para trás da asa e da barra da saia de sujeitos mais poderosos chorando como vítima. O que me assusta é o “adulto” dessa relação tomar partido de uma das crianças sendo mais criança que elas. Sem ouvir os dois pontos de vista. E, injustamente, colocar um dos dois de castigo. Como já mencionei: as crianças sabem dialogar muito melhor que nós. Elas não mentem, não fingem, não escondem. Elas jogam aberto e limpo. Polêmica e pacificamente. Jamais passivamente, a não ser que assim sejam adestradas (porque abuso de poder de adultos por meio de instrumentos amedrontadores – bater, ameaçar, colocar de castigo etc – não é educação). Quando nos referimos à educação, vemos institucionalizada, nas escolas, de todos os níveis, uma lógica que atravessa os mais variados discursos e as mais variadas relações, em diversas esferas. É essa a lógica que queremos re-produzir? É a ela que respondemos. E mesmo quando pensamos que não queremos nos meter nisso, essa já é uma postura. Indignação, seja qual for, de qualquer tipo, sem noção do que se faz, sem horizonte e sem perspectiva, sem organização e sem diálogo “morre na praia”. Temos de considerar que, mesmo dentro de um determinado grupo, há posturas distintas, visões heterogêneas acerca do mesmo objeto, que pode ser visto como um prisma. Lidar com isso não é simples. Mas necessário. Porque a vida é assim. Compõe como arena, logo, pede, melhor, exige luta interminável, “full time”. Mas, as lutas podem ocorrer de maneira festiva. Não precisamos fazer de lutas diárias “cavalos de batalha”. Aliás, numa das batalhas mais conhecidas da história, quando apareceu um cavalo houve traição não-ética (que é diferente de anti-ética). Só para refletir um pouco, instigar respostas e soltar de vozes e sonhos, com braços não-armados (e também armados, se preciso for), feito brisa a germinar com o vento, venho espalhar diálogo em “Travessia”, embalado por Milton Nascimento e tantas outras vozes, a partir dessa resposta a um texto que não vem ao caso – são tantas as situações cotidianas! Reflexão alavancada pela voz do outro que me constitui e entrou em mim como escuta, suscitando-me resposta. Minha fala. Minha voz. Como o convite sugere, soltei a minha voz. Espero que, de alguma forma, ela ecoe. Não. Não gosto de ecos. Eles sugerem repetições e jamais a enunciação se repete. Ela é única. Irrepetível. Então, espero que ela re-verb-ere, afinal, como diz a letra de uma outra canção entoada por Milton Nascimento: “Há canções e há momentos Eu não sei como explicar Em que a voz é um instrumento Que eu não posso controlar Ela vai ao infinito Ela amarra (a) todos nós” (“Canções e Momentos”) Cadê sua voz? #ética #diálogo #enunciado #responsabilidade

  • Um convite à carnavalização

    Por Luciane de Paula “Vamos para avenida, desfilar a vida, carnavalizar” (Tribalistas. “Carnavália”) Este convite tem em mente a carnavalização como ato, tal qual reflete Bakhtin, em sua obra “Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” (a minha versão é de 1987). Afirma o filósofo russo que, naquele momento histórico (Idade Média mais especificamente), as praças, ruas e demais espaços públicos, com suas festas populares (o carnaval, os espetáculos ao ar livre e as feiras), eram usados e tinham uma função de abertura e de desestabilização do poder oficial vigente (os sistemas ideológicos estruturados) porque nivelavam as pessoas e, com isso, apagavam as distinções hierárquicas, suspendiam certas normas estatais e religiosas, e promoviam a experiência de liberdade e de igualdade entre os sujeitos. Hoje não é assim? Não deveria ser? Talvez, seja o caso de tomarmos mais vezes com nossas vozes em atos esse espaço e restaurar sua força. Continuamos utilizando-os dessa maneira e com esse fim em alguns momentos: quando tomamos ruas e avenidas, no Brasil, em especial, muitas vezes, em grandes festas (a comemoração do futebol, as festas populares – não apenas o carnaval, mas também as festas religiosas, as regionais, as folclóricas, o final de uma novela nos bares, o réveillon, as viradas culturais, as danças de rua, o grafite, as pichações transgressoras etc), mas também em grandes manifestações “sérias” (como as passeatas, os pedágios, os piquetes, entre outras), o espaço público e coletivo continua com ou reivindica a sua função “carnavalizadora”. Falta resgatar que tais atos são políticos, responsáveis e responsivos. Esse locus é também topus da exclusão e da marginalidade (mendicância, prostituição, tráfico de drogas ilícitas, bandidagem, “vadiagem”, “malandragem”). Lugar da in-visibilidade. De todos e ninguém. “Terra de Marlboro”, como dizem. As festividades expressivas, como o carnaval (o mais resistente ritual pagão incorporado pelo calendário e “aceito” – sim, entre aspas – pela Igreja contra a sua vontade, ainda que de outra maneira, adaptado e punitivo – 4 dias de liberdade total, penitenciados com 10 vezes mais severidade pela prática do “pecado” da carne – trata-se dos 40 dias que se seguem. Sim, a quaresma, em que não se deve “comer carne”, teoricamente de nenhuma espécie, em nome da ressurreição de Cristo, que morreu. Morte do alto no ato baixo carnavalizado – extremamente interessante…via banquete, literal e figurado), naquele momento, em que ainda não era festa comercial em prol da lucratividade sistêmica (como hoje é institucionalizado), produzia a possibilidade de circulação de determinados discursos e formas de comunicação que, fora desse contexto, eram proibidas e censuradas. Assim, a linguagem carnavalesca, “autorizada” sob determinadas circunstâncias, era um ato político, pois estremecia, desestabilizava, parodiava, ironizava as ideologias oficiais com suas inversões do “alto” ao “baixo estrato corpóreo” (vísceras, genitália, umbigo…“Nádegas a Declarar”). A linguagem carnavalesca, segundo Bakhtin, caracterizava-se “pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, pelas permutações constantes do alto e do baixo (‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões” (1987, p. 10). Nesse sentido, a linguagem do carnaval instaura a possibilidade de ressignificação e re-surgimento de formas de vida com suas respectivas visões de mundo. Este convite à carnavalização do mundo, feito aqui por meio da citação de um verso da canção “Carnavália”, dos Tribalistas, de certa forma demonstra o intuito “Circular” do GED quanto às práticas cotidianas de se pensar e fazer pesquisa na e fora da academia. O conhecimento deve se trans-formar em sabedoria. E, para isso, não pode ficar confinado nos intramuros universitários – que sequer deveriam existir, uma vez que o vocábulo “Universidade” vem do latim (“universia”), que significa “comunidade”, “universo”, “universal”, “comum”. Precisa, portanto, pular tais muros, romper barreiras, derrubar paredes e tomar as ruas, a rede, o universo (para ser fiel ao léxico uni-versi-tário), constituído pela linguagem, em ato concreto. Vamos, então, carnavalizar com “Carnavália”, “Navalha na carne”. O humor de toda espécie (o deboche, a ironia, fina e ácida, o pastelão, a “torta na cara”) dá uma banana para a hipocrisia e segue, sem abalo às manobras e intrigas porque ri diante do inimigo, “ri na cara do perigo” e isso, sim, causa abalos sísmicos e altera profunda-mente o sistema. Por menores que pareçam, à primeira vista (e jamais assumidos), tais atos, aparentemente inconsequentes e “sem causa”, fazem história porque responsivos, dialógicos. A rebeldia não tem de ter causa aparente. Ela existe e caminha contra a hegemonia confortável e cômoda, como “Ode ao burguês”. Deixemos de homenagear e passemos a carnavalizar a vida em atu-ação filosófico-concreta. Carnavalizar: uma prática de resistência ao poder hierárquico e às ideologias oficiais de forma coletiva, ambivalente e bivocal, por meio do riso (carnavalesco/carnavalizado). Nas palavras de Bakhtin: A praça pública no fim da Idade Média e no Renascimento formava um mundo único e coeso onde todas as “tomadas de palavra” (desde as interpelações em altos brados até os espetáculos organizados) possuíam alguma coisa em comum, pois estavam impregnados do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e familiaridade (1987, p. 132). Não seria a rede, famosa “world, wide, web” (o mundo navegando numa onda amarrada numa teia infinita), esse espaço público coeso de outrora ao qual se refere Bakhtin, junto com os locais físicos ainda existentes, mas em grande parte do tempo, redimensionados? Por que será que a “conexão” atrai tanto o homem? Por ser ele sujeito refletido e refratado pela e na linguagem, dialógico? Melhor “Circular” com sabor e pensar com escuta ativa esse saber de “homo-sapiens-demens” (Morin). Des-fiar a vida com as Moiras da linguagem. Carnavalizar. Vamos? 😉 #carnavalização #circular #conexão #linguagem

  • Um convite à carnavalização

    Por Luciane de Paula “Vamos para avenida, desfilar a vida, carnavalizar” (Tribalistas. “Carnavália”) Este convite tem em mente a carnavalização como ato, tal qual reflete Bakhtin, em sua obra “Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” (a minha versão é de 1987). Afirma o filósofo russo que, naquele momento histórico (Idade Média mais especificamente), as praças, ruas e demais espaços públicos, com suas festas populares (o carnaval, os espetáculos ao ar livre e as feiras), eram usados e tinham uma função de abertura e de desestabilização do poder oficial vigente (os sistemas ideológicos estruturados) porque nivelavam as pessoas e, com isso, apagavam as distinções hierárquicas, suspendiam certas normas estatais e religiosas, e promoviam a experiência de liberdade e de igualdade entre os sujeitos. Hoje não é assim? Não deveria ser? Talvez, seja o caso de tomarmos mais vezes com nossas vozes em atos esse espaço e restaurar sua força. Continuamos utilizando-os dessa maneira e com esse fim em alguns momentos: quando tomamos ruas e avenidas, no Brasil, em especial, muitas vezes, em grandes festas (a comemoração do futebol, as festas populares – não apenas o carnaval, mas também as festas religiosas, as regionais, as folclóricas, o final de uma novela nos bares, o réveillon, as viradas culturais, as danças de rua, o grafite, as pichações transgressoras etc), mas também em grandes manifestações “sérias” (como as passeatas, os pedágios, os piquetes, entre outras), o espaço público e coletivo continua com ou reivindica a sua função “carnavalizadora”. Falta resgatar que tais atos são políticos, responsáveis e responsivos. Esse locus é também topus da exclusão e da marginalidade (mendicância, prostituição, tráfico de drogas ilícitas, bandidagem, “vadiagem”, “malandragem”). Lugar da in-visibilidade. De todos e ninguém. “Terra de Marlboro”, como dizem. As festividades expressivas, como o carnaval (o mais resistente ritual pagão incorporado pelo calendário e “aceito” – sim, entre aspas – pela Igreja contra a sua vontade, ainda que de outra maneira, adaptado e punitivo – 4 dias de liberdade total, penitenciados com 10 vezes mais severidade pela prática do “pecado” da carne – trata-se dos 40 dias que se seguem. Sim, a quaresma, em que não se deve “comer carne”, teoricamente de nenhuma espécie, em nome da ressurreição de Cristo, que morreu. Morte do alto no ato baixo carnavalizado – extremamente interessante…via banquete, literal e figurado), naquele momento, em que ainda não era festa comercial em prol da lucratividade sistêmica (como hoje é institucionalizado), produzia a possibilidade de circulação de determinados discursos e formas de comunicação que, fora desse contexto, eram proibidas e censuradas. Assim, a linguagem carnavalesca, “autorizada” sob determinadas circunstâncias, era um ato político, pois estremecia, desestabilizava, parodiava, ironizava as ideologias oficiais com suas inversões do “alto” ao “baixo estrato corpóreo” (vísceras, genitália, umbigo…“Nádegas a Declarar”). A linguagem carnavalesca, segundo Bakhtin, caracterizava-se “pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, pelas permutações constantes do alto e do baixo (‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões” (1987, p. 10). Nesse sentido, a linguagem do carnaval instaura a possibilidade de ressignificação e re-surgimento de formas de vida com suas respectivas visões de mundo. Este convite à carnavalização do mundo, feito aqui por meio da citação de um verso da canção “Carnavália”, dos Tribalistas, de certa forma demonstra o intuito “Circular” do GED quanto às práticas cotidianas de se pensar e fazer pesquisa na e fora da academia. O conhecimento deve se trans-formar em sabedoria. E, para isso, não pode ficar confinado nos intramuros universitários – que sequer deveriam existir, uma vez que o vocábulo “Universidade” vem do latim (“universia”), que significa “comunidade”, “universo”, “universal”, “comum”. Precisa, portanto, pular tais muros, romper barreiras, derrubar paredes e tomar as ruas, a rede, o universo (para ser fiel ao léxico uni-versi-tário), constituído pela linguagem, em ato concreto. Vamos, então, carnavalizar com “Carnavália”, “Navalha na carne”. O humor de toda espécie (o deboche, a ironia, fina e ácida, o pastelão, a “torta na cara”) dá uma banana para a hipocrisia e segue, sem abalo às manobras e intrigas porque ri diante do inimigo, “ri na cara do perigo” e isso, sim, causa abalos sísmicos e altera profunda-mente o sistema. Por menores que pareçam, à primeira vista (e jamais assumidos), tais atos, aparentemente inconsequentes e “sem causa”, fazem história porque responsivos, dialógicos. A rebeldia não tem de ter causa aparente. Ela existe e caminha contra a hegemonia confortável e cômoda, como “Ode ao burguês”. Deixemos de homenagear e passemos a carnavalizar a vida em atu-ação filosófico-concreta. Carnavalizar: uma prática de resistência ao poder hierárquico e às ideologias oficiais de forma coletiva, ambivalente e bivocal, por meio do riso (carnavalesco/carnavalizado). Nas palavras de Bakhtin: A praça pública no fim da Idade Média e no Renascimento formava um mundo único e coeso onde todas as “tomadas de palavra” (desde as interpelações em altos brados até os espetáculos organizados) possuíam alguma coisa em comum, pois estavam impregnados do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e familiaridade (1987, p. 132). Não seria a rede, famosa “world, wide, web” (o mundo navegando numa onda amarrada numa teia infinita), esse espaço público coeso de outrora ao qual se refere Bakhtin, junto com os locais físicos ainda existentes, mas em grande parte do tempo, redimensionados? Por que será que a “conexão” atrai tanto o homem? Por ser ele sujeito refletido e refratado pela e na linguagem, dialógico? Melhor “Circular” com sabor e pensar com escuta ativa esse saber de “homo-sapiens-demens” (Morin). Des-fiar a vida com as Moiras da linguagem. Carnavalizar. Vamos? 😉 #carnavalização #circular #conexão #linguagem

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