Rafael Junior de Oliveira
No presente texto, abordaremos a questão dos relacionamentos dentro de uma sociedade capitalista, apontando de que maneiras certas relações afetivas materializam, refletindo e refratando, relações trabalhistas, que objetificam as pessoas e, mais do que isso, as tornam possuidoras e parte da propriedade privada do outro. Faremos isso dialogando com os campos da filosofia da linguagem, da sociologia e da psicologia.
O modelo neoliberal ganhou força na sociedade brasileira nos últimos anos, fato marcado, dentre outros eventos, pela ascensão da direita a partir de 2014. A desestatização de empresas, sob o pretexto de aumento da competitividade e de lucratividade, deixa claro que o mercado adoraria gerenciar suas próprias relações, independente das consequências sociais de tal gerenciamento, já que, se o objetivo é o lucro, os meios pelos quais ele é obtido não interessam aos donos do capital. Neste cenário, pessoas tornam-se objetos e relações amorosas se tornam contratos, o que pode ser visto nos próprios enunciados empresariais que permeiam tais relações afetivas: “invista na relação”, “faça acordos”, “crie metas para seus relacionamentos”.
Quando se fala em relacionamento, a visão regente se constitui por um núcleo familiar, muitas vezes pequeno, se compararmos com séculos passados. A partir do momento em que as grandes famílias se dividiram, formando novos núcleos familiares, as relações afetivas foram modificadas. Se no século XX, o Brasil foi marcado pela chegada de estrangeiros, cujas famílias eram compostas por vários adultos (avôs, pais, filhos e netos etc) morando na mesma casa, o século XXI apresenta novas características. Com o avanço neoliberal, a ideia de privacidade e individualidade faz com que essas famílias se separem fisicamente, cada qual comprando novas casas e usufruindo particularmente de seus trabalhos. Assim, uma dada forma de conceber o trabalho se modificou, pois o indivíduo não trabalha em prol do crescimento da família, mas em prol do crescimento próprio, com objetivo de formar seu próprio patrimônio.
Todo esse processo de formação impacta nas novas relações afetivas formadas, pois ainda que tais mudanças ocorram e novos valores sejam formados, a propriedade privada é indispensável, já que é através dela que o nível de sucesso do indivíduo que saiu do eixo central será medido. Além disso, espera-se socialmente que esse indivíduo estabeleça um novo eixo, isto é, uma nova família, sendo essa pressão ainda mais forte nas mulheres. Nesse sentido, não só os ganhos dessa nova família – que, diga-se de passagem, é formada legalmente por um padrão monogâmico-, são considerados propriedades privadas, mas a própria relação torna os componentes do relacionamento em mercadorias, isto é, em posse. Em linhas gerais, o processo de transmissão de valores pode ser representado pelo seguinte esquema.
Esquema 1.0 – A transmissão geracional da ideia de propriedade
Neoliberalismo Família Indivíduo
Propriedade privada Propriedade privada Propriedade privada
Fonte: Autoria própria (2021)
Como mostrado no esquema 1.0, a ideia de propriedade privada penetra na construção da família, que, por sua vez, incute isso nos indivíduos, que, por consequência, farão o mesmo com seus filhos. Trata-se de um processo de mentalidade, que não só reflete uma dada concepção de propriedade, mas a refrata em virtude de determinados interesses.
O semiolinguísta Patrick Charaudeau se debruçou nas relações sociais, afirmando que a premissa por trás das interações sociais são os “contratos sociais”, que regem as configurações enunciativas dos discursos. Com relação aos relacionamentos, precisamos nos questionar: Quais sujeitos criaram tal contrato? Que relações são estabelecidas? De que maneira podemos modificá-las?
Segundo Engels (1984), a propriedade privada é marcada por uma relação de posse, aspecto destacado pelo autor ao discorrer sobre os diferentes modelos de família ao longo da história. Volóchinov (2017) contribui para a discussão ao dizer que quem cria tais relações, e suas consequentes construções sígnico-ideológicas, é a classe dominante, por meio da linguagem. Vale dizer que tal construção é feita sob diferentes argumentos, mas uma de suas finalidades é parecer genérica, ampla, enfim, neutra.
Segundo a psicóloga Regina Navarro, especialista em relações amorosas, historicamente, existe, antes da relação de posse se formar, uma tendência monogâmica marcada pelas condições materiais que constituem os indivíduos. Via rede social, a psicóloga afirmou no dia 28 de maio de 2021:
Fonte: LINS (2021)
A colocação da autora se relaciona com o processo citado no esquema 1, mas alerta que, se não existe uma paridade entre ambos os envolvidos na relação, o que significa ter as condições de viver fora daquele relacionamento, a posse só funciona para um dos lados. Devidos às condições criadas ao longo do tempo, esta é a situação de muitas mulheres hoje, o que significa que apenas elas são objetos de posse, podendo os maridos realizarem diferentes atos que somente eles têm o direito, como é o caso das relações extraconjugais.
Com base na fala da psicóloga e tendo em vista o tema abordado, podemos analisar que a classe dominante, ao espalhar uma ideologia de que o(a) amado(a) é uma propriedade, mesmo que utilizando, por vezes, a palavra amor para fazer tal processo, instaura a mesma relação de exclusividade que uma empresa possui com relação aos seus funcionários e clientes. Ao assinar um contrato com uma operadora que presta serviços de internet, por exemplo, o cliente é fidelizado por um determinado período de tempo. Cabe destacar que o uso desse termo não é à toa e demonstra como a ideologia capitalista se materializa em diferentes relações.
No entanto, é necessário apresentar alguns elementos importantes nesse processo da reificação da propriedade privada, pois o que pode parecer algo comum em um regime capitalista, pode ser alvo de lutas feministas, já que o capitalismo e o patriarcado são ambas ideologias reinantes na sociedade contemporânea.
No caso de uma relação amorosa entre duas pessoas que vivem juntas, o que significa que constroem um patrimônio juntas, tal contrato, como postula Charaudeau (2004), é uma forma de fazer com que a propriedade privada permaneça no núcleo familiar, o que nem sempre foi assim. A luta feminista para que as mulheres tivessem direito a receber aposentadoria no caso da morte dos maridos e a ficar com os bens adquiridos com/do o mesmo levou anos e, ainda hoje, preenchem inúmeros processos no judiciário brasileiro. Essa relação de luta demonstra que, muitas vezes, a relação entre patriarcado e capitalismo não é miscível e que existe uma hierarquia entre um e outro, a depender da situação. Um exemplo disso pode ser encontrado no primeiro episódio da série What If…? da Disney, lançado em 11 de agosto de 2021, especificamente quando as opções sendo salvar o mundo ou desempoderar uma mulher – mesmo sendo uma super soldada-, o comandante do exército escolhe a segunda.
Além disso, o contrato do casamento, por exemplo, não é, de fato, muito diferente de um contrato empresarial, com assinatura e tudo mais. Bakhtin (1993, 56-57) afirma que a assinatura é um dos ato-reconhecimento da interação. No entanto, o autor também destaca que não é o conteúdo da obrigação que obriga a sua assinatura, mas o seu reconhecimento. Em outras palavras, no casamento e até na união estável, não é o conteúdo do documento assinado no cartório ou mesmo o conteúdo do dizer feito durante os votos que responsabiliza o sujeito, mas o seu reconhecimento.
Nesse caso, o fazer parte da sociedade, cuja ideologia do amor romântico (como denomina Regina Navarro) é incutida nas pessoas desde criança, que é o importante, mesmo que isso signifique abdicar de seu próprio lugar enquanto sujeito, fundindo-se, devido às relações impostas pelo casamento monogâmico e neoliberal, com o outro.
Deste modo, os votos de casamento e o juramento compelem, via linguagem oral e/ou escrita, muitas vezes, um dizer-fazer de um cônjuge em direção ao outro, no sentido conceitual que propõe Villarta-Neder (2018). Esse ato implica, às vezes nas entrelinhas, às vezes explicito no corpo do dizer, o que tal individuo deve ou não fazer após assinar tal contrato. A infidelidade, no sentido sexual, por exemplo, foi considerada crime por muito tempo, já que tais atos poderiam danificar a ideia de propriedade privada e seu consequente processo de transmissão geracional, pois outra pessoa poderia usufruir de uma propriedade alheia, resultando em perda de capital.
Citamos, anteriormente, um exemplo (série animada) no qual o patriarcalismo sobrepujava o capitalismo, vejamos um exemplo inverso. Atualmente, o Estado, por meio da união estável, torna uma pessoa, que não faz parte do contrato de casamento, também dona de direitos em relação ao seu relacionamento com uma pessoa já casada. Esse tipo de consideração é muito importante, pois, em caso de separação e diante de uma sociedade que, como dissemos, ainda mantém determinadas relações patriarcais, sendo o homem o único responsável pelo sustento da casa, a mulher tenha direitos aos bens adquiridos durante aquele relacionamento. Isso demonstra o imbricamento entre as duas ideologias, explicitando, muitas vezes, as contradições entre elas.
De qualquer modo, seja via capitalismo, seja via patriarcalismo, cabe apontar que essas relações de posses, que vêm desde um plano maior, na relação entre classes e Estado, e penetra nas relações amorosas mais íntimas, como é o caso dos votos de casamento, merecem alguns destaques.
Em uma relação de posse, nos dois sentidos discutidos nesse texto, o outro é clivado de diferentes elementos, sendo o principal deles a possibilidade de interação com outras pessoas, seja por ser propriedade privada, seja por ser submissa à palavra do outro. Tal impedimento também possui implicações para além das relações interpessoais, já que a traição, majoritariamente considerada como ato de ter relação sexual com outra pessoa fora do relacionamento, pode ser utilizada pela pessoa traída para dar entrada em um processo legal de indenização por danos morais. Tal ato, recorrente no meio jurídico, revela o aspecto do contratual no qual o relacionamento é constituído.
Do ponto de vista do sujeito e da ideologia, uma concepção de casamento, como a colocada aqui, é plenamente coerente com uma perspectiva ideológica conservadora e capitalista. No entanto, funcionamentos assim estão espalhados por toda a sociedade, em diferentes classes e gêneros, principalmente a ideia de posse, que mesmo em um relacionamento não monogâmico, como é o caso de um trisal ou quadrisal, ainda é possível compreender como o núcleo familiar regente de tal ideia se mantém. Nesses casos, por exemplo, a fidelidade sexual, apesar de ser regularmente pensada em relação a dois ou três cônjuges, ainda se mantém, pois qualquer relação fora desse núcleo constitui uma ameaça.
Por fim, as consequências de tais relações amorosa-capitalistas nos mostram como os signos ideológicos – destacamos aqui o da fidelidade, mas existem outros -, nos constituem e nos responsabilizam diante deles, pois não estão acabados ou fechados. Qualquer padrão de família, relacionamento, comportamento etc. vendido como único, muitas vezes tido como cultural, como é o caso da infidelidade conjugal por parte dos homens, é construído socialmente, ou seja, seu caráter de cultural é um processo de esvaziamento do signo, neutralizando-o, o que, de acordo com Volóchinov (2017), é um processo feito pela classe dominante. Se o signo de família pôde mudar, como constata Engels (1984), a relação de posse também pode. De acordo com as lives feitas pela psicóloga Regina Navarro, nas suas diferentes redes sociais, os sujeitos precisam explicitar e, quando quiserem, romper com os contratos nunca mencionados, como é o caso da monogamia, já que essa é um imperativo, isto é, um acordo nunca explicitado ou questionado. Seguindo uma perspectiva bakhtiniana, a partir do momento em que os sujeitos perceberem que eles interagem com os outros, mas nunca se fundem com esses, já que a empatia total é uma falácia, novas relações amorosas poderão ser constituídas, rompendo aspectos e dizeres(fazeres) que prejudicam a relação entre os SUJEITOS. NÃO SOMOS EMPRESAS!
Referências.
BAKHTIN, M. Para uma Filosofia do Ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza de. Toward a Philosophy of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
CHARAUDEAU, Patrick. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In: In: MACHADO, I.L.; MELLO, R. (Org.). Gêneros: Reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. p.13-41.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 9ª edição. Rio de Janeiro: Ed, 1984.
LINS, R. N. O que você pensa disso? Deixe aqui nos comentários a sua opinião. Rio de Janeiro: 28 mai. 2021. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CPbm3pYn_em/. Acesso em: 22 ago. 2021.
______. Novas formas de amar. Editora Planeta do Brasil, 2017.
VILLARTA-NEDER, M. Dizeres e fazeres como enunciados: arquitetônica e sentidos para além dos textos. 2018 (Mimeo.).
VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da ciência da linguagem. Trad., notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheilla Grillo – São Paulo: Editora 34, 2017.
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