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  • A trilha sonora como entonação dentro e fora de cena

    Rafael Marcurio da Cól Não se pode negar a importância da trilha sonora no cinema, pois ela dará, por exemplo, a entonação num momento de silêncio ou o passar do tempo. O cinema contemporâneo dispõe de novas práticas para introduzir a trilha sonora em cena, desde os musicais que incorporam canções atuais e os filmes que trazem as trilhas para a inter-ação entre as personagens, como parte essencial do convívio, proporcionado, atualmente, pelas novas tecnologias, mas que já está em voga desde a fita cassete que torna as músicas e canções portáteis, além dos rádios etc. Desta forma, esse texto propõe uma reflexão sobre essas novas práticas de introdução e de imersão das trilhas, em específico, no curta-metragem Eu não quero voltar sozinho (2010) e no longa-metragem Hoje eu quero voltar sozinho (2014) ambos do diretor e roteirista Daniel Ribeiro. Essa reflexão seguirá a orientação teórica da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, Medvíedev e Volochínov e da Semiótica da Cultura, em específico, do autor Iuri Loman. (Segue o curta-metragem:  http://www.youtube.com/watch?v=1Wav5KjBHbI ) O projeto Eu não quero voltar sozinho surge de uma ideia do diretor em mostrar a descoberta do primeiro amor e, com isso, a descoberta da sexualidade de sua personagem. Pode-se pensar que tanto o amor quanto a sexualidade estiveram e estão ligados ao olhar, desde “o amor a primeira vista” observado nos contos de fadas, a partir dessa premissa, a questão colada pelo diretor é: “O que acontece se tirarmos isso (a visão)?”. Sua personagem pretende não apenas demonstrar a descoberta do primeiro amor, mas sua construção a partir dos sons, cheiros e toques, livre dos estereótipos visuais vinculados e incutidos pelas mídias. Essas obras (curta e longa) abordam diversas temáticas cada um com a sua especificidade, desde a sexualidade até as suas dificuldades de convívio (bullying), ora por ser portador deficiência visual, ora pode ser gay, principalmente, no contexto escolar e extraescolar: viagens, passeios, festas etc. A obra de Daniel Ribeiro deve ser alvo de estudos, uma vez que, traz as situações de maneira muito leve e simples, podendo ser vinculada, facilmente, com a vida cotidiana. Contudo, nessa reflexão, ater-se-á nas relações estéticas entre trilha e enredo, vistos como constituintes de um gênero discursivo, cinema. Entretanto, o que se pode chamar de trilha sonora? A trilha sonora, grosso modo, é a música ou canção que constitui a cena de um filme, novela, série etc. Seja ela, parte do projeto de dizer de sua personagem, ou não. Existem diversos tipos de trilhas, cada uma com um propósito, por exemplo: nos musicais as trilhas são foco e podem ou não participar do projeto de dizer das personagens, as trilhas apenas musicais mostradas ao fundo e as canções populares ouvidas durante o filme também são consideradas trilhas. Com isso se pode ter melhor visão dos tipos de trilhas em um filme. Deve-se observar que a trilha, por si só, é uma obra artística e, por sua vez, é constituída de linguagem seja ela verbal, não-verbal ou mista (texto sincrético) e foi lapidada ao seu modo na construção de um acabamento estético. Com a exceção, das trilhas criadas para filmes musicais, as quais contém todo o projeto de dizer das personagens, mas que, mesmo assim, condiz a uma linguagem que advém do campo musical. Assim, esse diálogo entre a obra já existente e a que está em ato é preciso ser iminente, pois uma trilha errada pode dar um efeito não desejado ao filme, série ou novela. Nos filmes em questão serão abordados nessa reflexão apenas dois momentos (um do curta-metragem e um do longa-metragem) que reverberarão na obra como um todo. É possível observar a semelhanças entre esses momentos, caracterizando o estilo do diretor, Daniel Ribeiro, como autor desse ato estético, que poderia ser retomado num próximo artigo. O primeiro momento é o do curta-metragem, quando a canção tema do casal (Léo e Gabriel) aparece pela primeira vez, logo após Gabriel ter a primeira pista que Léo está gostando dele, a canção “Janta” do músico e compositor Marcelo Camelo começa no quarto do Léo e termina entoada pelos personagens, Léo e Giovana (a melhor amiga de Léo) no pátio da escola. Na canção se analisa a construção da letra como um jogo de palavras, ou seja, a estrutura da primeira estrofe se repete na segunda, entretanto, algumas palavras são trocadas, num movimento de reinteração muito comum em canções populares, porém, nessa, em especial, dá sentidos diferentes a frases muito parecidas. (Segue a canção: http://www.youtube.com/watch?v=8qslW1S6Z1I) E o segundo momento do longa-metragem é quando Gabriel descobre que Léo usa obras clássicas para identificar as chamadas em seu celular e fica curioso pra saber qual é “a sua obra”. Mas, ao descobrir que ele “é o Bach”, ou representado pela obra barroca de Bach, não fica muito satisfeito e sugere a Léo uma canção que acaba de apresentar ao amigo da banda, Belle & Sebastien, denominada: “There’s too much love”. Uma canção dançante e que tem solos de violinos, instrumento típico da música clássica de orquestras, mas que ganha grande espaço na música popular nos anos de 80 e 90, um ato responsivo e responsável ao se identificar com essa canção, dando a primeira pista de seus sentimentos. Desse momento em diante, a canção se torna trilha sonora da amizade/namoro entre os dois jovens. (Segue a canção: http://www.youtube.com/watch?v=FXAbar6PzRA) Esses momentos foram escolhidos pelo modo como a trilha tema do casal é introduzida nas cenas, no curta-metragem de maneira tradicional (fora da interação), mas que depois entra pela voz dos amigos. E no longa-metragem, que entra escolhida por Gabriel, nesse ato, responsivo e responsável, essa canção demonstra seu carinho por Léo, apenas pelo título da canção é possível comprovar essa proposição, pois “There’s too much love” somando a ideia de diversidade e das várias formas de amor. Entra constituindo a inter-ação entre as personagens e depois se torna sua trilha tema. Considerando o texto artístico, as trilhas sonoras corroboram para a construção da enunciação do filme, que é influenciada pela relação “ouvinte-participante” das cenas em questão, pois ela é a entonação dada pelo diretor. Segundo Volochínov, no artigo, “A construção da Enunciação” (2013): “O vínculo entre a enunciação, sua situação e seu auditório se estabelece, sobretudo pela entonação.” (Idem, p.174), sendo a entonação, “a expressão sonora da valorização social” (Ibid, p.175), isso no âmbito da vida cotidiana, mas o linguista russo usa obras literárias e elementos musicais dentre outros para exemplificar suas proposições, deixando a margem para interpretações sobre a sua reflexão que ao falar da vida reverbera na arte. Assim, considera-se que deva ser levado para o contexto artístico, no caso, do filme, pensando que o diretor viabiliza sua obra, introduzindo a trilha sonora coerente a sua proposta. Para Lotman em sua obra, A estrutura do texto artístico (1978), essa questão sobre a aplicação no texto artístico, é mais evidente, visto ser o foco de sua obra. Observa-se que para Lotman a obra de arte é um dos meios de comunicação, ou seja, existe um emissor e um receptor, que é, no caso dos filmes, passar não uma, mas diversas mensagens, e é constituído por um tipo de linguagem (Idem, p.45), como: os enquadramentos de imagens, as falas das personagens, os cenários e as trilhas sonoras, foco dessa reflexão. Tem-se em cada sistema de comunicação uma função modalizante (Ibid, p.45), na qual pode ser observado nos tipos de trilhas abordada acima, sendo que cada uma tem uma função dentro da obra. Deste modo, ao escolher o gênero também opta por um tipo de linguagem com qual pensa abordar o leitor, segundo Lotman ( Ibid, p.50). Assim, constituir um longa-metragem ou um curta-metragem requer um tipo de linguagem, no curta algo mais breve e simples e no longa algo mais desenvolvido. Isso não anula as importâncias de ambas, entretanto, o tipo de linguagem utilizada é diferente. É possível perceber uma convergência entre as teorias citadas que tem metodologias diferentes e que tratam de objetos diferentes, mas pela mesma perspectiva, a dialógica. Ambas se defrontam com a linguagem, uma de maneira sistêmica e outra de maneira filosófica. Contudo, é possível fazer uma intersecção entre esses elementos que se complementam, de um lado se tem uma perspectiva que aborda a vida, de uma maneira geral, filosófica e aborda a questão do texto artístico, mas não como prioridade. A outra tem como prioridade o texto artístico e pensa nele como meio de comunicação. Com isso, percebe-se que o diálogo é o fio condutor desses dois nichos teóricos, permitindo fazer uma aproximação entre as teorias, que se tocam em diversos aspectos e se complementa em outros. Esse ponto abordado é um dos que se complementam, uma vez que, temos de um lado a aplicação em diálogos da vida cotidiana no texto de Volochínov e Lotman diz que o texto artístico é um meio de comunicação. Aproxima essas duas perspectivas, complementando as peculiaridades técnicas de um texto artístico no que cabe a Lotman E Volochínov, por sua vez, com a abrangência filosófica que dá ao seu texto o torna caro implicitamente nos estudos de textos artísticos. Pode-se pensar na trilha sonora como a entonação no conjunto de uma cena de  filme, pois, ela a agrega valores incutidos na sociedade. Ao participar ativamente da interação lhe dá um carácter sutil de comunicação entre as personagens, criando uma atmosfera mais propícia para o romance. Analisa-se que tanto no longa quanto no curta existem o entrelaçamento entre as trilhas temas e o enredo dos filmes. No caso do longa, até mesmo entre o arranjo e os personagens, uma vez que, Léo representa o clássico, na canção, exposto pelo violino e Gabriel pelo rock dançante, isso é possível afirmar a partir do contexto exposto na obra. E no curta, sutilmente demonstra a descoberta da sexualidade, que como a canção de Marcelo Camelo é delicado e ingênuo. Conclui-se que ao permitir a entrada da trilha na interação entre as personagens o diretor permite que  canção também comunique na vida cotidiana e no texto artístico, criando uma atmosfera romântica que impulsiona os filmes para o seu ápice. Isso se constrói, a partir do conceito de entonação que traz o social para a cena e a modaliza. Bibliografia: LOTMAN, Iuri. A Estrutura do texto artístico. Lisboa: Editora Espamta, 1978. VOLOCHÍNOV, V. N. “A construção da enunciação” In: A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 157-189.

  • A trilha sonora como entonação dentro e fora de cena

    Rafael Marcurio da Cól Não se pode negar a importância da trilha sonora no cinema, pois ela dará, por exemplo, a entonação num momento de silêncio ou o passar do tempo. O cinema contemporâneo dispõe de novas práticas para introduzir a trilha sonora em cena, desde os musicais que incorporam canções atuais e os filmes que trazem as trilhas para a inter-ação entre as personagens, como parte essencial do convívio, proporcionado, atualmente, pelas novas tecnologias, mas que já está em voga desde a fita cassete que torna as músicas e canções portáteis, além dos rádios etc. Desta forma, esse texto propõe uma reflexão sobre essas novas práticas de introdução e de imersão das trilhas, em específico, no curta-metragem Eu não quero voltar sozinho (2010) e no longa-metragem Hoje eu quero voltar sozinho (2014) ambos do diretor e roteirista Daniel Ribeiro. Essa reflexão seguirá a orientação teórica da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, Medvíedev e Volochínov e da Semiótica da Cultura, em específico, do autor Iuri Loman. (Segue o curta-metragem:  http://www.youtube.com/watch?v=1Wav5KjBHbI ) O projeto Eu não quero voltar sozinho surge de uma ideia do diretor em mostrar a descoberta do primeiro amor e, com isso, a descoberta da sexualidade de sua personagem. Pode-se pensar que tanto o amor quanto a sexualidade estiveram e estão ligados ao olhar, desde “o amor a primeira vista” observado nos contos de fadas, a partir dessa premissa, a questão colada pelo diretor é: “O que acontece se tirarmos isso (a visão)?”. Sua personagem pretende não apenas demonstrar a descoberta do primeiro amor, mas sua construção a partir dos sons, cheiros e toques, livre dos estereótipos visuais vinculados e incutidos pelas mídias. Essas obras (curta e longa) abordam diversas temáticas cada um com a sua especificidade, desde a sexualidade até as suas dificuldades de convívio (bullying), ora por ser portador deficiência visual, ora pode ser gay, principalmente, no contexto escolar e extraescolar: viagens, passeios, festas etc. A obra de Daniel Ribeiro deve ser alvo de estudos, uma vez que, traz as situações de maneira muito leve e simples, podendo ser vinculada, facilmente, com a vida cotidiana. Contudo, nessa reflexão, ater-se-á nas relações estéticas entre trilha e enredo, vistos como constituintes de um gênero discursivo, cinema. Entretanto, o que se pode chamar de trilha sonora? A trilha sonora, grosso modo, é a música ou canção que constitui a cena de um filme, novela, série etc. Seja ela, parte do projeto de dizer de sua personagem, ou não. Existem diversos tipos de trilhas, cada uma com um propósito, por exemplo: nos musicais as trilhas são foco e podem ou não participar do projeto de dizer das personagens, as trilhas apenas musicais mostradas ao fundo e as canções populares ouvidas durante o filme também são consideradas trilhas. Com isso se pode ter melhor visão dos tipos de trilhas em um filme. Deve-se observar que a trilha, por si só, é uma obra artística e, por sua vez, é constituída de linguagem seja ela verbal, não-verbal ou mista (texto sincrético) e foi lapidada ao seu modo na construção de um acabamento estético. Com a exceção, das trilhas criadas para filmes musicais, as quais contém todo o projeto de dizer das personagens, mas que, mesmo assim, condiz a uma linguagem que advém do campo musical. Assim, esse diálogo entre a obra já existente e a que está em ato é preciso ser iminente, pois uma trilha errada pode dar um efeito não desejado ao filme, série ou novela. Nos filmes em questão serão abordados nessa reflexão apenas dois momentos (um do curta-metragem e um do longa-metragem) que reverberarão na obra como um todo. É possível observar a semelhanças entre esses momentos, caracterizando o estilo do diretor, Daniel Ribeiro, como autor desse ato estético, que poderia ser retomado num próximo artigo. O primeiro momento é o do curta-metragem, quando a canção tema do casal (Léo e Gabriel) aparece pela primeira vez, logo após Gabriel ter a primeira pista que Léo está gostando dele, a canção “Janta” do músico e compositor Marcelo Camelo começa no quarto do Léo e termina entoada pelos personagens, Léo e Giovana (a melhor amiga de Léo) no pátio da escola. Na canção se analisa a construção da letra como um jogo de palavras, ou seja, a estrutura da primeira estrofe se repete na segunda, entretanto, algumas palavras são trocadas, num movimento de reinteração muito comum em canções populares, porém, nessa, em especial, dá sentidos diferentes a frases muito parecidas. (Segue a canção: http://www.youtube.com/watch?v=8qslW1S6Z1I) E o segundo momento do longa-metragem é quando Gabriel descobre que Léo usa obras clássicas para identificar as chamadas em seu celular e fica curioso pra saber qual é “a sua obra”. Mas, ao descobrir que ele “é o Bach”, ou representado pela obra barroca de Bach, não fica muito satisfeito e sugere a Léo uma canção que acaba de apresentar ao amigo da banda, Belle & Sebastien, denominada: “There’s too much love”. Uma canção dançante e que tem solos de violinos, instrumento típico da música clássica de orquestras, mas que ganha grande espaço na música popular nos anos de 80 e 90, um ato responsivo e responsável ao se identificar com essa canção, dando a primeira pista de seus sentimentos. Desse momento em diante, a canção se torna trilha sonora da amizade/namoro entre os dois jovens. (Segue a canção: http://www.youtube.com/watch?v=FXAbar6PzRA) Esses momentos foram escolhidos pelo modo como a trilha tema do casal é introduzida nas cenas, no curta-metragem de maneira tradicional (fora da interação), mas que depois entra pela voz dos amigos. E no longa-metragem, que entra escolhida por Gabriel, nesse ato, responsivo e responsável, essa canção demonstra seu carinho por Léo, apenas pelo título da canção é possível comprovar essa proposição, pois “There’s too much love” somando a ideia de diversidade e das várias formas de amor. Entra constituindo a inter-ação entre as personagens e depois se torna sua trilha tema. Considerando o texto artístico, as trilhas sonoras corroboram para a construção da enunciação do filme, que é influenciada pela relação “ouvinte-participante” das cenas em questão, pois ela é a entonação dada pelo diretor. Segundo Volochínov, no artigo, “A construção da Enunciação” (2013): “O vínculo entre a enunciação, sua situação e seu auditório se estabelece, sobretudo pela entonação.” (Idem, p.174), sendo a entonação, “a expressão sonora da valorização social” (Ibid, p.175), isso no âmbito da vida cotidiana, mas o linguista russo usa obras literárias e elementos musicais dentre outros para exemplificar suas proposições, deixando a margem para interpretações sobre a sua reflexão que ao falar da vida reverbera na arte. Assim, considera-se que deva ser levado para o contexto artístico, no caso, do filme, pensando que o diretor viabiliza sua obra, introduzindo a trilha sonora coerente a sua proposta. Para Lotman em sua obra, A estrutura do texto artístico (1978), essa questão sobre a aplicação no texto artístico, é mais evidente, visto ser o foco de sua obra. Observa-se que para Lotman a obra de arte é um dos meios de comunicação, ou seja, existe um emissor e um receptor, que é, no caso dos filmes, passar não uma, mas diversas mensagens, e é constituído por um tipo de linguagem (Idem, p.45), como: os enquadramentos de imagens, as falas das personagens, os cenários e as trilhas sonoras, foco dessa reflexão. Tem-se em cada sistema de comunicação uma função modalizante (Ibid, p.45), na qual pode ser observado nos tipos de trilhas abordada acima, sendo que cada uma tem uma função dentro da obra. Deste modo, ao escolher o gênero também opta por um tipo de linguagem com qual pensa abordar o leitor, segundo Lotman ( Ibid, p.50). Assim, constituir um longa-metragem ou um curta-metragem requer um tipo de linguagem, no curta algo mais breve e simples e no longa algo mais desenvolvido. Isso não anula as importâncias de ambas, entretanto, o tipo de linguagem utilizada é diferente. É possível perceber uma convergência entre as teorias citadas que tem metodologias diferentes e que tratam de objetos diferentes, mas pela mesma perspectiva, a dialógica. Ambas se defrontam com a linguagem, uma de maneira sistêmica e outra de maneira filosófica. Contudo, é possível fazer uma intersecção entre esses elementos que se complementam, de um lado se tem uma perspectiva que aborda a vida, de uma maneira geral, filosófica e aborda a questão do texto artístico, mas não como prioridade. A outra tem como prioridade o texto artístico e pensa nele como meio de comunicação. Com isso, percebe-se que o diálogo é o fio condutor desses dois nichos teóricos, permitindo fazer uma aproximação entre as teorias, que se tocam em diversos aspectos e se complementa em outros. Esse ponto abordado é um dos que se complementam, uma vez que, temos de um lado a aplicação em diálogos da vida cotidiana no texto de Volochínov e Lotman diz que o texto artístico é um meio de comunicação. Aproxima essas duas perspectivas, complementando as peculiaridades técnicas de um texto artístico no que cabe a Lotman E Volochínov, por sua vez, com a abrangência filosófica que dá ao seu texto o torna caro implicitamente nos estudos de textos artísticos. Pode-se pensar na trilha sonora como a entonação no conjunto de uma cena de  filme, pois, ela a agrega valores incutidos na sociedade. Ao participar ativamente da interação lhe dá um carácter sutil de comunicação entre as personagens, criando uma atmosfera mais propícia para o romance. Analisa-se que tanto no longa quanto no curta existem o entrelaçamento entre as trilhas temas e o enredo dos filmes. No caso do longa, até mesmo entre o arranjo e os personagens, uma vez que, Léo representa o clássico, na canção, exposto pelo violino e Gabriel pelo rock dançante, isso é possível afirmar a partir do contexto exposto na obra. E no curta, sutilmente demonstra a descoberta da sexualidade, que como a canção de Marcelo Camelo é delicado e ingênuo. Conclui-se que ao permitir a entrada da trilha na interação entre as personagens o diretor permite que  canção também comunique na vida cotidiana e no texto artístico, criando uma atmosfera romântica que impulsiona os filmes para o seu ápice. Isso se constrói, a partir do conceito de entonação que traz o social para a cena e a modaliza. Bibliografia: LOTMAN, Iuri. A Estrutura do texto artístico. Lisboa: Editora Espamta, 1978. VOLOCHÍNOV, V. N. “A construção da enunciação” In: A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 157-189.

  • Um dueto “relativamente estável”

    Patrick Paiva Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. (Gêneros do Discurso – M. Bakhtin) Numa quarta-feira de novembro, eu voltava do trabalho de carona com uma amiga quando ela ligou o aparelho de som do carro e colocou um pendrive me dizendo: “Vou te mostrar uma música nova que eu gosto muito”! Olhei no visor do som do carro e vi escrito: Eu me lembro – Clarice Falcão (feat. Silva). O que pude intuir pelo título da faixa é que ouviria um dueto (romântico?) entre a Clarice e um tal Silva. Num dueto, normalmente, cada um dos cantores canta sua parte, canta sua letra e quando cantam juntos fazem uma segunda voz; mas atuam sempre em concordância, reforçando um mesmo ponto de vista. Somente a título de recordação, por exemplo, grandes duetos que marcaram épocas: Perhaps love – com Plácido Domingo e John Denver; Endless love – Lionel Richie e Diana Ross; ou ainda Beauty and The Beast –  interpretada por Celine Dion e Peabo Bryson. Porém, o que ouvi foi isto: Achei a canção, no mínimo, curiosa. Com uma harmonia simples e sem grandes rompantes instrumentais, os cantores desenvolvem uma narrativa na qual ambos se recordam (ou tentarão se recordar) do primeiro encontro. Acompanhados por um instrumento de cordas (talvez um violão, que é mais percutido que tangido) iniciam o dueto. Em Eu me lembro observamos que cada eu-poético apresenta sua visão do primeiro encontro e vai desenvolvendo seus argumentos sempre em discordância do outro eu-poético. É uma confrontação entre dois eu(s)-para-mim. Podemos evidenciar a primeira instabilidade (ou relativa estabilidade) do gênero em relação ao conteúdo temático do dueto. Veja a primeira estrofe: Era manhãXTrês da tardeQuando ele chegouXFoi ela quem subiuEu disse: “Oi! Fica à vontade”XEu é que disse “Oi”, mas ela não ouviu Fica evidente aqui a estrutura arquitetônica do primeiro encontro como evento, único, irrepetível, singular. Cada eu-poético (eu-para-mim) ocupando o centro da relação com o outro (outro-para-mim) e estabelecendo seus próprios parâmetros, valores e sentidos. A primeira relação é temporal (manhã/tarde), segunda espacial (chegou/subiu) e a terceira é a da tentativa do primeiro contato (Oi/Oi), a relação interativa de diálogo face a face. Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir. (BAKHTIN, 2010 [1920-24], p. 40) É interessante notar que a arquitetônica do encontro-evento é que determinará a forma composicional desta canção-dueto. Uma composição polifônica como metaforizada por Bakhtin para os estudos literários, em que cada voz expõe seu ponto de vista sem que uma se sobressaia. Segunda “relativa estabilidade”! Como exposto anteriormente, nos duetos as vozes confirmam um ponto de vista e a forma composicional confirma o conteúdo semântico-objetal. Aqui, há o inverso: o dueto apresenta visões díspares e a forma composicional “polifônica” confirma a divergência. Exemplo disso é o refrão, que se observado a partir do eixo sincrônico nos revela visões controversas e simultâneas do acontecimento da canção-evento: E foi assim que eu vi que a vida colocou ele/ela pra mim Ali naquela Terça-Feira/Quinta-Feira de Setembro/Dezembro Outro aspecto que convém destacar é a relação entre a linguagem verbal e a linguagem musical. Assim como o sentido da canção é produzido pela adição de acontecimentos sob o ponto de vista das palavras (verbal), eventos musicais são adicionados ao longo da canção confirmando assim o estilo minimalista[1] da compositora e do álbum Monomania, em que a canção está inserida. Na primeira estrofe (0:00 – 0:28), início dos acontecimentos e momento em que tudo será apresentado, entra subitamente o canto acompanhado por um violão com o timbre abafado com a intenção de marcar mais ritmicamente do que harmonicamente a sucessão dos acontecimentos que comporão o evento. Na primeira apresentação do refrão (0:29 – 1:00) entram alguns instrumentos que ditarão explicitamente a harmonia (baixo acústico, violoncelo, percussão e guitarra elétrica) e executarão alguns ornamentos. Tem-se a impressão de que a partir de agora haverá uma mínima concordância entre os “eus” do dueto, o que é gerado pela entrada dos instrumentos executando a harmonia. Porém esta é logo frustrada pela execução simultânea de ele/ela, terça/quinta e setembro/dezembro. Na segunda estrofe (1:01 – 1:29) tudo volta parece voltar à condição inicial, o que é típico do estilo minimalista, porém a guitarra elétrica permanece realizando uma espécie de ornamento em conjunto com o “violão rítmico”. Assim, novos acontecimentos são adicionados a esse “(des)encontro” tanto pela linguagem verbal quanto pelos elementos da linguagem musical. A segunda execução do refrão (1:30 – 2:01) contém a mesma letra da primeira, porém há um aumento da dinâmica e intensidade dos instrumentos e dos cantores é maior. Há também um aumento significativo dos acontecimentos musicais em relação à primeira apresentação do refrão. Na terceira estrofe (2:02 – 2:28), também há um movimento crescente de eventos em relação à segunda estrofe. Além dos instrumentos da segunda estrofe, podemos ouvir mais intervenções percussivas e pizzicatos das cordas. O terceiro refrão (2:29 – 3:00) abre a seção de maior intensidade sob o ponto de vista da linguagem musical. É inserido um novo timbre eletrônico que imita um xilofone. Segue-se finalmente a Coda (3:01 – 3:35), que é a seção com que se termina uma música. A Coda é estritamente instrumental e, a fim de garantir a crescente espiral[2] minimalista, novos acontecimentos são adicionados ao arranjo. É inserido um trompete que dialoga com o violoncelo prolongando por meio da linguagem musical o desencontro das versões apresentadas e confirmadas por cada eu-poético em todas vezes em que o refrão era apresentado pela frase “eu me lembro” e que, inclusive, é topicalizada pelo título da canção. Eis uma breve reflexão! Referências: BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. BAKHTIN, M. M. Gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRITO, Fernando. Philip Glass e o minimalismo. Disponível em: http://fernandobritto.blogspot.com.br/2012/02/philip-glass-e-o-minimalismo.html Acesso em: 21/06/2014. [1] Baseada na repetição e na variação paulatina dos elementos colocados em jogo durante a ação musical, (…) esse gênero de música voltou a se basear no sistema tonal e no emprego das consonâncias geradas por seus acordes perfeitos, de emprego lento e gradual, gerador de uma quase imobilidade. Contudo, os elementos colocados sobre esses acordes, ou sobre ritmos repetitivos, geram uma polifonia capaz de provocar a sensação de movimento, de dar à música a sensação de dinâmica, e por conseguinte, de vida. (BRITO, Fernando) [2] Para conhecer um pouco mais sobre Música Minimalista segue um exemplo do compositor Philip Glass – Morning Passages (http://www.youtube.com/watch?v=Aj6BLyqTKDo ) que integrou a trilha sonora do filme “As Horas” (2001). É curioso notar a crescente espiral de acontecimentos musicais que vão surgindo no decorrer da obra.

  • Um dueto “relativamente estável”

    Patrick Paiva Cada esfera conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos. Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. (Gêneros do Discurso – M. Bakhtin) Numa quarta-feira de novembro, eu voltava do trabalho de carona com uma amiga quando ela ligou o aparelho de som do carro e colocou um pendrive me dizendo: “Vou te mostrar uma música nova que eu gosto muito”! Olhei no visor do som do carro e vi escrito: Eu me lembro – Clarice Falcão (feat. Silva). O que pude intuir pelo título da faixa é que ouviria um dueto (romântico?) entre a Clarice e um tal Silva. Num dueto, normalmente, cada um dos cantores canta sua parte, canta sua letra e quando cantam juntos fazem uma segunda voz; mas atuam sempre em concordância, reforçando um mesmo ponto de vista. Somente a título de recordação, por exemplo, grandes duetos que marcaram épocas: Perhaps love – com Plácido Domingo e John Denver; Endless love – Lionel Richie e Diana Ross; ou ainda Beauty and The Beast –  interpretada por Celine Dion e Peabo Bryson. Porém, o que ouvi foi isto: Achei a canção, no mínimo, curiosa. Com uma harmonia simples e sem grandes rompantes instrumentais, os cantores desenvolvem uma narrativa na qual ambos se recordam (ou tentarão se recordar) do primeiro encontro. Acompanhados por um instrumento de cordas (talvez um violão, que é mais percutido que tangido) iniciam o dueto. Em Eu me lembro observamos que cada eu-poético apresenta sua visão do primeiro encontro e vai desenvolvendo seus argumentos sempre em discordância do outro eu-poético. É uma confrontação entre dois eu(s)-para-mim. Podemos evidenciar a primeira instabilidade (ou relativa estabilidade) do gênero em relação ao conteúdo temático do dueto. Veja a primeira estrofe: Era manhãXTrês da tardeQuando ele chegouXFoi ela quem subiuEu disse: “Oi! Fica à vontade”XEu é que disse “Oi”, mas ela não ouviu Fica evidente aqui a estrutura arquitetônica do primeiro encontro como evento, único, irrepetível, singular. Cada eu-poético (eu-para-mim) ocupando o centro da relação com o outro (outro-para-mim) e estabelecendo seus próprios parâmetros, valores e sentidos. A primeira relação é temporal (manhã/tarde), segunda espacial (chegou/subiu) e a terceira é a da tentativa do primeiro contato (Oi/Oi), a relação interativa de diálogo face a face. Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo, é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua totalidade pode ser considerada como uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir. (BAKHTIN, 2010 [1920-24], p. 40) É interessante notar que a arquitetônica do encontro-evento é que determinará a forma composicional desta canção-dueto. Uma composição polifônica como metaforizada por Bakhtin para os estudos literários, em que cada voz expõe seu ponto de vista sem que uma se sobressaia. Segunda “relativa estabilidade”! Como exposto anteriormente, nos duetos as vozes confirmam um ponto de vista e a forma composicional confirma o conteúdo semântico-objetal. Aqui, há o inverso: o dueto apresenta visões díspares e a forma composicional “polifônica” confirma a divergência. Exemplo disso é o refrão, que se observado a partir do eixo sincrônico nos revela visões controversas e simultâneas do acontecimento da canção-evento: E foi assim que eu vi que a vida colocou ele/ela pra mim Ali naquela Terça-Feira/Quinta-Feira de Setembro/Dezembro Outro aspecto que convém destacar é a relação entre a linguagem verbal e a linguagem musical. Assim como o sentido da canção é produzido pela adição de acontecimentos sob o ponto de vista das palavras (verbal), eventos musicais são adicionados ao longo da canção confirmando assim o estilo minimalista[1] da compositora e do álbum Monomania, em que a canção está inserida. Na primeira estrofe (0:00 – 0:28), início dos acontecimentos e momento em que tudo será apresentado, entra subitamente o canto acompanhado por um violão com o timbre abafado com a intenção de marcar mais ritmicamente do que harmonicamente a sucessão dos acontecimentos que comporão o evento. Na primeira apresentação do refrão (0:29 – 1:00) entram alguns instrumentos que ditarão explicitamente a harmonia (baixo acústico, violoncelo, percussão e guitarra elétrica) e executarão alguns ornamentos. Tem-se a impressão de que a partir de agora haverá uma mínima concordância entre os “eus” do dueto, o que é gerado pela entrada dos instrumentos executando a harmonia. Porém esta é logo frustrada pela execução simultânea de ele/ela, terça/quinta e setembro/dezembro. Na segunda estrofe (1:01 – 1:29) tudo volta parece voltar à condição inicial, o que é típico do estilo minimalista, porém a guitarra elétrica permanece realizando uma espécie de ornamento em conjunto com o “violão rítmico”. Assim, novos acontecimentos são adicionados a esse “(des)encontro” tanto pela linguagem verbal quanto pelos elementos da linguagem musical. A segunda execução do refrão (1:30 – 2:01) contém a mesma letra da primeira, porém há um aumento da dinâmica e intensidade dos instrumentos e dos cantores é maior. Há também um aumento significativo dos acontecimentos musicais em relação à primeira apresentação do refrão. Na terceira estrofe (2:02 – 2:28), também há um movimento crescente de eventos em relação à segunda estrofe. Além dos instrumentos da segunda estrofe, podemos ouvir mais intervenções percussivas e pizzicatos das cordas. O terceiro refrão (2:29 – 3:00) abre a seção de maior intensidade sob o ponto de vista da linguagem musical. É inserido um novo timbre eletrônico que imita um xilofone. Segue-se finalmente a Coda (3:01 – 3:35), que é a seção com que se termina uma música. A Coda é estritamente instrumental e, a fim de garantir a crescente espiral[2] minimalista, novos acontecimentos são adicionados ao arranjo. É inserido um trompete que dialoga com o violoncelo prolongando por meio da linguagem musical o desencontro das versões apresentadas e confirmadas por cada eu-poético em todas vezes em que o refrão era apresentado pela frase “eu me lembro” e que, inclusive, é topicalizada pelo título da canção. Eis uma breve reflexão! Referências: BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do Ato Responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. BAKHTIN, M. M. Gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRITO, Fernando. Philip Glass e o minimalismo. Disponível em: http://fernandobritto.blogspot.com.br/2012/02/philip-glass-e-o-minimalismo.html Acesso em: 21/06/2014. [1] Baseada na repetição e na variação paulatina dos elementos colocados em jogo durante a ação musical, (…) esse gênero de música voltou a se basear no sistema tonal e no emprego das consonâncias geradas por seus acordes perfeitos, de emprego lento e gradual, gerador de uma quase imobilidade. Contudo, os elementos colocados sobre esses acordes, ou sobre ritmos repetitivos, geram uma polifonia capaz de provocar a sensação de movimento, de dar à música a sensação de dinâmica, e por conseguinte, de vida. (BRITO, Fernando) [2] Para conhecer um pouco mais sobre Música Minimalista segue um exemplo do compositor Philip Glass – Morning Passages (http://www.youtube.com/watch?v=Aj6BLyqTKDo ) que integrou a trilha sonora do filme “As Horas” (2001). É curioso notar a crescente espiral de acontecimentos musicais que vão surgindo no decorrer da obra.

  • Ordem, sem cessar

    Mirian Valéria Gomes Sabeh Luciane de Paula Durante todo esse tempo em sala de aula, em escola pública, venho refletindo sobre a educação, sobre os métodos, sobre o meu sujeito-aluno, enfim, o que se faz necessário em todos esses aspectos na vida não apenas desse sujeito, mas também na de todos os envolvido no processo educacional – e isso significa: a sociedade toda. Todos os dias, sem cessar, ao final do expediente, é inevitável a presença dos questionamentos em minha mente, sobre os sujeitos envolvido mais diretamente no processo institucional escolar, ou seja, o educador e o estudante. Este, mais especificamente, visto, muitas vezes e por muitos (inclusive, por muitos que se dizem educadores), como aquele que engole (ou deve) tudo o que lhe é imposto, quer seja de maneira passiva quer não (e se protestar pelo que julga não ser benéfico, é mal visto, punido etc). Acredito, pelos diálogos, pela escuta ativa à sua voz, pela observação de seu comportamento e pelo interesse demonstrado, que não queira mesmo que o processo continue como tem sido realizado. Mas, apesar de visível o seu descontentamento, nada tem sido modificado, ainda que teorias e métodos surjam como “milagres” “salvadores” do caos da educação, não apenas no Brasil, mas de maneira mundial. Isso angustia e fico me perguntando o motivo, qual a solução, o meu papel nisso tudo como educadora questionadora e criteriosa que tento ser. Perfilados em suas salas, presos em suas carteiras, sem conversa, os alunos são moldados, a gosto do poder que emana de uma sociedade hierárquica e hegemônica, robotizada e reprodutora, como reflete e refrata o clipe da canção “Another brick in the wall”, da banda Pink Floyd, que demonstra a opressão sistêmica do que alguns teimam em chamar de “educação escolar”. A canção quase soa como um slogan atemporal que muito lembra Ramonet: Os colonizadores e seus opressores sabem que a relação de domínio não está fundada apenas na supremacia da força. Passado o tempo da conquista, soa a hora do controle dos espíritos. E é tanto mais fácil dominar, quando o domínio permanece inconsciente. Daí a importância da persuasão clandestina e da propaganda secreta, pois, a longo prazo, para todo império que deseja durar, a grande aposta consiste em domesticar as almas, torná-las dóceis e depois subjuga-las. (2002, p.21) A fala de Ramonet, que vai ao encontro das reflexões de Foucault sobre as estratégias da microfísica do poder e vigiar e punir, faz-me pensar ainda mais na escola como estrutura de poder e no papel do professor. Este – e isso me horroriza – metaforizado como o carrasco, aquele que age em nome do poder, o que dá a sua “cara a tapa” ao executar as ordens advindas de cima (no caso, o Estado – sistema de avaliação, “escolha” de livro didático, preenchimento de fichas, sistema de presença/ausência, notas, aquele que “domina” a sala com silêncio e dá exemplo de comportamento “exemplar” com seus alunos, transformando-os em agentes passivos que não pensam, enfim, robôs que respiram e só obedecem), aquele que solta a guilhotina, enforca, mutila, dociliza corpos e mentes “selvagens” – de certa forma, pacifica comunidades à força (como a polícia!). Mas, será que todos os docentes têm essa consciência acerca de seus atos? Dormem tranquilos com isso? Será mesmo que, de fato, o que importa é apenas a (péssima) condição de trabalho e o salário indigno? Longe de querer ser missionária da educação (até porque não tenho vocação para Madre Teresa de Calcutá!), claro que as condições de trabalho, o salário, o reconhecimento acerca da importância do profissional da educação, tudo isso conta (e muito) para estimular melhorias e reflexões. Todavia, apenas colocar as questões sob esse prisma não resolve a questão e, enquanto nada é feito de fato (apenas medidas paliativas ou aparentes, com intuito de votos, aumento da dominação e da hegemonia), a situação só se agrava e a minha preocupação é, mais do que com a instrução (que pode ser adquirida, inclusive, de formas diversas, em outros locais e relações), com o desenvolvimento humano e social dos sujeitos. Denunciar, refletir sobre, falar acerca da questão é um começo de despertar da consciência. Primeiro passo a ser dado. Ações são criadas para determinar necessidades, limites, desejos etc no outro (no caso, os alunos), com tons e matizes de democracia, entoações de “melhoria” e “crescimento” (muitas vezes, envolvendo questões econômicas e políticas que se dizem sociais por meio de projetos que aparentam auxílios “vantajosos”, como possibilidades de mobilidade, intercâmbios, programas de aperfeiçoamento e avanço profissional, bolsas dos mais variados tipos etc), todos controlados, de acordo com o poder da sociedade manipuladora e detentora do poder. Quando se coloca lente de aumento em diversas dessas “oportunidades” (assim chamadas), verifica-se grandes emboscadas. Isso tudo leva a pensar que o sistema de ensino dissemina opressão e até, de certa forma, deseducação – de um certo ponto de vista, claro. Muitas vezes, não devido apenas ao educador (o “carrasco”, essa “peça” sistêmica), mas pelas condições de trabalho que são impostas de maneira opressora a ele (tente fazer diferente e diferença e verá o quanto o sistema todo pesa sobre você!). Conteúdos programáticos alijados de sentido são depositados em todos (docentes e discentes) com a finalidade da domesticação. Conteúdos, muitas vezes, transmitidos como “decoreba” sem sentido, impostas, hospedam-se nas consciências para tornar os sujeitos mais dóceis e a manipulação de uma dada “cultura” e de um registro de língua impostas e valoradas como “corretas” e “melhores”, camufladas em forma de falsa “ad-miração” do mundo para manter o status quo, com vistas à trans-formação ou manutenção do sistema, calcado na constituição de um ser enfraquecido de ideais e ideias, com baixa autoestima, que, muitas vezes, nega suas origens e, com isso, sua voz (e vez) – caso de camadas sociais mais baixas, negritude, indígenas, mulheres, homossexuais etc. A hegemonia impera contra a variedade, ainda que o “multi” determine a ordem do dia nos discursos aparentes. Reflexões são feitas e propostas. Mudanças, também. Livros são escritos e teorias brotam até nos terrenos mais áridos. Contudo, as reflexões permanecem no campo das ideias ou até no papel; livros são lidos e recomendados como ótima leitura a ser digerida; e teorias são admiráveis e fazem todo o sentido. Mas, pergunto: e aí, em eu isso tudo ajuda a mexer com as estruturas sistêmicas e a mudar a situação caótica em que nos encontramos? Não vejo muitas coisas sendo feitas. Continuamos acomodados, controlados, buscando por mudanças e resultados sem sair do lugar. Que pena! Continuamos seguindo as ordens, sem cessar, sem questionar, clivados pelo poder.

  • Ordem, sem cessar

    Mirian Valéria Gomes Sabeh Luciane de Paula Durante todo esse tempo em sala de aula, em escola pública, venho refletindo sobre a educação, sobre os métodos, sobre o meu sujeito-aluno, enfim, o que se faz necessário em todos esses aspectos na vida não apenas desse sujeito, mas também na de todos os envolvido no processo educacional – e isso significa: a sociedade toda. Todos os dias, sem cessar, ao final do expediente, é inevitável a presença dos questionamentos em minha mente, sobre os sujeitos envolvido mais diretamente no processo institucional escolar, ou seja, o educador e o estudante. Este, mais especificamente, visto, muitas vezes e por muitos (inclusive, por muitos que se dizem educadores), como aquele que engole (ou deve) tudo o que lhe é imposto, quer seja de maneira passiva quer não (e se protestar pelo que julga não ser benéfico, é mal visto, punido etc). Acredito, pelos diálogos, pela escuta ativa à sua voz, pela observação de seu comportamento e pelo interesse demonstrado, que não queira mesmo que o processo continue como tem sido realizado. Mas, apesar de visível o seu descontentamento, nada tem sido modificado, ainda que teorias e métodos surjam como “milagres” “salvadores” do caos da educação, não apenas no Brasil, mas de maneira mundial. Isso angustia e fico me perguntando o motivo, qual a solução, o meu papel nisso tudo como educadora questionadora e criteriosa que tento ser. Perfilados em suas salas, presos em suas carteiras, sem conversa, os alunos são moldados, a gosto do poder que emana de uma sociedade hierárquica e hegemônica, robotizada e reprodutora, como reflete e refrata o clipe da canção “Another brick in the wall”, da banda Pink Floyd, que demonstra a opressão sistêmica do que alguns teimam em chamar de “educação escolar”. A canção quase soa como um slogan atemporal que muito lembra Ramonet: Os colonizadores e seus opressores sabem que a relação de domínio não está fundada apenas na supremacia da força. Passado o tempo da conquista, soa a hora do controle dos espíritos. E é tanto mais fácil dominar, quando o domínio permanece inconsciente. Daí a importância da persuasão clandestina e da propaganda secreta, pois, a longo prazo, para todo império que deseja durar, a grande aposta consiste em domesticar as almas, torná-las dóceis e depois subjuga-las. (2002, p.21) A fala de Ramonet, que vai ao encontro das reflexões de Foucault sobre as estratégias da microfísica do poder e vigiar e punir, faz-me pensar ainda mais na escola como estrutura de poder e no papel do professor. Este – e isso me horroriza – metaforizado como o carrasco, aquele que age em nome do poder, o que dá a sua “cara a tapa” ao executar as ordens advindas de cima (no caso, o Estado – sistema de avaliação, “escolha” de livro didático, preenchimento de fichas, sistema de presença/ausência, notas, aquele que “domina” a sala com silêncio e dá exemplo de comportamento “exemplar” com seus alunos, transformando-os em agentes passivos que não pensam, enfim, robôs que respiram e só obedecem), aquele que solta a guilhotina, enforca, mutila, dociliza corpos e mentes “selvagens” – de certa forma, pacifica comunidades à força (como a polícia!). Mas, será que todos os docentes têm essa consciência acerca de seus atos? Dormem tranquilos com isso? Será mesmo que, de fato, o que importa é apenas a (péssima) condição de trabalho e o salário indigno? Longe de querer ser missionária da educação (até porque não tenho vocação para Madre Teresa de Calcutá!), claro que as condições de trabalho, o salário, o reconhecimento acerca da importância do profissional da educação, tudo isso conta (e muito) para estimular melhorias e reflexões. Todavia, apenas colocar as questões sob esse prisma não resolve a questão e, enquanto nada é feito de fato (apenas medidas paliativas ou aparentes, com intuito de votos, aumento da dominação e da hegemonia), a situação só se agrava e a minha preocupação é, mais do que com a instrução (que pode ser adquirida, inclusive, de formas diversas, em outros locais e relações), com o desenvolvimento humano e social dos sujeitos. Denunciar, refletir sobre, falar acerca da questão é um começo de despertar da consciência. Primeiro passo a ser dado. Ações são criadas para determinar necessidades, limites, desejos etc no outro (no caso, os alunos), com tons e matizes de democracia, entoações de “melhoria” e “crescimento” (muitas vezes, envolvendo questões econômicas e políticas que se dizem sociais por meio de projetos que aparentam auxílios “vantajosos”, como possibilidades de mobilidade, intercâmbios, programas de aperfeiçoamento e avanço profissional, bolsas dos mais variados tipos etc), todos controlados, de acordo com o poder da sociedade manipuladora e detentora do poder. Quando se coloca lente de aumento em diversas dessas “oportunidades” (assim chamadas), verifica-se grandes emboscadas. Isso tudo leva a pensar que o sistema de ensino dissemina opressão e até, de certa forma, deseducação – de um certo ponto de vista, claro. Muitas vezes, não devido apenas ao educador (o “carrasco”, essa “peça” sistêmica), mas pelas condições de trabalho que são impostas de maneira opressora a ele (tente fazer diferente e diferença e verá o quanto o sistema todo pesa sobre você!). Conteúdos programáticos alijados de sentido são depositados em todos (docentes e discentes) com a finalidade da domesticação. Conteúdos, muitas vezes, transmitidos como “decoreba” sem sentido, impostas, hospedam-se nas consciências para tornar os sujeitos mais dóceis e a manipulação de uma dada “cultura” e de um registro de língua impostas e valoradas como “corretas” e “melhores”, camufladas em forma de falsa “ad-miração” do mundo para manter o status quo, com vistas à trans-formação ou manutenção do sistema, calcado na constituição de um ser enfraquecido de ideais e ideias, com baixa autoestima, que, muitas vezes, nega suas origens e, com isso, sua voz (e vez) – caso de camadas sociais mais baixas, negritude, indígenas, mulheres, homossexuais etc. A hegemonia impera contra a variedade, ainda que o “multi” determine a ordem do dia nos discursos aparentes. Reflexões são feitas e propostas. Mudanças, também. Livros são escritos e teorias brotam até nos terrenos mais áridos. Contudo, as reflexões permanecem no campo das ideias ou até no papel; livros são lidos e recomendados como ótima leitura a ser digerida; e teorias são admiráveis e fazem todo o sentido. Mas, pergunto: e aí, em eu isso tudo ajuda a mexer com as estruturas sistêmicas e a mudar a situação caótica em que nos encontramos? Não vejo muitas coisas sendo feitas. Continuamos acomodados, controlados, buscando por mudanças e resultados sem sair do lugar. Que pena! Continuamos seguindo as ordens, sem cessar, sem questionar, clivados pelo poder.

  • Reverberações de uma não-adolescente: o machismo latente no século XXI

    Luciane de Paula Hoje, trago à tona uma reflexão tempo-espacialmente descontextualizada, mas nem tanto. Descrevo uma vivência do “dia da mulher” deste ano, mas que se repete e faz sentido em qualquer dia, por isso, ainda em ebulição em mim. Potencializou-se naquela data. Tal vivência me foi tão expressiva que ainda ecoa e reverbera, prenhe de respostas. Por isso, a vontade de externalizá-la e compartilhá-la com todos. O tema, é claro, é o machismo nosso de cada dia, exacerbado no dia que deveria fazer com que reflexões e tomadas de consciência se manifestassem em atos e constituíssem histórias diferentes, mas que, como não somos ingênuos, sabemos, não é o que ocorre. Espero que ao menos ao trazer o tema à tona, possamos pensar e conversar sobre ele. Há muito tempo eu não saia sozinha. No dia internacional da mulher deste ano, depois de algumas mensagens e algumas flores, alguns sustos e algumas brigas, a mulher aqui resolveu jantar fora num restaurante italiano que eu adoro. Assim, do nada, sem reservas, como sou. Iniciou-se uma jornada surpreendente ao que deveria ser apenas um jantar agradável antes de uma cirurgia que se aproximava. Ao chegar ao restaurante, para a minha surpresa (mas nem tanto), senti-me um “E.T.”. Isso mesmo. Fui alvo da atenção de todos. A simples presença de uma mulher sozinha num restaurante num sábado à noite de “comemoração” à mulher causou estranhamento. Nos outros. Em mim, o estranhamento se deu pelo estranhamento expresso e gerado sem sentido. A maioria presente era composta por casais aparentemente apaixonados e algumas poucas famílias que ali se reuniam. Mais parecia um dia dos namorados (sem copa do mundo) do que dia da mulher. Sem nem pensar numa possibilidade remota do que vivenciei, causei constrangimentos e agitações. A princípio, isso se materializou nos olhares, burburinhos e nos atos dos garçons, que não sabiam como lidar com a situação de me receber, acomodar em uma mesa e perguntar qual o meu pedido. Sem alvoroço, perguntei se havia uma mesa disponível para mim. “Só uma pessoa?”, foi a pergunta. Sim e em mim, como em Fernando Pessoa, já habitava uma multidão! Um dos garçons se apressou em me oferecer uma rosa e me parabenizar pelo “seu (meu) dia”. Outro, mais “safo”, cuidou de me direcionar a uma sala “reservada”, provavelmente para que a “lunática” aqui não mais incomodasse a tradição familiar e não causasse indigestões. Fiquei, já, desde o primeiro contato, inevitavelmente, perguntando-me o que significava esse tal dia e o que os estudos bakhtinianos tinham a ver com aquilo tudo. Só vinha à minha mente as palavras-chaves ética, responsabilidade, não-álibi do sujeito, constituição do eu-outro…e, especificamente com relação a esta, eu, definitivamente, não era composta pela imagem daqueles outros que não-queriam, mas, sim, me compunham. Outros estranhos. Melhor, eu estranha a eles. Exotópica, deslocada. Eu, mulher sozinha, solteira, hetero e emocionalmente bem resolvida com alguns de meus tantos fantasmas, não era o eu-para-o-outro que ali se encontrava. Também não queria que eles fossem os outros-para-mim, mas, nisso, não temos escolha. Apenas fiquei pensando, em frações de segundos, como a revolução feminista ainda faz sentido e o quanto as mulheres ainda precisam caminhar. Sentei-me na tal sala “reservada” e disse que não conhecia aquele ambiente, já que conheço e aprecio a casa. A resposta imediata que recebi foi: “Ah, quase não usamos esse ambiente, mas acho que você vai se sentir mais à vontade nele”. Eu esbocei um sorriso, pensei em responder, mas resolvi pedir o menu e escolher o prato. Pensassem o que quisessem, a sala era bonita e, naquele momento, exclusiva, como era conveniente ao senso comum. Este, sim, incomodado comigo. Eu, na minha, feliz e louca para saborear a gôndola de espinafre com queijo brie que tanto gosto, sem querer, mas adorando, estava demonstrando uma grande lição a todos os bossa-novas da vida, carnavalizando com minha presença feminina, independente e feliz. Fui pegar os antepastos e quando estava me deliciando com a entrada, toda à vontade entre queijos, pães e sardelas, o senhor que toca acordeom não se conteve: adentrou a sala, tocou uma canção de Vinícius para mim e, inconformado, veio até a mesa e me perguntou: “Você está sozinha hoje? Por que? Coitadinha! Quer que eu toque alguma música específica pra você?”. Eu ri muito. Olhei para ele e disse que todos somos sozinhos e acompanhados dos outros que nos cercam, como dele, naquele momento. Mesmo que não tivesse vindo falar comigo e emitir sua opinião e sentimento de dó. Disse que precisamos aprender o que é nosso e o que é do outro, de fora e que, acima de tudo, somos quem somos, sem olhares, julgamentos de desconhecidos e, mesmo com eles, podemos nos auto afirmar. Disse que ele estava equivocado ao pensar que eu estava triste ou que havia levado um fora e, por isso, estava sozinha. Não era o caso. Eu gosto da minha independência e preciso de momentos comigo mesma, meus eus-outros de mim. Além disso, só mulheres muito mulheres têm coragem de enfrentar a hipocrisia social e anunciar ao mundo que são quem (e não o que) são sem precisar de um homem ou aparentes companhias como muletas para existirem. Nossas existências são vida e morte processuais e ininterruptas. Conjuntas e isoladas. Não há como fugir. E penso ser preciso enfrentar de peito aberto essa torrente de vida e morte que nos toma para se resolver, tentando trazer à consciência os atos da vida. Arrematei, docemente, dizendo que ele precisava rever os seus conceitos, bem como qual a significação de 08 de março. Como ele estava muito sem graça, eu disse que queria uma música, sim. Italiana. Comemorativa. A mim. Às mulheres. Às feministas. Ele tocou “Volare” e saiu. Ninguém mais entrou na sala, a não ser para servir-me o prato pedido (que, por sinal, estava dos deuses), o cappuccino e a conta (felizes porque o estorvo aqui, finalmente, iria sair do recinto e a ordem “natural” das coisas iria ser reestabelecida). Fiquei cá com meus botões pensando: quantos daqueles casais não estavam ali de corpo presente, mas completamente solitários (com seus outros internos), distantes emocional e mentalmente? Por que uma mulher sozinha não pode estar bem e incomoda tanto? Se fosse um homem, será que as reações seriam as mesmas? Com certeza, não. Quando é que vamos conseguir avançar e quebrar com totens e tabus machistas tão arraigados? Que atos serão ainda necessários para sermos re-conhecidos como seres humanos, como iguais com suas peculiaridades e semelhanças? Em pleno século XXI, a sensação que tive é que muitos sutiãs ainda precisam ser queimados! E há quem, até hoje, não entenda (ou não queira compreender) a importância do papel de Simone de Beauvoir, Chiquinha Gonzaga, entre outras tantas que nos abriram caminhos até para que, agora, eu, aqui, possa trazer essa discussão à baila! Nada contra casais ou famílias. Nada contra celebrarmos o dia 8 de março, tendo-o como marco de uma história muito mal contada: a história das mulheres, escondida na vida privada, na cozinha e na alcova, junto a escravos negros, a homossexuais e tantos outros excluídos, chamados de marginais, invisíveis, como tentaram me fazer ficar na sala “reservada” de um restaurante na referida data, em pleno século XXI! Tudo contra o preconceito machista de que “é impossível ser feliz sozinho” (não foi à toa que o sanfoneiro veio tocar Vinícius como introdução a uma conversa com tom de piedade. Ele, com certeza, ainda se sentiu gentil e lisonjeiro por se dirigir a mim. Vejamos como são os pontos de vista…). Seja como for, em casal, em família ou sozinha, o que importa é o respeito ainda inexistente e hipócrita, que devemos exigir pra além dos cumprimentos e posts nas redes sociais! Até parece que o relato reflexivo acima se referiu a um evento cotidiano de preconceito atemporal naturalizado (nada natural). A minha indignação não é, como canta Skank, “uma mosca sem asas” que “não ultrapassa as janelas de nossas casas”. Temos de falar sobre isso. Temos de gritar e não nos “acostumar” com esse tipo de re-ação. A sensação continuará sendo essa se nada fizermos a respeito. E o machismo impregnado em todos só se fortalece se continuarmos agindo como se os fatos banais fossem nada. Incorporado em nós. Mudar não depende apenas de mim, mas também dos outros todos que constituem a sociedade, os sujeitos (interna e externamente), sejam eles de que gênero for, na relação real, vida vivida a cada dia, na pequena que se transforma em grande temporalidade! Em tempo de redes sociais: “#ficaadica”! #alteridade #bakhtin #machismo #sujeito

  • Reverberações de uma não-adolescente: o machismo latente no século XXI

    Luciane de Paula Hoje, trago à tona uma reflexão tempo-espacialmente descontextualizada, mas nem tanto. Descrevo uma vivência do “dia da mulher” deste ano, mas que se repete e faz sentido em qualquer dia, por isso, ainda em ebulição em mim. Potencializou-se naquela data. Tal vivência me foi tão expressiva que ainda ecoa e reverbera, prenhe de respostas. Por isso, a vontade de externalizá-la e compartilhá-la com todos. O tema, é claro, é o machismo nosso de cada dia, exacerbado no dia que deveria fazer com que reflexões e tomadas de consciência se manifestassem em atos e constituíssem histórias diferentes, mas que, como não somos ingênuos, sabemos, não é o que ocorre. Espero que ao menos ao trazer o tema à tona, possamos pensar e conversar sobre ele. Há muito tempo eu não saia sozinha. No dia internacional da mulher deste ano, depois de algumas mensagens e algumas flores, alguns sustos e algumas brigas, a mulher aqui resolveu jantar fora num restaurante italiano que eu adoro. Assim, do nada, sem reservas, como sou. Iniciou-se uma jornada surpreendente ao que deveria ser apenas um jantar agradável antes de uma cirurgia que se aproximava. Ao chegar ao restaurante, para a minha surpresa (mas nem tanto), senti-me um “E.T.”. Isso mesmo. Fui alvo da atenção de todos. A simples presença de uma mulher sozinha num restaurante num sábado à noite de “comemoração” à mulher causou estranhamento. Nos outros. Em mim, o estranhamento se deu pelo estranhamento expresso e gerado sem sentido. A maioria presente era composta por casais aparentemente apaixonados e algumas poucas famílias que ali se reuniam. Mais parecia um dia dos namorados (sem copa do mundo) do que dia da mulher. Sem nem pensar numa possibilidade remota do que vivenciei, causei constrangimentos e agitações. A princípio, isso se materializou nos olhares, burburinhos e nos atos dos garçons, que não sabiam como lidar com a situação de me receber, acomodar em uma mesa e perguntar qual o meu pedido. Sem alvoroço, perguntei se havia uma mesa disponível para mim. “Só uma pessoa?”, foi a pergunta. Sim e em mim, como em Fernando Pessoa, já habitava uma multidão! Um dos garçons se apressou em me oferecer uma rosa e me parabenizar pelo “seu (meu) dia”. Outro, mais “safo”, cuidou de me direcionar a uma sala “reservada”, provavelmente para que a “lunática” aqui não mais incomodasse a tradição familiar e não causasse indigestões. Fiquei, já, desde o primeiro contato, inevitavelmente, perguntando-me o que significava esse tal dia e o que os estudos bakhtinianos tinham a ver com aquilo tudo. Só vinha à minha mente as palavras-chaves ética, responsabilidade, não-álibi do sujeito, constituição do eu-outro…e, especificamente com relação a esta, eu, definitivamente, não era composta pela imagem daqueles outros que não-queriam, mas, sim, me compunham. Outros estranhos. Melhor, eu estranha a eles. Exotópica, deslocada. Eu, mulher sozinha, solteira, hetero e emocionalmente bem resolvida com alguns de meus tantos fantasmas, não era o eu-para-o-outro que ali se encontrava. Também não queria que eles fossem os outros-para-mim, mas, nisso, não temos escolha. Apenas fiquei pensando, em frações de segundos, como a revolução feminista ainda faz sentido e o quanto as mulheres ainda precisam caminhar. Sentei-me na tal sala “reservada” e disse que não conhecia aquele ambiente, já que conheço e aprecio a casa. A resposta imediata que recebi foi: “Ah, quase não usamos esse ambiente, mas acho que você vai se sentir mais à vontade nele”. Eu esbocei um sorriso, pensei em responder, mas resolvi pedir o menu e escolher o prato. Pensassem o que quisessem, a sala era bonita e, naquele momento, exclusiva, como era conveniente ao senso comum. Este, sim, incomodado comigo. Eu, na minha, feliz e louca para saborear a gôndola de espinafre com queijo brie que tanto gosto, sem querer, mas adorando, estava demonstrando uma grande lição a todos os bossa-novas da vida, carnavalizando com minha presença feminina, independente e feliz. Fui pegar os antepastos e quando estava me deliciando com a entrada, toda à vontade entre queijos, pães e sardelas, o senhor que toca acordeom não se conteve: adentrou a sala, tocou uma canção de Vinícius para mim e, inconformado, veio até a mesa e me perguntou: “Você está sozinha hoje? Por que? Coitadinha! Quer que eu toque alguma música específica pra você?”. Eu ri muito. Olhei para ele e disse que todos somos sozinhos e acompanhados dos outros que nos cercam, como dele, naquele momento. Mesmo que não tivesse vindo falar comigo e emitir sua opinião e sentimento de dó. Disse que precisamos aprender o que é nosso e o que é do outro, de fora e que, acima de tudo, somos quem somos, sem olhares, julgamentos de desconhecidos e, mesmo com eles, podemos nos auto afirmar. Disse que ele estava equivocado ao pensar que eu estava triste ou que havia levado um fora e, por isso, estava sozinha. Não era o caso. Eu gosto da minha independência e preciso de momentos comigo mesma, meus eus-outros de mim. Além disso, só mulheres muito mulheres têm coragem de enfrentar a hipocrisia social e anunciar ao mundo que são quem (e não o que) são sem precisar de um homem ou aparentes companhias como muletas para existirem. Nossas existências são vida e morte processuais e ininterruptas. Conjuntas e isoladas. Não há como fugir. E penso ser preciso enfrentar de peito aberto essa torrente de vida e morte que nos toma para se resolver, tentando trazer à consciência os atos da vida. Arrematei, docemente, dizendo que ele precisava rever os seus conceitos, bem como qual a significação de 08 de março. Como ele estava muito sem graça, eu disse que queria uma música, sim. Italiana. Comemorativa. A mim. Às mulheres. Às feministas. Ele tocou “Volare” e saiu. Ninguém mais entrou na sala, a não ser para servir-me o prato pedido (que, por sinal, estava dos deuses), o cappuccino e a conta (felizes porque o estorvo aqui, finalmente, iria sair do recinto e a ordem “natural” das coisas iria ser reestabelecida). Fiquei cá com meus botões pensando: quantos daqueles casais não estavam ali de corpo presente, mas completamente solitários (com seus outros internos), distantes emocional e mentalmente? Por que uma mulher sozinha não pode estar bem e incomoda tanto? Se fosse um homem, será que as reações seriam as mesmas? Com certeza, não. Quando é que vamos conseguir avançar e quebrar com totens e tabus machistas tão arraigados? Que atos serão ainda necessários para sermos re-conhecidos como seres humanos, como iguais com suas peculiaridades e semelhanças? Em pleno século XXI, a sensação que tive é que muitos sutiãs ainda precisam ser queimados! E há quem, até hoje, não entenda (ou não queira compreender) a importância do papel de Simone de Beauvoir, Chiquinha Gonzaga, entre outras tantas que nos abriram caminhos até para que, agora, eu, aqui, possa trazer essa discussão à baila! Nada contra casais ou famílias. Nada contra celebrarmos o dia 8 de março, tendo-o como marco de uma história muito mal contada: a história das mulheres, escondida na vida privada, na cozinha e na alcova, junto a escravos negros, a homossexuais e tantos outros excluídos, chamados de marginais, invisíveis, como tentaram me fazer ficar na sala “reservada” de um restaurante na referida data, em pleno século XXI! Tudo contra o preconceito machista de que “é impossível ser feliz sozinho” (não foi à toa que o sanfoneiro veio tocar Vinícius como introdução a uma conversa com tom de piedade. Ele, com certeza, ainda se sentiu gentil e lisonjeiro por se dirigir a mim. Vejamos como são os pontos de vista…). Seja como for, em casal, em família ou sozinha, o que importa é o respeito ainda inexistente e hipócrita, que devemos exigir pra além dos cumprimentos e posts nas redes sociais! Até parece que o relato reflexivo acima se referiu a um evento cotidiano de preconceito atemporal naturalizado (nada natural). A minha indignação não é, como canta Skank, “uma mosca sem asas” que “não ultrapassa as janelas de nossas casas”. Temos de falar sobre isso. Temos de gritar e não nos “acostumar” com esse tipo de re-ação. A sensação continuará sendo essa se nada fizermos a respeito. E o machismo impregnado em todos só se fortalece se continuarmos agindo como se os fatos banais fossem nada. Incorporado em nós. Mudar não depende apenas de mim, mas também dos outros todos que constituem a sociedade, os sujeitos (interna e externamente), sejam eles de que gênero for, na relação real, vida vivida a cada dia, na pequena que se transforma em grande temporalidade! Em tempo de redes sociais: “#ficaadica”! #alteridade #bakhtin #machismo #sujeito

  • Reflexões sobre o sujeito na pós-modernidade

    Marcela Barchi Paglione Pensar na constituição do sujeito para o Círculo de Bakhtin requer uma discussão sobre sua posição insubstituível e responsável no lugar único da existência, ou seja, que nenhum outro sujeito naquele momento e lugar exatos poderá ocupar o seu lugar na vida, por isso ele se torna responsável por sua posição e seus atos. O seu lugar insubstituível também implica a sua relação com o outro, uma vez que o outro, do seu lugar único, contribui para a formação do eu com sua visão enformante do todo, completando-o. O outro me completa, me vê como um todo, parte do plano pictórico e ético do horizonte da vida. Eis porque, para o Círculo, pensar o eu envolve pensar o outro, numa relação intrínseca e numa via de mão dupla, pois o eu também completa o outro. É pensar que não há eu sem outro, da mesma forma que não há outro sem mim, o outro-em-mim e o eu-para-o-outro. Em Estética da Criação Verbal (1979), discute-se com base na relação autor-personagem, a questão estética da posição de fora do outro, o qual, do seu lugar, tudo de mim vê, tem o chamado “excedente de visão estética” e, portanto, pode me dar acabamento. No entanto, mais do que uma questão estética, o que está em pauta é uma filosofia ética da alteridade como princípio do sujeito responsável no evento da existência. Para o Círculo, o sujeito é situado sócio histórico culturalmente, em uma dada sociedade e espaço tempo nos quais estarão presentes os valores sociais que adentram as relações entre os sujeitos e a própria condição de ser/estar ativamente no mundo. Há uma grande diferença na concepção do sujeito ou dos valores de individualidade e alteridade se pensarmos esta filosofia na época pós-moderna ou contemporânea (não adentraremos aqui nas divergências sobre este termo). Alguns pensadores chegam mesmo a afirmar uma inversão de valores na sociedade. Um tema em voga no assunto da condição do sujeito pós-moderno é a perda da noção de valores na sociedade, o sujeito à deriva, o que causa uma angústia. Penso ser um tempo de crítica aos valores inscritos, aos tradicionalismos nos quais os sujeitos, em suas relações, refletem e refratam a ideologia, trazendo à tona valores para os refutar e assim construí-los novamente. O que importa para nós, nesta discussão é a maneira como a relação eu-outro, na atualidade, é aparentemente enfraquecida em favorecimento de uma cultura narcísica, na qual a figura do eu prevalece sobre a do outro. Ao pensarmos nas representações discursivas da vida privada, podemos ver que a categoria de sujeito que pode ser definida em três partes, o eu-para-mim (a visão que tenho sobre mim), eu-para-o-outro (a visão e enformamento do outro sobre mim) e o outro-para-mim (a visão que eu tenho do outro) é modificada ou até alterada. O eu-para-mim é cada vez mais um eu-para-o-outro, eu mostrado ao outro, conforme o desejo de adoração. A visão que o outro, ou os outros, se pensarmos em toda a sociedade, tem de mim é a que me define enquanto sujeito social. Há uma supervalorização do sujeito egocêntrico em detrimento aparente da alteridade. Seria a figura do outro em desfavorecimento na sociedade em relação à do eu? Penso que esta categoria do ser está engendrada na relação com o eu mais do que nunca, mas não em favorecimento de uma sociedade pautada no respeito pelo próximo, fundamentada na alteridade como princípio, o que seria próprio da sociedade civilizada, segundo Birman (2012). O outro entra, mais do que nunca, a meu ver, como valorador social do eu, o qual necessita de seu amparo, ou feedback, para compor a imagem de si, a qual teria assumido a posição mais importante na composição do eu na contemporaneidade. De acordo com o autor, saímos de uma cultura intimista e reflexiva, pautada na razão, que seria típica da modernidade, para uma cultura da expansão do eu, performativa (daí o sentido de espetáculo de Debord) na pós-modernidade. É possível que esta seja uma visão psicológica um tanto quanto pessimista do sujeito contemporâneo para Birman que trago para discussão, relacionando-a ao conceito de sujeito para o Círculo, e certamente que este não é o único aspecto da categoria do sujeito na nossa era, mas podemos pensar nesse, que sempre é situado sócio histórico e culturalmente, como fruto de uma sociedade que visa a autoafirmação, sendo para  isto o outro como uma ferramenta, o que é plenamente visível em redes sociais de grande alcance (nas quais vemos inclusive pessoas que trocam “curtidas” em suas fotos, somente para aumento do número, e com isso, do seu prestígio). No plano da linguagem, esta é a época em que surge o signo selfie, criado como identificação de fotos em primeira pessoa as quais são associadas a sites de compartilhamento. Sabemos que não é ao acaso. Ainda segundo Birman, o sujeito contemporâneo está tomado por um novo mal-estar, condizente com a atualidade, no qual há o culto do corpo e da saúde e compulsão por compras e toxicômanos como maneiras de escape pela ação, pois não cabe mais a ele suportar o excesso. Seria a selfie uma forma de compulsão como escape, junto ao culto do corpo e à imagem de si frente ao outro? Ao situarmos os sujeitos em seu local único no existir-evento, percebemos que estes estão em permanente (re)construção a partir das relações sócio históricas e pessoais de que participam e estas refletem e refratam a ideologia do “desconcerto”, do chamado “mal-estar” da contemporaneidade. As instituições, segundo Bauman (2001), estão liquefeitas na pós-modernidade, trazendo dificuldades ao sujeito de estabelecer um pertencimento. A identidade se torna fluida na Rede, na qual as relações entre os sujeitos tornam-se leves e o próprio conceito de amigo entra em choque (como as novas formas de amizade comentadas por Bauman e disponíveis neste link). Assim, as categorias do eu e do outro, no que tange sua interação, tornam-se instáveis pois estão inscritas em uma sociedade culturalmente instável, em que os valores e instituições entram em questionamento. É neste ambiente em que o eu se torna dependente da aceitação do outro, para sua autoafirmação enquanto sujeito, ou melhor, na construção de sua identidade, e isto se deve ao fato de os seus valores estarem em desequilíbrio. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAUMAN, Z. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

  • Reflexões sobre o sujeito na pós-modernidade

    Marcela Barchi Paglione Pensar na constituição do sujeito para o Círculo de Bakhtin requer uma discussão sobre sua posição insubstituível e responsável no lugar único da existência, ou seja, que nenhum outro sujeito naquele momento e lugar exatos poderá ocupar o seu lugar na vida, por isso ele se torna responsável por sua posição e seus atos. O seu lugar insubstituível também implica a sua relação com o outro, uma vez que o outro, do seu lugar único, contribui para a formação do eu com sua visão enformante do todo, completando-o. O outro me completa, me vê como um todo, parte do plano pictórico e ético do horizonte da vida. Eis porque, para o Círculo, pensar o eu envolve pensar o outro, numa relação intrínseca e numa via de mão dupla, pois o eu também completa o outro. É pensar que não há eu sem outro, da mesma forma que não há outro sem mim, o outro-em-mim e o eu-para-o-outro. Em Estética da Criação Verbal (1979), discute-se com base na relação autor-personagem, a questão estética da posição de fora do outro, o qual, do seu lugar, tudo de mim vê, tem o chamado “excedente de visão estética” e, portanto, pode me dar acabamento. No entanto, mais do que uma questão estética, o que está em pauta é uma filosofia ética da alteridade como princípio do sujeito responsável no evento da existência. Para o Círculo, o sujeito é situado sócio histórico culturalmente, em uma dada sociedade e espaço tempo nos quais estarão presentes os valores sociais que adentram as relações entre os sujeitos e a própria condição de ser/estar ativamente no mundo. Há uma grande diferença na concepção do sujeito ou dos valores de individualidade e alteridade se pensarmos esta filosofia na época pós-moderna ou contemporânea (não adentraremos aqui nas divergências sobre este termo). Alguns pensadores chegam mesmo a afirmar uma inversão de valores na sociedade. Um tema em voga no assunto da condição do sujeito pós-moderno é a perda da noção de valores na sociedade, o sujeito à deriva, o que causa uma angústia. Penso ser um tempo de crítica aos valores inscritos, aos tradicionalismos nos quais os sujeitos, em suas relações, refletem e refratam a ideologia, trazendo à tona valores para os refutar e assim construí-los novamente. O que importa para nós, nesta discussão é a maneira como a relação eu-outro, na atualidade, é aparentemente enfraquecida em favorecimento de uma cultura narcísica, na qual a figura do eu prevalece sobre a do outro. Ao pensarmos nas representações discursivas da vida privada, podemos ver que a categoria de sujeito que pode ser definida em três partes, o eu-para-mim (a visão que tenho sobre mim), eu-para-o-outro (a visão e enformamento do outro sobre mim) e o outro-para-mim (a visão que eu tenho do outro) é modificada ou até alterada. O eu-para-mim é cada vez mais um eu-para-o-outro, eu mostrado ao outro, conforme o desejo de adoração. A visão que o outro, ou os outros, se pensarmos em toda a sociedade, tem de mim é a que me define enquanto sujeito social. Há uma supervalorização do sujeito egocêntrico em detrimento aparente da alteridade. Seria a figura do outro em desfavorecimento na sociedade em relação à do eu? Penso que esta categoria do ser está engendrada na relação com o eu mais do que nunca, mas não em favorecimento de uma sociedade pautada no respeito pelo próximo, fundamentada na alteridade como princípio, o que seria próprio da sociedade civilizada, segundo Birman (2012). O outro entra, mais do que nunca, a meu ver, como valorador social do eu, o qual necessita de seu amparo, ou feedback, para compor a imagem de si, a qual teria assumido a posição mais importante na composição do eu na contemporaneidade. De acordo com o autor, saímos de uma cultura intimista e reflexiva, pautada na razão, que seria típica da modernidade, para uma cultura da expansão do eu, performativa (daí o sentido de espetáculo de Debord) na pós-modernidade. É possível que esta seja uma visão psicológica um tanto quanto pessimista do sujeito contemporâneo para Birman que trago para discussão, relacionando-a ao conceito de sujeito para o Círculo, e certamente que este não é o único aspecto da categoria do sujeito na nossa era, mas podemos pensar nesse, que sempre é situado sócio histórico e culturalmente, como fruto de uma sociedade que visa a autoafirmação, sendo para  isto o outro como uma ferramenta, o que é plenamente visível em redes sociais de grande alcance (nas quais vemos inclusive pessoas que trocam “curtidas” em suas fotos, somente para aumento do número, e com isso, do seu prestígio). No plano da linguagem, esta é a época em que surge o signo selfie, criado como identificação de fotos em primeira pessoa as quais são associadas a sites de compartilhamento. Sabemos que não é ao acaso. Ainda segundo Birman, o sujeito contemporâneo está tomado por um novo mal-estar, condizente com a atualidade, no qual há o culto do corpo e da saúde e compulsão por compras e toxicômanos como maneiras de escape pela ação, pois não cabe mais a ele suportar o excesso. Seria a selfie uma forma de compulsão como escape, junto ao culto do corpo e à imagem de si frente ao outro? Ao situarmos os sujeitos em seu local único no existir-evento, percebemos que estes estão em permanente (re)construção a partir das relações sócio históricas e pessoais de que participam e estas refletem e refratam a ideologia do “desconcerto”, do chamado “mal-estar” da contemporaneidade. As instituições, segundo Bauman (2001), estão liquefeitas na pós-modernidade, trazendo dificuldades ao sujeito de estabelecer um pertencimento. A identidade se torna fluida na Rede, na qual as relações entre os sujeitos tornam-se leves e o próprio conceito de amigo entra em choque (como as novas formas de amizade comentadas por Bauman e disponíveis neste link). Assim, as categorias do eu e do outro, no que tange sua interação, tornam-se instáveis pois estão inscritas em uma sociedade culturalmente instável, em que os valores e instituições entram em questionamento. É neste ambiente em que o eu se torna dependente da aceitação do outro, para sua autoafirmação enquanto sujeito, ou melhor, na construção de sua identidade, e isto se deve ao fato de os seus valores estarem em desequilíbrio. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAUMAN, Z. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

  • Dialogismo, intertextualidade e um possível caminho…[1]

    José Radamés Benevides de Melo[2] A conceituação e as discussões que envolvem dialogismo, polifonia e intertextualidade foram e ainda são de extrema importância para aqueles que ingressam nos estudos da linguagem, que fazem pesquisa nesse âmbito, para os que ensinam, enfim, para os que a tem no âmago de suas preocupações. Hoje, esses princípios constitutivos de (inter)textos/(inter)discursos são concebidos de maneira muito diversa da que foram em outros momentos de sua própria história no vínculo com a recepção, na Europa Ocidental e na América, da obra de Bakhtin e do Círculo[3]. Assim, o que ora apresentamos é uma breve análise de um texto publicado ainda na década de 1970, num dos primeiros momentos de fomento desses princípios. Época em que grandes nomes do estruturalismo e do, então, chamado pós-estruturalismo, especialmente no campo das letras – Barthes, Blanchot, Butor, Kristeva, Todorov –, dedicavam-se a pensar o texto de modo distinto da reflexão estruturalista. Por isso, não se espante o leitor se se deparar com uma conceituação e um tratamento de dialogismo e intertextualidade muito diferente do atual, especificamente, no âmbito dos estudos linguístico-discursivos aqui no Brasil. Nessa breve e panorâmica análise, ficamos circunscritos aos “limites do texto” em questão, e não foi nosso intuito relacionar o tratamento (epistemológico e teórico) que esses conceitos receberam na década de 1970 com o que recebem hoje. Importante deixar isso claro, já que o desenvolvimento dos estudos bakhtinianos tem nos mostrado as divergências, equívocos, aproximações mal feitas, enfim, problemas na recepção da obra do Círculo; o que é apontado, por exemplo, em Ponzio (2010a), Fiorin (2008a), Clark e Holquist (1998), Morson e Emerson (2008) e Bezerra (2010). Somente a título de exemplo do caráter polêmico e complexo do debate a que nos referimos, vejamos o que dizem Bezerra (2010) e Ponzio (2010) a esse respeito: o primeiro (2010, p. XXI), no prefácio à edição brasileira de Problemas da poética de Dostoiévski, livro do qual é também o tradutor, assinala que, em entrevista, […] Kristeva afirma (p. 114) que fez de Bakhtin um “interlocutor da moderna teoria dos anos sessenta e setenta (leia-se estruturalismo e psicanálise!), e que a linguística estrutural e a psicanálise “foram o fundamento profundo do pensamento bakhtiniano” (p. 116). Acontece, porém, que Bakhtin é contra o estruturalismo por considerar que seu método de análise, centrado nas “categorias mecanicistas de ‘oposição’ e alternância de códigos”, despreza a especificidade do discurso literário, o que redunda no “fechamento do texto… Quanto a mim, em tudo eu ouço vozes e relações dialógicas entre elas… No estruturalismo, existe apenas um sujeito: o próprio pesquisador. As coisas se transformam em conceitos… o sujeito nunca pode tornar-se conceito (ele mesmo fala e responde)” [em nota: M. Bakhtin. Estética da criação verbal, p. 409-410]. Quanto à psicanálise, Bakhtin dela se distingue porque, ao longo de toda a sua obra, sempre enfatiza como essencial a questão da consciência. “A consciência é muito mais terrível que quaisquer complexos inconscientes.” [em nota: Ibid., p. 343] Já Ponzio (2010, p. 316) afirma que Todorov (1981), embora intitule sua monografia sobre Bakhtin Il principio dialogico (Le principe dialogique), prefere não usar o termo “dialogismo”, central, como reconhece, em Bakhtin, e o substitui, para explicar o que Bakhtin entende por isso, por intertextualidade, termo introduzido por Julia Kristeva (1970; 1977a) na sua apresentação de Bakhtin. Ele reserva o termo “dialógico” “a determinados casos de intertextualidade, como a troca de turnos entre interlocutores, ou à concepção da personalidade humana elaborada por Bakhtin” (Todorov 1981, p. 85). Tendo isso em vista, dirigimo-nos ao texto de Perrone-Moisés (1979). Em setembro de 1976, foi lançado, na França, o número 27 da revista Poétique: Revue de théorie et d’analyse littéraires, cuja tradução para a língua portuguesa foi publicada em 1979, em Portugal, pela Almedina, sob o título de Intertextualidades Poétique nº 27. Essa revista reúne ensaios de grandes pesquisadores do estruturalismo e do pós-estruturalismo. A edição se dedica ao tema intertextualidade. Os trabalhos publicados na edição de número 27 da Poétique foram tão expressivos, que têm sido referência para os estudos da área da linguagem, ainda hoje, nos seus vários campos de pesquisa[4]. Este texto que ora apresentamos responde a algumas questões levantadas a partir da leitura de um desses ensaios: A intertextualidade crítica, de Leyla Perrone-Moisés. As perguntas são as seguintes: que critérios são usados por Perrone-Moisés para defender sua hipótese, segundo a qual a intertextualidade crítica não se confunde com a intertextualidade poética? Em que teorias estão fundamentados esses critérios? Como os critérios são usados por Perrone-Moisés para estabelecer a diferença entre intertextualidade crítica e intertextualidade poética e para demonstrar a existência da intertextualidade crítica? Parte-se da hipótese de que Perrone-Moisés usa três critérios: primeiro, o do inacabamento, de Bakhtin e partilhado por Butor, Barthes e Blanchot; segundo, o critério do dialogismo e intertextualidade, de Bakhtin e Kristeva, respectivamente; e terceiro, o critério da economia, que envolve as categorias de propriedade, apropriação, limites, declaração, leis, regras, contribuição. Tendo isso em vista, na abordagem do ensaio A intertextualidade crítica, nossos objetivos são os seguintes: primeiro, apresentar a fundamentação teórica usada por Leyla Perrone-Moisés para distinguir intertextualidade crítica de intertextualidade poética. Segundo, identificar os critérios usados pela ensaísta para fazer a distinção entre intertextualidade crítica de intertextualidade poética. Terceiro, explicar a maneira como os critérios são manipulados para a comprovação de sua hipótese. A partir disso, definimos o objetivo geral que nos move: apontar um caminho de perscrutação das relações entre intertextualidade e dialogismo ao longo da história de seus usos e a concepção em que são tomados no ensaio de Perrone-Moisés e como o são atualmente, principalmente no âmbito dos estudos linguístico-discursivos. Esperamos, com esta reflexão, instigar o debate e, assim, colaborar com seu desenvolvimento. 1. O ensaio de Perrone-Moisés, sua fundamentação e seus critérios O ensaio, A intertextualidade crítica, aparece dividido em quatro tópicos: As fronteiras do texto, Metalinguagem e intertextualidade, A obra inacabada e Intertextos críticos. No primeiro tópico, Perrone-Moisés (1979) estabelece a diferença entre a intertextualidade crítica e a intertextualidade poética, trabalhando com as oposições de declaração x apropriação x propriedade, o trabalho da crítica e o trabalho do poeta, além de fronteira discursiva x fronteira textual. Um dos pontos mais relevantes é a discussão que a autora faz sobre as fronteiras discursiva e textual, porque se não se considerar a fronteira entre a obra poética e a obra crítica, esta última colocará em prática o mesmo tipo de intertextualidade que a obra poética. Em outras palavras, uma intertextualidade soberana e tácita, em vez de um dialogismo declarado e submisso como o da crítica tradicional. Como exemplo, Perrone-Moisés apresenta Butor, Blanchot e Barthes como três possibilidades de produtores de intertextos críticos, já que as fronteiras genéricas e textuais aparecem atenuadas em suas obras. Mas, para chegar à atenuação das fronteiras entre intertextualidade crítica e poética, […] é preciso trabalhar pela abolição de duas espécies de fronteiras para que haja a verdadeira intertextualidade a qual se situa por agora no domínio da utopia: a fronteira discursiva (ou genérica) e a fronteira textual. A primeira serve para separar dois tipos de discursos, no nosso caso o poético e o crítico; a segunda diz respeito a áreas de propriedade, isto é, a diferentes extensões de obras cuja integralidade é protegida pelos nomes dos autores. (PERRONE-MIOSÉS, 1979, p. 214) A partir disso, podemos afirmar que o discurso é livre, pois “os tipos de discurso”, crítico ou poético, são produzidos por grupos sociais; já o texto é uma concretização individual, subjetiva, particular de alguém que materializa esse discurso. Portanto, se um teórico ou crítico literário utiliza um texto de Drummond ou de Machado de Assis, esse crítico se sente na obrigação de citar a fonte, porque o texto pertence a outrem. Daí vem o critério da economia usado por Perrone-Moisés e que envolve noções de propriedade, apropriação, de direitos e deveres do crítico e do autor do texto. Entretanto, os discursos que estão em Drummond, Machado ou Jorge Amado – ou que por eles se materializam, embora a eles não pertençam – são discursos que estão alheios, estão livres e que, por isso, não têm fronteiras ou, se as tem, as possui em menor quantidade ou numa intensidade menor. Assim, podem ser empregados indistintamente por qualquer usuário falante. Então, aqui estão as duas fronteiras e disso a autora conclui o seguinte: A fronteira discursiva é abstrata, o seu percurso é traçado pelo código dos géneros; a fronteira textual toca no problema bem concreto dos direitos do autor. Em ambos os casos há uma relação de propriedade: servir para, como atributo – fronteira discursiva ou genérica; ser propriedade de, como pertença – fronteira textual. (PERRONE-MOISÉS, 1979, p. 214) Isso prepara a malha retórica e argumentativa para a introdução de um novo tópico: Metalinguagem e intertextualidade. Nele, a ensaísta estabelece as diferenças entre metalinguagem e intertextualidade. Ela trabalha com três oposições básicas: intertextualidade e metalinguagem x intertextualidade e escrita, apropriação x englobamento, intertextualidade x discurso sobreposto. Perrone-Moisés (1979, p. 214), fundamentada em Bakhtin (1970) e Kristeva (1971), considera que a “verdadeira intertextualidade só será possível quando tiverem caído os dois muros […] [a quebra das fronteiras de gênero e de texto], e isso implica a queda de muros mais vastos do que os da literatura […] [a extinção ou a atenuação da idéia de propriedade privada].” Então, se a crítica for considerada metalinguagem, a fronteira discursiva é preservada porque o discurso metalinguístico consiste numa escrita da escrita, numa escrita que escreve sobre si mesma, não se constitui num discurso sobre o mundo, mas num discurso acerca de outro discurso, o que gera a noção de discurso sobreposto a outro. Por isso, “O crítico que faz metalinguagem não re-escreve Pascal ou outro, sobrepõe o seu discurso à transparência, ao do autor tutelar, respeitando assim a hierarquia discursiva.” (p. 215). Se ela for considerada, todavia, como escrita, essa fronteira discursiva será apagada, uma vez que “Só há intertextualidade, no sentido forte do termo, quando essas fronteiras são abolidas pela força conquistadora da escrita” (p. 216). Isso é o que acontece com Butor, Blanchot e Barthes, segundo Perrone-Moisés (1979). Por isso, o texto crítico, ou metalinguístico, não é intertextual no “sentido forte do termo”. Ele não engloba, absorve e transforma outros textos. O que ele faz é um diálogo com um ou vários textos fazendo um outro, paralelo; ou seja, montando um para-texto. Desse modo, a intertextualidade da crítica é uma intertextualidade declarada e, a rigor, não é isso que defendem Bakhtin e Kristeva sobre a intertextualidade [isso, em 1979 e segundo Leyla Perrone-Moisés]. Assim, “Só uma crítica que fosse uma escrita permitiria o aparecimento dum discurso verdadeiramente intertextual.” (p. 217). No terceiro tópico, a obra inacabada, ela trabalha com a condição primeira e maior da intertextualidade: o inacabamento das obras. Perrone-Moisés apresenta concepções de Butor, Barthes e Blanchot sobre tal aspecto e as diferenças e aproximações entre os três autores. Para Butor, a obra inacabada se refere à necessidade que nós temos de uma invenção, como se o crítico quisesse e conseguisse prolongar a invenção de um autor literário. Na verdade, para o crítico fazer um intertexto crítico, ele precisa considerar a obra inacabada porque, se ele considerar a obra acabada, não haverá intertexto crítico, uma vez que ele vai usar o texto literário como uma matriz, como principal, um texto primeiro; e o dele, como um secundário. Ele vai pegar o texto literário e, nas margens desse texto, nas margens da literatura, nas bordas da literatura, vai escrever a sua crítica literária. É isso que ele vai fazer quando ele não considera a obra acabada. Depois da concepção de Butor, Perrone-Moisés apresenta a concepção de Barthes. Ela diz que há uma semelhança entre Butor e Barthes porque este fala de uma circularidade das linguagens, mas a diferença é que Butor tem uma visão monumental da literatura enquanto Barthes, não. Em vez de querer conduzir progressivamente a história, como Butor, Barthes dissemina os fragmentos. Então, com isso, apaga as marcas dos autores, os rastros deixados. Por isso, ela conclui que no texto barthesiano há uma hierarquia desorientada, ao contrário da crítica tradicional, orientada por um norte, por um texto principal, o texto literário, conforme Butor. Depois de apresentar as concepções de Butor e de Barthes, ela apresenta as noções de Blanchot. Para ele, segundo Perrone-Moisés (1979), “a obra literária nem é acabada e nem é inacabada; ela simplesmente é”. O que isso quer dizer? Aparentemente, a postura de Blanchot é diferente, ou melhor, oposta à atitude de Butor e à de Barthes. Ela busca explicações para aproximar as três concepções. Assim, a diferença entre Butor e Barthes é que aquele pretende prolongar a história ou a poesia, e Barthes, não. Este dissemina, espalha e, nesse momento de distribuição, ele apaga as marcas dos próprios autores das obras. Por isso, a idéia da propriedade privada ou do texto como pertencente a alguém não aparece no intertexto crítico, já que as fronteiras entre os gêneros e a metalinguagem, bem como entre a escrita e os textos vão sendo atenuadas ou desfeitas. Blanchot segue um outro caminho, “a obra é aberta na direção do regresso, da morte e do silêncio”. O que isso significa? Conforme Blanchot, a obra é inacabada porque ela é puxada, aspirada pelo silêncio. Essa obra aspirada pelo silêncio significa que ela tem sua voz anulada, já que o discurso crítico vai re-escrevê-la e, nesse re-escrever, ele vai ocultar a obra, por ser uma re-escritura. Por isso, “Se examinarmos as citações de diferentes autores, reunidas por Blanchot nas suas páginas críticas, verificamos que elas se encadeiam como se viessem duma fonte única, como se se tratasse de fragmentos dum único discurso: o do próprio Blanchot.” (p. 221). Então, Blanchot apaga a fonte, constrói uma crítica completamente intertextual porque, unindo fragmentos de vários outros discursos e textos, constrói um novo texto: a malha textual crítica de Blanchot. “Dir-se-ia”, desse modo, “que todos os escritores só pré-plagiaram Blanchot.” (p. 222). 2. O emprego dos critérios O objetivo do ensaio de Perrone-Moisés é saber em que medida um novo modelo artístico, o romance polifônico, abala a crítica, o que faz dela e o que ela faz dele. A partir disso, a autora tem o objetivo de responder às seguintes questões: (1) em que medida o dialogismo crítico difere (ou pode diferir) do dialogismo poético? (2) quais serão as diferenças entre a intertextualidade crítica e a intertextualidade poética? (3) poderá haver uma verdadeira intertextualidade para esse discurso que é a crítica? Os critérios usados por Perrone-Moisés para responder suas questões são três: (1) intertextual ou dialógico, fundamentado por Julia Kristeva e Mikhail Bakhtin; (2) econômico ou da economia, galgado nas leis de declaração e de apropriação que regem a esfera econômica; (3) inacabamento, referenciado por Bakhtin, Barthes, Butor e Blanchot. Dirigindo-se à primeira questão, Leyla chega à conclusão de que o dialogismo crítico só difere do dialogismo poético quando aquele é tradicional, porque a crítica moderna, pós-estruturalista, a crítica feita por Roland Barthes, Butor e Blanchot são críticas intertextuais, já que esses teóricos não sobrepõem um texto ao outro. Então, para Perrone-Moisés, conforme Julia Kristeva, a intertextualidade é um trabalho de absorção e de transformação de textos em outro texto, novo. Ela parte da hipótese de que a crítica tradicional não pode exercer um trabalho de absorção e transformação de um texto ou vários em outro texto; por isso, a rigor, essa crítica tradicional não é intertextual, já que só é intertextual, no “sentido forte do termo”, o texto que transforma e absorve outros textos num só. Ao voltar o olhar para a segunda questão, ela conclui que a intertextualidade poética é aquela que coloca o texto de outrem, usa outros textos, cita textos alheios, sem demarcar seus limites, ou seja, sem informar as fontes, o nome dos autores etc.; ou se o faz, faz de maneira mais discreta. Por isso, as fronteiras discursivas e textuais são quase extintas. A primeira evidência é que a intertextualidade crítica é declarada, ou seja, submetida a uma lei, enquanto que a intertextualidade poética pode ser tácita – e a maior parte das vezes o é. O crítico declara, confessa que escreve sobre uma ou várias obras, o nome do autor-tutor e o nome da obra-assunto. Nesse momento, Perrone-Moisés lança mão do critério da economia. Assim, a declaração pressupõe e implica uma submissão; Perrone-Moisés (1979) coloca o crítico como um submisso: enquanto a estrutura do discurso poético engloba a dos textos estranhos que abriga, a estrutura do discurso crítico tradicional, pelo contrário, é englobada pelo texto indutor (literário), que a modela e a situa em posição de filiação e de prolongamento. Essas injunções apresentam uma certa semelhança com as leis de declaração e de apropriação que regem a esfera da economia. Essas leis decorrem do contrato social que implica deveres. Quando o crítico literário se propõe a fazer uma obra, um artigo ou um ensaio sobre um outro discurso, ele tem de seguir leis e regras que são os deveres de identificação e de direitos de propriedade que decorrem de um contrato social. Dessa forma, a declaração de um crítico seria mais ou menos como a declaração de um contribuinte: a identidade, a residência e a profissão. Isso acontece porque o crítico é alguém que entra em propriedade alheia e dela usufrui durante algum tempo, o que pressupõe respeito por certas regras. O texto literário é colocado como uma propriedade alheia e da qual ele vai usufruir. Por isso, o crítico tem de seguir algumas regras, sendo a mais elementar das regras o reconhecimento dos limites da propriedade. Logo, ele tem de reconhecer os limites da propriedade, o limite dos direitos do proprietário e o limite dos deveres do não-proprietário (no caso, o crítico). Já o autor (escritor, literato, poeta, romancista) não precisa fazer isso, ele pode citar os discursos alheios sem citar as fontes porque ele está no seu campo. Isso é possível porque ele é tratado de igual para igual, as relações entre os escritores de literatura são de igualdade. O critério do inacabamento não se dissocia do critério intertextual porque a intertextualidade pressupõe a concepção de obra inacabada. É necessário que o crítico a conceba como inacabada. Por isso, Perrone-Moisés coloca o inacabamento como um critério fundamental para a intertextualidade crítica, uma vez que os textos literários não servirão como parâmetro ou suporte da análise, mas, ao contrário, serão absorvidos e transformados num amálgama textual singular e novo porque não prontos, não acabados, porque abertos. (In)acabando Assim, Leyla Perrone-Moisés se vale dos discursos de Bakhtin e Kristeva para definir intertextualidade crítica (critério intertextual ou dialógico) e para diferenciá-la de intertextualidade poética. Usa ainda o discurso da economia numa referência à propriedade, à delimitação, à apropriação, às regras de mercado (ao manipular o critério da esfera econômica); além de apresentar o crítico tradicional como aquele que usufrui o texto literário, mas respeitando regras e limites: citando declaradamente quem é o autor, quem é o dono do texto, até aonde o texto vai etc. Ela aproxima as concepções de Butor, Barthes e Blanchot, que colocam, cada qual a seu modo, com interesses distintos e em epistemes diferentes, o inacabamento como condição sine qua non para o estabelecimento da intertextualidade. Se, em 1976 – ano da publicação do número 27 da Poétique, revista em que foi publicado o texto de Perrone-Moisés –, a discussão que envolvia intertextualidade e dialogismo era travada também como a lemos no ensaio A intertextualidade crítica, durante os 38 anos seguintes, intertextualidade e dialogismo passaram e continuam passando por muitas reflexões e refrações, ganhando outros matizes, outros acentos, carregando-se de outros valores. Hoje, pelo menos no contexto brasileiro, seria difícil pensar dialogismo fora desse meio plurivocal e pluriestilístico que é o Círculo de Bakhtin, sem pensar nas produções de Medvedev e Volochínov, que engrossam o caldo dessa conversa e dela são parte constitutiva. A partir disso, poderíamos apontar alguns dados que nos ajudariam a pensar a questão do dialogismo e da intertextualidade no movimento da história de sua recepção nos continentes europeu e americano. Se, em algum momento, intertextualidade e dialogismo se confundiram, e esse não é o caso de Perrone-Moisés, hoje, sabemos que são fenômenos distintos. De lá até aqui, contudo, há um longo caminho trilhado por estudiosos e pesquisadores que contribuíram para a divulgação do pensamento de Bakhtin e do Círculo. Muitos inéditos de Bakhtin foram publicados (CLARK; HOLQUIST, 1998), como os constantes da coletânea Estética da criação verbal (com textos fundamentais para pensarmos o dialogismo), editada por Bocharov e publicada em 1979, três anos depois da publicação de Poétique na França. Além dessa obra, em 1986 (PONZIO, 2010b), vem a público o texto inacabado Para uma filosofia do ato responsável, um dos primeiros escritos bakhtinianos. Essas duas informações e a consideração do contexto em que Perrone-Moisés escreve seu texto seriam o bastante para nos apontar um percurso de investigação que problematizasse as relações entre intertextualidade e dialogismo ao longo da história de seus usos e a concepção em que são tomados no ensaio de Perrone-Moisés e como o são atualmente, o que deverá levar em conta, pelo menos, a história da recepção da obra do Círculo no Ocidente. Essa discussão fica, entretanto, para uma próxima oportunidade. REFERÊNCIAS BEZERRA, P. Prefácio: uma obra à prova do tempo. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. (Coleção Perspectiva) FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008a. FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008b. KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1998. MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: EdUSP, 2008. PERRONE-MOISÉS, L. A intertextualidade crítica. Tradução de Clara Crabbé Rocha. In: JENNY, L. et al. Intertextualidades – Poétique nº27. Coimbra: Almedina, 1979. PONZIO, A. O pensamento dialógico de Bakhtin e do seu Círculo como inclassificável. Tradução de Adail Sobral. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010a. (Série Bakhtin: Inclassificável; v. 1). PONZIO, A. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010b. [1] Uma primeira versão deste texto foi escrita em 2007 – sob o título de Os critérios dialógico, econômico e do inacabamento em A intertextualidade crítica, de Leyla Perrone-Moisés – como requisito de avaliação da disciplina História da literatura e história da leitura, ministrada pela professora Patrícia Pina no Curso de Especialização em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa da UESC, Ilhéus, Bahia. Agradeço a leitura e as sugestões para a revisão deste texto a Luciane de Paula. [2] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara. [3] Só a título de sugestão, leia-se Interdiscursividade e intertextualidade, de Fiorin (2008b). [4] A exemplo do ensaio de Laurent Jenny (1979), A estratégia da forma, usado por Koch (1998) para fundamentar a discussão sobre intertextualidade em sentido amplo e em sentido restrito.

  • Dialogismo, intertextualidade e um possível caminho…[1]

    José Radamés Benevides de Melo[2] A conceituação e as discussões que envolvem dialogismo, polifonia e intertextualidade foram e ainda são de extrema importância para aqueles que ingressam nos estudos da linguagem, que fazem pesquisa nesse âmbito, para os que ensinam, enfim, para os que a tem no âmago de suas preocupações. Hoje, esses princípios constitutivos de (inter)textos/(inter)discursos são concebidos de maneira muito diversa da que foram em outros momentos de sua própria história no vínculo com a recepção, na Europa Ocidental e na América, da obra de Bakhtin e do Círculo[3]. Assim, o que ora apresentamos é uma breve análise de um texto publicado ainda na década de 1970, num dos primeiros momentos de fomento desses princípios. Época em que grandes nomes do estruturalismo e do, então, chamado pós-estruturalismo, especialmente no campo das letras – Barthes, Blanchot, Butor, Kristeva, Todorov –, dedicavam-se a pensar o texto de modo distinto da reflexão estruturalista. Por isso, não se espante o leitor se se deparar com uma conceituação e um tratamento de dialogismo e intertextualidade muito diferente do atual, especificamente, no âmbito dos estudos linguístico-discursivos aqui no Brasil. Nessa breve e panorâmica análise, ficamos circunscritos aos “limites do texto” em questão, e não foi nosso intuito relacionar o tratamento (epistemológico e teórico) que esses conceitos receberam na década de 1970 com o que recebem hoje. Importante deixar isso claro, já que o desenvolvimento dos estudos bakhtinianos tem nos mostrado as divergências, equívocos, aproximações mal feitas, enfim, problemas na recepção da obra do Círculo; o que é apontado, por exemplo, em Ponzio (2010a), Fiorin (2008a), Clark e Holquist (1998), Morson e Emerson (2008) e Bezerra (2010). Somente a título de exemplo do caráter polêmico e complexo do debate a que nos referimos, vejamos o que dizem Bezerra (2010) e Ponzio (2010) a esse respeito: o primeiro (2010, p. XXI), no prefácio à edição brasileira de Problemas da poética de Dostoiévski, livro do qual é também o tradutor, assinala que, em entrevista, […] Kristeva afirma (p. 114) que fez de Bakhtin um “interlocutor da moderna teoria dos anos sessenta e setenta (leia-se estruturalismo e psicanálise!), e que a linguística estrutural e a psicanálise “foram o fundamento profundo do pensamento bakhtiniano” (p. 116). Acontece, porém, que Bakhtin é contra o estruturalismo por considerar que seu método de análise, centrado nas “categorias mecanicistas de ‘oposição’ e alternância de códigos”, despreza a especificidade do discurso literário, o que redunda no “fechamento do texto… Quanto a mim, em tudo eu ouço vozes e relações dialógicas entre elas… No estruturalismo, existe apenas um sujeito: o próprio pesquisador. As coisas se transformam em conceitos… o sujeito nunca pode tornar-se conceito (ele mesmo fala e responde)” [em nota: M. Bakhtin. Estética da criação verbal, p. 409-410]. Quanto à psicanálise, Bakhtin dela se distingue porque, ao longo de toda a sua obra, sempre enfatiza como essencial a questão da consciência. “A consciência é muito mais terrível que quaisquer complexos inconscientes.” [em nota: Ibid., p. 343] Já Ponzio (2010, p. 316) afirma que Todorov (1981), embora intitule sua monografia sobre Bakhtin Il principio dialogico (Le principe dialogique), prefere não usar o termo “dialogismo”, central, como reconhece, em Bakhtin, e o substitui, para explicar o que Bakhtin entende por isso, por intertextualidade, termo introduzido por Julia Kristeva (1970; 1977a) na sua apresentação de Bakhtin. Ele reserva o termo “dialógico” “a determinados casos de intertextualidade, como a troca de turnos entre interlocutores, ou à concepção da personalidade humana elaborada por Bakhtin” (Todorov 1981, p. 85). Tendo isso em vista, dirigimo-nos ao texto de Perrone-Moisés (1979). Em setembro de 1976, foi lançado, na França, o número 27 da revista Poétique: Revue de théorie et d’analyse littéraires, cuja tradução para a língua portuguesa foi publicada em 1979, em Portugal, pela Almedina, sob o título de Intertextualidades Poétique nº 27. Essa revista reúne ensaios de grandes pesquisadores do estruturalismo e do pós-estruturalismo. A edição se dedica ao tema intertextualidade. Os trabalhos publicados na edição de número 27 da Poétique foram tão expressivos, que têm sido referência para os estudos da área da linguagem, ainda hoje, nos seus vários campos de pesquisa[4]. Este texto que ora apresentamos responde a algumas questões levantadas a partir da leitura de um desses ensaios: A intertextualidade crítica, de Leyla Perrone-Moisés. As perguntas são as seguintes: que critérios são usados por Perrone-Moisés para defender sua hipótese, segundo a qual a intertextualidade crítica não se confunde com a intertextualidade poética? Em que teorias estão fundamentados esses critérios? Como os critérios são usados por Perrone-Moisés para estabelecer a diferença entre intertextualidade crítica e intertextualidade poética e para demonstrar a existência da intertextualidade crítica? Parte-se da hipótese de que Perrone-Moisés usa três critérios: primeiro, o do inacabamento, de Bakhtin e partilhado por Butor, Barthes e Blanchot; segundo, o critério do dialogismo e intertextualidade, de Bakhtin e Kristeva, respectivamente; e terceiro, o critério da economia, que envolve as categorias de propriedade, apropriação, limites, declaração, leis, regras, contribuição. Tendo isso em vista, na abordagem do ensaio A intertextualidade crítica, nossos objetivos são os seguintes: primeiro, apresentar a fundamentação teórica usada por Leyla Perrone-Moisés para distinguir intertextualidade crítica de intertextualidade poética. Segundo, identificar os critérios usados pela ensaísta para fazer a distinção entre intertextualidade crítica de intertextualidade poética. Terceiro, explicar a maneira como os critérios são manipulados para a comprovação de sua hipótese. A partir disso, definimos o objetivo geral que nos move: apontar um caminho de perscrutação das relações entre intertextualidade e dialogismo ao longo da história de seus usos e a concepção em que são tomados no ensaio de Perrone-Moisés e como o são atualmente, principalmente no âmbito dos estudos linguístico-discursivos. Esperamos, com esta reflexão, instigar o debate e, assim, colaborar com seu desenvolvimento. 1. O ensaio de Perrone-Moisés, sua fundamentação e seus critérios O ensaio, A intertextualidade crítica, aparece dividido em quatro tópicos: As fronteiras do texto, Metalinguagem e intertextualidade, A obra inacabada e Intertextos críticos. No primeiro tópico, Perrone-Moisés (1979) estabelece a diferença entre a intertextualidade crítica e a intertextualidade poética, trabalhando com as oposições de declaração x apropriação x propriedade, o trabalho da crítica e o trabalho do poeta, além de fronteira discursiva x fronteira textual. Um dos pontos mais relevantes é a discussão que a autora faz sobre as fronteiras discursiva e textual, porque se não se considerar a fronteira entre a obra poética e a obra crítica, esta última colocará em prática o mesmo tipo de intertextualidade que a obra poética. Em outras palavras, uma intertextualidade soberana e tácita, em vez de um dialogismo declarado e submisso como o da crítica tradicional. Como exemplo, Perrone-Moisés apresenta Butor, Blanchot e Barthes como três possibilidades de produtores de intertextos críticos, já que as fronteiras genéricas e textuais aparecem atenuadas em suas obras. Mas, para chegar à atenuação das fronteiras entre intertextualidade crítica e poética, […] é preciso trabalhar pela abolição de duas espécies de fronteiras para que haja a verdadeira intertextualidade a qual se situa por agora no domínio da utopia: a fronteira discursiva (ou genérica) e a fronteira textual. A primeira serve para separar dois tipos de discursos, no nosso caso o poético e o crítico; a segunda diz respeito a áreas de propriedade, isto é, a diferentes extensões de obras cuja integralidade é protegida pelos nomes dos autores. (PERRONE-MIOSÉS, 1979, p. 214) A partir disso, podemos afirmar que o discurso é livre, pois “os tipos de discurso”, crítico ou poético, são produzidos por grupos sociais; já o texto é uma concretização individual, subjetiva, particular de alguém que materializa esse discurso. Portanto, se um teórico ou crítico literário utiliza um texto de Drummond ou de Machado de Assis, esse crítico se sente na obrigação de citar a fonte, porque o texto pertence a outrem. Daí vem o critério da economia usado por Perrone-Moisés e que envolve noções de propriedade, apropriação, de direitos e deveres do crítico e do autor do texto. Entretanto, os discursos que estão em Drummond, Machado ou Jorge Amado – ou que por eles se materializam, embora a eles não pertençam – são discursos que estão alheios, estão livres e que, por isso, não têm fronteiras ou, se as tem, as possui em menor quantidade ou numa intensidade menor. Assim, podem ser empregados indistintamente por qualquer usuário falante. Então, aqui estão as duas fronteiras e disso a autora conclui o seguinte: A fronteira discursiva é abstrata, o seu percurso é traçado pelo código dos géneros; a fronteira textual toca no problema bem concreto dos direitos do autor. Em ambos os casos há uma relação de propriedade: servir para, como atributo – fronteira discursiva ou genérica; ser propriedade de, como pertença – fronteira textual. (PERRONE-MOISÉS, 1979, p. 214) Isso prepara a malha retórica e argumentativa para a introdução de um novo tópico: Metalinguagem e intertextualidade. Nele, a ensaísta estabelece as diferenças entre metalinguagem e intertextualidade. Ela trabalha com três oposições básicas: intertextualidade e metalinguagem x intertextualidade e escrita, apropriação x englobamento, intertextualidade x discurso sobreposto. Perrone-Moisés (1979, p. 214), fundamentada em Bakhtin (1970) e Kristeva (1971), considera que a “verdadeira intertextualidade só será possível quando tiverem caído os dois muros […] [a quebra das fronteiras de gênero e de texto], e isso implica a queda de muros mais vastos do que os da literatura […] [a extinção ou a atenuação da idéia de propriedade privada].” Então, se a crítica for considerada metalinguagem, a fronteira discursiva é preservada porque o discurso metalinguístico consiste numa escrita da escrita, numa escrita que escreve sobre si mesma, não se constitui num discurso sobre o mundo, mas num discurso acerca de outro discurso, o que gera a noção de discurso sobreposto a outro. Por isso, “O crítico que faz metalinguagem não re-escreve Pascal ou outro, sobrepõe o seu discurso à transparência, ao do autor tutelar, respeitando assim a hierarquia discursiva.” (p. 215). Se ela for considerada, todavia, como escrita, essa fronteira discursiva será apagada, uma vez que “Só há intertextualidade, no sentido forte do termo, quando essas fronteiras são abolidas pela força conquistadora da escrita” (p. 216). Isso é o que acontece com Butor, Blanchot e Barthes, segundo Perrone-Moisés (1979). Por isso, o texto crítico, ou metalinguístico, não é intertextual no “sentido forte do termo”. Ele não engloba, absorve e transforma outros textos. O que ele faz é um diálogo com um ou vários textos fazendo um outro, paralelo; ou seja, montando um para-texto. Desse modo, a intertextualidade da crítica é uma intertextualidade declarada e, a rigor, não é isso que defendem Bakhtin e Kristeva sobre a intertextualidade [isso, em 1979 e segundo Leyla Perrone-Moisés]. Assim, “Só uma crítica que fosse uma escrita permitiria o aparecimento dum discurso verdadeiramente intertextual.” (p. 217). No terceiro tópico, a obra inacabada, ela trabalha com a condição primeira e maior da intertextualidade: o inacabamento das obras. Perrone-Moisés apresenta concepções de Butor, Barthes e Blanchot sobre tal aspecto e as diferenças e aproximações entre os três autores. Para Butor, a obra inacabada se refere à necessidade que nós temos de uma invenção, como se o crítico quisesse e conseguisse prolongar a invenção de um autor literário. Na verdade, para o crítico fazer um intertexto crítico, ele precisa considerar a obra inacabada porque, se ele considerar a obra acabada, não haverá intertexto crítico, uma vez que ele vai usar o texto literário como uma matriz, como principal, um texto primeiro; e o dele, como um secundário. Ele vai pegar o texto literário e, nas margens desse texto, nas margens da literatura, nas bordas da literatura, vai escrever a sua crítica literária. É isso que ele vai fazer quando ele não considera a obra acabada. Depois da concepção de Butor, Perrone-Moisés apresenta a concepção de Barthes. Ela diz que há uma semelhança entre Butor e Barthes porque este fala de uma circularidade das linguagens, mas a diferença é que Butor tem uma visão monumental da literatura enquanto Barthes, não. Em vez de querer conduzir progressivamente a história, como Butor, Barthes dissemina os fragmentos. Então, com isso, apaga as marcas dos autores, os rastros deixados. Por isso, ela conclui que no texto barthesiano há uma hierarquia desorientada, ao contrário da crítica tradicional, orientada por um norte, por um texto principal, o texto literário, conforme Butor. Depois de apresentar as concepções de Butor e de Barthes, ela apresenta as noções de Blanchot. Para ele, segundo Perrone-Moisés (1979), “a obra literária nem é acabada e nem é inacabada; ela simplesmente é”. O que isso quer dizer? Aparentemente, a postura de Blanchot é diferente, ou melhor, oposta à atitude de Butor e à de Barthes. Ela busca explicações para aproximar as três concepções. Assim, a diferença entre Butor e Barthes é que aquele pretende prolongar a história ou a poesia, e Barthes, não. Este dissemina, espalha e, nesse momento de distribuição, ele apaga as marcas dos próprios autores das obras. Por isso, a idéia da propriedade privada ou do texto como pertencente a alguém não aparece no intertexto crítico, já que as fronteiras entre os gêneros e a metalinguagem, bem como entre a escrita e os textos vão sendo atenuadas ou desfeitas. Blanchot segue um outro caminho, “a obra é aberta na direção do regresso, da morte e do silêncio”. O que isso significa? Conforme Blanchot, a obra é inacabada porque ela é puxada, aspirada pelo silêncio. Essa obra aspirada pelo silêncio significa que ela tem sua voz anulada, já que o discurso crítico vai re-escrevê-la e, nesse re-escrever, ele vai ocultar a obra, por ser uma re-escritura. Por isso, “Se examinarmos as citações de diferentes autores, reunidas por Blanchot nas suas páginas críticas, verificamos que elas se encadeiam como se viessem duma fonte única, como se se tratasse de fragmentos dum único discurso: o do próprio Blanchot.” (p. 221). Então, Blanchot apaga a fonte, constrói uma crítica completamente intertextual porque, unindo fragmentos de vários outros discursos e textos, constrói um novo texto: a malha textual crítica de Blanchot. “Dir-se-ia”, desse modo, “que todos os escritores só pré-plagiaram Blanchot.” (p. 222). 2. O emprego dos critérios O objetivo do ensaio de Perrone-Moisés é saber em que medida um novo modelo artístico, o romance polifônico, abala a crítica, o que faz dela e o que ela faz dele. A partir disso, a autora tem o objetivo de responder às seguintes questões: (1) em que medida o dialogismo crítico difere (ou pode diferir) do dialogismo poético? (2) quais serão as diferenças entre a intertextualidade crítica e a intertextualidade poética? (3) poderá haver uma verdadeira intertextualidade para esse discurso que é a crítica? Os critérios usados por Perrone-Moisés para responder suas questões são três: (1) intertextual ou dialógico, fundamentado por Julia Kristeva e Mikhail Bakhtin; (2) econômico ou da economia, galgado nas leis de declaração e de apropriação que regem a esfera econômica; (3) inacabamento, referenciado por Bakhtin, Barthes, Butor e Blanchot. Dirigindo-se à primeira questão, Leyla chega à conclusão de que o dialogismo crítico só difere do dialogismo poético quando aquele é tradicional, porque a crítica moderna, pós-estruturalista, a crítica feita por Roland Barthes, Butor e Blanchot são críticas intertextuais, já que esses teóricos não sobrepõem um texto ao outro. Então, para Perrone-Moisés, conforme Julia Kristeva, a intertextualidade é um trabalho de absorção e de transformação de textos em outro texto, novo. Ela parte da hipótese de que a crítica tradicional não pode exercer um trabalho de absorção e transformação de um texto ou vários em outro texto; por isso, a rigor, essa crítica tradicional não é intertextual, já que só é intertextual, no “sentido forte do termo”, o texto que transforma e absorve outros textos num só. Ao voltar o olhar para a segunda questão, ela conclui que a intertextualidade poética é aquela que coloca o texto de outrem, usa outros textos, cita textos alheios, sem demarcar seus limites, ou seja, sem informar as fontes, o nome dos autores etc.; ou se o faz, faz de maneira mais discreta. Por isso, as fronteiras discursivas e textuais são quase extintas. A primeira evidência é que a intertextualidade crítica é declarada, ou seja, submetida a uma lei, enquanto que a intertextualidade poética pode ser tácita – e a maior parte das vezes o é. O crítico declara, confessa que escreve sobre uma ou várias obras, o nome do autor-tutor e o nome da obra-assunto. Nesse momento, Perrone-Moisés lança mão do critério da economia. Assim, a declaração pressupõe e implica uma submissão; Perrone-Moisés (1979) coloca o crítico como um submisso: enquanto a estrutura do discurso poético engloba a dos textos estranhos que abriga, a estrutura do discurso crítico tradicional, pelo contrário, é englobada pelo texto indutor (literário), que a modela e a situa em posição de filiação e de prolongamento. Essas injunções apresentam uma certa semelhança com as leis de declaração e de apropriação que regem a esfera da economia. Essas leis decorrem do contrato social que implica deveres. Quando o crítico literário se propõe a fazer uma obra, um artigo ou um ensaio sobre um outro discurso, ele tem de seguir leis e regras que são os deveres de identificação e de direitos de propriedade que decorrem de um contrato social. Dessa forma, a declaração de um crítico seria mais ou menos como a declaração de um contribuinte: a identidade, a residência e a profissão. Isso acontece porque o crítico é alguém que entra em propriedade alheia e dela usufrui durante algum tempo, o que pressupõe respeito por certas regras. O texto literário é colocado como uma propriedade alheia e da qual ele vai usufruir. Por isso, o crítico tem de seguir algumas regras, sendo a mais elementar das regras o reconhecimento dos limites da propriedade. Logo, ele tem de reconhecer os limites da propriedade, o limite dos direitos do proprietário e o limite dos deveres do não-proprietário (no caso, o crítico). Já o autor (escritor, literato, poeta, romancista) não precisa fazer isso, ele pode citar os discursos alheios sem citar as fontes porque ele está no seu campo. Isso é possível porque ele é tratado de igual para igual, as relações entre os escritores de literatura são de igualdade. O critério do inacabamento não se dissocia do critério intertextual porque a intertextualidade pressupõe a concepção de obra inacabada. É necessário que o crítico a conceba como inacabada. Por isso, Perrone-Moisés coloca o inacabamento como um critério fundamental para a intertextualidade crítica, uma vez que os textos literários não servirão como parâmetro ou suporte da análise, mas, ao contrário, serão absorvidos e transformados num amálgama textual singular e novo porque não prontos, não acabados, porque abertos. (In)acabando Assim, Leyla Perrone-Moisés se vale dos discursos de Bakhtin e Kristeva para definir intertextualidade crítica (critério intertextual ou dialógico) e para diferenciá-la de intertextualidade poética. Usa ainda o discurso da economia numa referência à propriedade, à delimitação, à apropriação, às regras de mercado (ao manipular o critério da esfera econômica); além de apresentar o crítico tradicional como aquele que usufrui o texto literário, mas respeitando regras e limites: citando declaradamente quem é o autor, quem é o dono do texto, até aonde o texto vai etc. Ela aproxima as concepções de Butor, Barthes e Blanchot, que colocam, cada qual a seu modo, com interesses distintos e em epistemes diferentes, o inacabamento como condição sine qua non para o estabelecimento da intertextualidade. Se, em 1976 – ano da publicação do número 27 da Poétique, revista em que foi publicado o texto de Perrone-Moisés –, a discussão que envolvia intertextualidade e dialogismo era travada também como a lemos no ensaio A intertextualidade crítica, durante os 38 anos seguintes, intertextualidade e dialogismo passaram e continuam passando por muitas reflexões e refrações, ganhando outros matizes, outros acentos, carregando-se de outros valores. Hoje, pelo menos no contexto brasileiro, seria difícil pensar dialogismo fora desse meio plurivocal e pluriestilístico que é o Círculo de Bakhtin, sem pensar nas produções de Medvedev e Volochínov, que engrossam o caldo dessa conversa e dela são parte constitutiva. A partir disso, poderíamos apontar alguns dados que nos ajudariam a pensar a questão do dialogismo e da intertextualidade no movimento da história de sua recepção nos continentes europeu e americano. Se, em algum momento, intertextualidade e dialogismo se confundiram, e esse não é o caso de Perrone-Moisés, hoje, sabemos que são fenômenos distintos. De lá até aqui, contudo, há um longo caminho trilhado por estudiosos e pesquisadores que contribuíram para a divulgação do pensamento de Bakhtin e do Círculo. Muitos inéditos de Bakhtin foram publicados (CLARK; HOLQUIST, 1998), como os constantes da coletânea Estética da criação verbal (com textos fundamentais para pensarmos o dialogismo), editada por Bocharov e publicada em 1979, três anos depois da publicação de Poétique na França. Além dessa obra, em 1986 (PONZIO, 2010b), vem a público o texto inacabado Para uma filosofia do ato responsável, um dos primeiros escritos bakhtinianos. Essas duas informações e a consideração do contexto em que Perrone-Moisés escreve seu texto seriam o bastante para nos apontar um percurso de investigação que problematizasse as relações entre intertextualidade e dialogismo ao longo da história de seus usos e a concepção em que são tomados no ensaio de Perrone-Moisés e como o são atualmente, o que deverá levar em conta, pelo menos, a história da recepção da obra do Círculo no Ocidente. Essa discussão fica, entretanto, para uma próxima oportunidade. REFERÊNCIAS BEZERRA, P. Prefácio: uma obra à prova do tempo. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. (Coleção Perspectiva) FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008a. FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008b. KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1998. MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: EdUSP, 2008. PERRONE-MOISÉS, L. A intertextualidade crítica. Tradução de Clara Crabbé Rocha. In: JENNY, L. et al. Intertextualidades – Poétique nº27. Coimbra: Almedina, 1979. PONZIO, A. O pensamento dialógico de Bakhtin e do seu Círculo como inclassificável. Tradução de Adail Sobral. In: DE PAULA, L.; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010a. (Série Bakhtin: Inclassificável; v. 1). PONZIO, A. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. In: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010b. [1] Uma primeira versão deste texto foi escrita em 2007 – sob o título de Os critérios dialógico, econômico e do inacabamento em A intertextualidade crítica, de Leyla Perrone-Moisés – como requisito de avaliação da disciplina História da literatura e história da leitura, ministrada pela professora Patrícia Pina no Curso de Especialização em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa da UESC, Ilhéus, Bahia. Agradeço a leitura e as sugestões para a revisão deste texto a Luciane de Paula. [2] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara. [3] Só a título de sugestão, leia-se Interdiscursividade e intertextualidade, de Fiorin (2008b). [4] A exemplo do ensaio de Laurent Jenny (1979), A estratégia da forma, usado por Koch (1998) para fundamentar a discussão sobre intertextualidade em sentido amplo e em sentido restrito.

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