top of page

Resultados de busca

180 resultados encontrados com uma busca vazia

  • Cronotopo por Bakhtin e Bauman: iniciando o diálogo

    Profa. Dra. Rosineide de Melo Centro Universitário Fundação Santo André Il Sole Escola de Ensino Fundamental Membro do GED Nossas reflexões estão em construção e compartilhá-las inacabadas têm a finalidade de convidar os pesquisadores do GED para esse diálogo. Em tempos de modernidade líquida (Bauman, 2001), parece-nos oportuno refletir acerca do cronotopo. Revisitando as discussões de Bakhtin e seu Círculo (1998 [1975]; 1997; 2003[1979]) e estudando as ideias de   Bauman (2001), percebemos na cronotopia uma convergência do diálogo desses teóricos. A metáfora empregada por Bauman (2001) ao caracterizar a modernidade – líquida –  é precisa e adjetiva bem a contemporaneidade. A discussão acerca de tempo-espaço parte dos aspectos histórico, político e ideológico: espaços representando poderes (sociais, econômicos), marcando tempos históricos; da ocupação dos espaços ao longo da história; criação de instrumentos que diminuíram o tempo de conquista de espaços, dentre outras profícuas reflexões, todas, no entanto, apresentando associação de significações e sentidos do tempo-espaço. Após a contextualização epistemológica e não menos ideológica, política, social, cultural, o autor aborda a relação tradicional de tempo-espaço – duração para percorrer um espaço físico – em comparação ao tempo no espaço da virtualidade: “ o espaço é atravessado em tempo nenhum” (p.136), dessa forma, a corrida espacial, onde o tempo é fator crucial – reduzir o tempo de percurso por meio de transportes mais rápidos capacita a conquista de mais territórios/espaços – se relativa ou inexiste: os espaços são conquistados instantaneamente e daí, pode-se estar em qualquer lugar a qualquer tempo. Diante disso, o lugar/espaço físico/conquista territorial tem suas significações alteradas, ou seja, para conhecer vários lugares, (ou invadi-los) não precisamos viajar, comprar passagens, hospedarmos, gastarmos…. as relações (pessoais, de trabalho, de dominação, do capital, políticas internas ou externas) também se modificam significativamente e são construídos novos e outros sentidos. A noção de duração desloca-se aos artefatos: são criados para não existirem – obsolescência programada. Tudo é consumível, descartável, efêmero, fugaz, breve, instantâneo: dos objetos às relações. Deslocando (e nem tanto) essas reflexões, na modernidade líquida, mediada pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – TDICs -, o espaço se relativiza e o tempo é o instantâneo. A virtualidade nos permite estar em qualquer lugar e no mesmo tempo real; como já mencionado, não precisamos nos deslocar em dado tempo para visitar, por exemplo, um museu ou para conversarmos com alguém em outro lugar do mundo. Isso proporcionado pelos artefatos conectados à internet, dispositivos e aplicativos móveis; facilitado pelas redes sociais, pelos programas de comunicação por voz e imagens, pelos aplicativos de mensagens, pelos sites e tudo o mais. Evidentemente, que isso não significa negar tempos e espaços reais, na verdade, as noções – e o uso – de tempos e espaços que se alteraram. Ao encontro dessa nova – ressignificada concepção, invocamos Bakhtin e seu Círculo ([1975] 1998; [1979] 1997; 2003). A ideia de tempo-espaço, ou seja, cronotopia pelos teóricos russos é estuda na perspectiva da literatura. O círculo emprega metáforas da estrada, da praça pública, da Ágora grega ou dos bulevares parisienses como as grandes arenas do discurso, organizadoras do homem histórico, implicado de tempo-espaço. Temos discutido (Tanzi e Melo, 2016, em elaboração; Melo e Azzari, 2016, no prelo) o cronotopo da/na modernidade líquida. Melhor, no plural: cronotopos. Adiantando e brevemente algumas de nossas reflexões, podemos falar em cronotopo da  virtualidade, para nos referirmos àqueles mediados pelas TDICs, e os da não virtualidade, como os da praça pública, recorrentes ao longo da História e muito presentes na atual realidade brasileira. O cronotopo da “virtualidade” (Tanzi, Melo, 2016, em elaboração) – para citar apenas um – é marcado pela quase instantaneidade – considerando os delays –, também, obviamente pelo uso do dispositivo, pela interatividade. Trata-se do cronotopo fluído, uma vez que a relação tempo-espaço se fundem de uma forma ressigniticada, ou seja, não mais dependente da duração do percurso, mas da ubiquidade desses tempos/espaços. As interações são alteradas nesse cronotopo, marcada pela colaboratividade e, evidentemente, circulam nele discursos constituídos por linguagens multimodais e multissemióticas e híbridas facilitadas pelas TDICs. E ainda se considerarmos que “o conceito de Cronotopo trata de uma produção da história. Designa um lugar coletivo, uma espécie de matriz espaço-temporal de onde várias histórias se contam ou se escrevem” (Amorim, [2006] 2012, p. 105) como deixar de pensar nas redes sociais?! Como deixar de pensar nas histórias e Histórias publicadas online pelos usuários das/nas diversas redes?! Como deixar de pensar no cronotopo, por exemplo, pelo design do Facebook: linearidade e instantaneidade?! Parece mesmo que Bakhtin e seu Círculo previram tempos modernos e líquidos… Referências AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin: Outros Conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2012, p. 95 -114. BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et al 4 ed. São Paulo: UNESP, 1998 [1975]. ______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1979]. ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1979]. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plinio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001. Disponível em: https://onedrive.live.com/view.aspx?resid=71B7E7833E24C047!614&ithint=file%2c.pdf&app=WordPdf&authkey=!AMCsFRTcqsMZZBk   acesso em 16/9/2015. MELO, Rosineide de. AZZARI, Eliane Fernandes Olhares sobre as construções do português em redes sociais e suas interfaces com a educação crítica e pluralista. 2016, no prelo. TANZI NETO, Adolfo. MELO, Rosineide de. Cronotopo, remediação e os gêneros digitas no ambiente virtual de aprendizagem, em elaboração.

  • Cronotopo por Bakhtin e Bauman: iniciando o diálogo

    Profa. Dra. Rosineide de Melo Centro Universitário Fundação Santo André Il Sole Escola de Ensino Fundamental Membro do GED Nossas reflexões estão em construção e compartilhá-las inacabadas têm a finalidade de convidar os pesquisadores do GED para esse diálogo. Em tempos de modernidade líquida (Bauman, 2001), parece-nos oportuno refletir acerca do cronotopo. Revisitando as discussões de Bakhtin e seu Círculo (1998 [1975]; 1997; 2003[1979]) e estudando as ideias de   Bauman (2001), percebemos na cronotopia uma convergência do diálogo desses teóricos. A metáfora empregada por Bauman (2001) ao caracterizar a modernidade – líquida –  é precisa e adjetiva bem a contemporaneidade. A discussão acerca de tempo-espaço parte dos aspectos histórico, político e ideológico: espaços representando poderes (sociais, econômicos), marcando tempos históricos; da ocupação dos espaços ao longo da história; criação de instrumentos que diminuíram o tempo de conquista de espaços, dentre outras profícuas reflexões, todas, no entanto, apresentando associação de significações e sentidos do tempo-espaço. Após a contextualização epistemológica e não menos ideológica, política, social, cultural, o autor aborda a relação tradicional de tempo-espaço – duração para percorrer um espaço físico – em comparação ao tempo no espaço da virtualidade: “ o espaço é atravessado em tempo nenhum” (p.136), dessa forma, a corrida espacial, onde o tempo é fator crucial – reduzir o tempo de percurso por meio de transportes mais rápidos capacita a conquista de mais territórios/espaços – se relativa ou inexiste: os espaços são conquistados instantaneamente e daí, pode-se estar em qualquer lugar a qualquer tempo. Diante disso, o lugar/espaço físico/conquista territorial tem suas significações alteradas, ou seja, para conhecer vários lugares, (ou invadi-los) não precisamos viajar, comprar passagens, hospedarmos, gastarmos…. as relações (pessoais, de trabalho, de dominação, do capital, políticas internas ou externas) também se modificam significativamente e são construídos novos e outros sentidos. A noção de duração desloca-se aos artefatos: são criados para não existirem – obsolescência programada. Tudo é consumível, descartável, efêmero, fugaz, breve, instantâneo: dos objetos às relações. Deslocando (e nem tanto) essas reflexões, na modernidade líquida, mediada pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação – TDICs -, o espaço se relativiza e o tempo é o instantâneo. A virtualidade nos permite estar em qualquer lugar e no mesmo tempo real; como já mencionado, não precisamos nos deslocar em dado tempo para visitar, por exemplo, um museu ou para conversarmos com alguém em outro lugar do mundo. Isso proporcionado pelos artefatos conectados à internet, dispositivos e aplicativos móveis; facilitado pelas redes sociais, pelos programas de comunicação por voz e imagens, pelos aplicativos de mensagens, pelos sites e tudo o mais. Evidentemente, que isso não significa negar tempos e espaços reais, na verdade, as noções – e o uso – de tempos e espaços que se alteraram. Ao encontro dessa nova – ressignificada concepção, invocamos Bakhtin e seu Círculo ([1975] 1998; [1979] 1997; 2003). A ideia de tempo-espaço, ou seja, cronotopia pelos teóricos russos é estuda na perspectiva da literatura. O círculo emprega metáforas da estrada, da praça pública, da Ágora grega ou dos bulevares parisienses como as grandes arenas do discurso, organizadoras do homem histórico, implicado de tempo-espaço. Temos discutido (Tanzi e Melo, 2016, em elaboração; Melo e Azzari, 2016, no prelo) o cronotopo da/na modernidade líquida. Melhor, no plural: cronotopos. Adiantando e brevemente algumas de nossas reflexões, podemos falar em cronotopo da  virtualidade, para nos referirmos àqueles mediados pelas TDICs, e os da não virtualidade, como os da praça pública, recorrentes ao longo da História e muito presentes na atual realidade brasileira. O cronotopo da “virtualidade” (Tanzi, Melo, 2016, em elaboração) – para citar apenas um – é marcado pela quase instantaneidade – considerando os delays –, também, obviamente pelo uso do dispositivo, pela interatividade. Trata-se do cronotopo fluído, uma vez que a relação tempo-espaço se fundem de uma forma ressigniticada, ou seja, não mais dependente da duração do percurso, mas da ubiquidade desses tempos/espaços. As interações são alteradas nesse cronotopo, marcada pela colaboratividade e, evidentemente, circulam nele discursos constituídos por linguagens multimodais e multissemióticas e híbridas facilitadas pelas TDICs. E ainda se considerarmos que “o conceito de Cronotopo trata de uma produção da história. Designa um lugar coletivo, uma espécie de matriz espaço-temporal de onde várias histórias se contam ou se escrevem” (Amorim, [2006] 2012, p. 105) como deixar de pensar nas redes sociais?! Como deixar de pensar nas histórias e Histórias publicadas online pelos usuários das/nas diversas redes?! Como deixar de pensar no cronotopo, por exemplo, pelo design do Facebook: linearidade e instantaneidade?! Parece mesmo que Bakhtin e seu Círculo previram tempos modernos e líquidos… Referências AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin: Outros Conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2012, p. 95 -114. BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni et al 4 ed. São Paulo: UNESP, 1998 [1975]. ______. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 [1979]. ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1979]. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plinio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2001. Disponível em: https://onedrive.live.com/view.aspx?resid=71B7E7833E24C047!614&ithint=file%2c.pdf&app=WordPdf&authkey=!AMCsFRTcqsMZZBk   acesso em 16/9/2015. MELO, Rosineide de. AZZARI, Eliane Fernandes Olhares sobre as construções do português em redes sociais e suas interfaces com a educação crítica e pluralista. 2016, no prelo. TANZI NETO, Adolfo. MELO, Rosineide de. Cronotopo, remediação e os gêneros digitas no ambiente virtual de aprendizagem, em elaboração.

  • Entre perder e dedicar: descompassos ideológicos da educação no Brasil

    Karin Adriane Henschel Pobbe Ramos[1] No início de 2016, circulou, nas redes de televisão abertas de todo o Brasil, uma campanha publicitária, patrocinada pelo Ministério da Educação, cujo objetivo foi a divulgação das datas para as inscrições nos programas do Governo Federal SISU (Sistema de Seleção Unificada), PROUNI (Programa Universidade para Todos) e FIES (Fundo de Financiamento Estudantil). O público alvo eram os estudantes que haviam prestado o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2015. Ao assistir ao anúncio pela primeira vez, chamou-me a atenção a reiteração do verbo escolhido por aqueles que fizeram o texto para designar a atitude dos estudantes ao se prepararem para fazer o exame: “perder”. Dizia o texto: Você perdeu noites, [perdeu] finais de semana, perdeu até o namorado. E se você que fez o ENEM, perder o prazo de inscrição do SISU, do PROUNI e do FIES, além de perder a chance de definir o seu futuro, você vai perder noites de novo, vai perder finais de semana de novo, você vai perder até o namorado de novo. E perder o namorado de novo não dá, né? Não perca o prazo de inscrição e siga o caminho de oportunidades. Uma pátria educadora se faz com educação de qualidade.[2] Curiosamente, uma semana depois, o texto foi modificado. O primeiro verbo “perdeu” foi substituído por “dedicou”, e o segundo, que ficava elíptico, foi substituído pela expressão “abriu mão”, ficando assim: Você dedicou noites, abriu mão dos finais de semana, e até perdeu o namorado. E se você que fez o ENEM, perder o prazo de inscrição do SISU, do PROUNI e do FIES, além de perder a chance de definir o seu futuro, você vai perder noites de novo, vai perder finais de semana de novo, você vai perder até o namorado de novo. E perder o namorado de novo não dá, né? Não perca o prazo de inscrição e siga o caminho de oportunidades. Uma pátria educadora se faz com educação de qualidade.[3] A princípio, a veiculação da campanha causou polêmica nas redes sociais, pois, apesar de apresentar uma garota como protagonista assume uma postura androcêntrica, na qual a mulher, mesmo que esteja pleiteando uma vaga em universidade, ainda assim, precisa de um namorado. Vejam-se alguns dos comentários, extraídos da página do Youtube em que o anúncio foi divulgado pela primeira vez[4]: (01)       Alguém ensina pro idiota que criou essa propaganda que namorado NÃO é prioridade, por favor? [BakooraLover] (02)       então a gente precisa de um namorado que ainda não entende que o estudo é essencial pra gente e não pode ficar o tempo todo com ele??? QUE PORRA É ESSA MEC [Ana Ribeiro] (03)       Só no Brasil mesmo pra acharem que “perder namoro, praia e diversão” é normal se quiser entrar numa faculdade, onde supostamente o estudante também nao terá “vida social”. Parabéns aos que passam madrugadas estudando e conseguem a aprovação, mas não deveria ser esse sacrificio todo. A adolescencia é uma periodo importante que precisa de lazer e tb de responsabilidades, mas perder 1 ou 2 anos de “vida” pra entrar na faculdade só mostra o quão injusto e falho é o sistema educacional desse país. [Kárim Ribeiro] Há também os que, nas redes sociais, defenderam a campanha, ressaltando o “bom humor” e a “sensatez” do texto: (04)       Caraca, como tem pessoas que não tem um mínimo de bom humor, puts estudamos o ano inteiro e estamos preparados para outro ano de estudo. Mas será que uma PROPAGANDA não pode fazer um clima mais ameno/divertido para os estudantes? [Mateus m] (05)       Acho que o comercial deu protagonismo a menina, achei isso bacana. Não é um rapaz perdendo a namorada (até pq se fosse, estariam reclamando que a mulher está em um local periférico da propaganda). Achei a propaganda bacana, não vi em momento nenhum a garota dando prioridade ao namorado, apenas que ela não quer perder o namorado por ter que estudar de novo, o que me parece bem sensato. Se for algum mal-entendido meu, espero que alguém me responda para eu abrir os olhos. Obrigado! (Na boa, lição de moral eu tô dispensando. Estou aberto a conversa apenas). [Eliezer Borges] Entretanto, apesar dessas polêmicas suscitadas pela propaganda, o objetivo desta reflexão é discutir os descompassos ideológicos dos enunciados, no que diz respeito ao modo como a educação é concebida no Brasil. Sei que não se pode generalizar uma questão como essa, mas existe um discurso enraizado historicamente na cultura brasileira que tende a atribuir um valor de perda à educação. Miotello (2010), ao discutir o conceito de ideologia a partir do pensamento do Círculo Bakhtiniano, define-a como expressão de uma tomada de posição determinada. E continua: Todo signo, além da dupla materialidade, no sentido físico-material e no sentido sócio histórico, ainda recebe um “ponto de vista”, pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio do ideológico. Logo, todo signo é signo ideológico. O ponto de vista, o lugar valorativo e a situação são sempre determinados sócio historicamente. (MIOTELLO, 2010, p. 170) Nesse sentido, se pensarmos do ponto de vista da enunciação temos que o Ministério da Educação contratou os serviços de uma agência de publicidade para divulgar, entre os que prestaram o ENEM, as datas de inscrição nos programas governamentais de acesso ao ensino superior no Brasil. Esse processo não é tão simples. É necessário que haja uma licitação e nem sempre os que são escolhidos são os que prestarão o melhor serviço. Podemos dizer que esses mecanismos, de certa forma, fazem parte do que Foucault (2010) denominou de governamentalidade, ou seja, […] táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não deve competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto, o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade. (FOUCAULT, 2010, p. 292)[5] Sem dúvida, divulgar nas mais diferentes mídias os programas de acesso ao ensino superior, financiados pelo governo, é uma tática de governamentalidade, na medida em que tira o foco dos reais problemas que a educação no Brasil enfrenta, tais como, péssimas condições de trabalho, formação docente inadequada, tendo como pano de fundo, uma concepção de educação totalmente diversa do que esse processo deveria representar em uma sociedade que preza pela dignidade de seus cidadãos. Entretanto, a palavra enunciada traz consigo vários significados que foram sendo construídos sócio historicamente, denunciando não apenas a posição do enunciador, mas todo o constructo exotópico no qual está inserido. Valho-me, aqui, do conceito de exotopia, apresentado por Amorim (2010, p. 104-105), como o ponto espaço-temporal a partir do qual o autor considera os acontecimentos que narra; um ponto em que vozes, nem sempre conscientes, ecoam, refratando mundos dos quais se derivam valores. No caso, a reiteração do verbo “perder”, mesmo na segunda versão, que tenta salvar o leite derramado, depois de todo o trabalho de produção do anúncio, substituindo o primeiro “perder” por “dedicar”, indica um ponto marcado por todo esse descaso que, ano após ano, governo após governo, assombra a educação brasileira. De acordo com Bakhtin/Voloshinov: […] toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros: encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1988, p. 107) Essa situação conflitante deflagra como olhares distintos se fusionam nos enunciados. Nesse caso, há, pelo menos, duas vozes em tensão. Uma que quer mostrar à população que o governo federal desenvolve programas os quais considera, segundo o texto da propaganda, como “caminhos de oportunidades” de “uma pátria educadora” que “se faz com educação de qualidade”. E outra voz em desacordo, que emerge no “perder”, que modaliza a vida dos jovens que se preparam para ingressar na universidade. Como sabemos, no Brasil, não temos uma tradição histórica de valorização da educação como um processo institucionalizado de produção de saberes. O que se tem, desde os tempos da colonização, é uma tentativa de adequação às práticas sociais dos grupos dominantes. E, nesse contexto, para a grande massa da população brasileira, educação é sinônimo de perder. Perder a identidade oriunda de um saber desprestigiado socialmente, considerado inculto, popular, vulgar. Estudar passa, então a ocupar um lugar valorativo da perda. Isso não quer dizer que, muitas vezes, no processo de produção de conhecimento temos de fazer escolhas entre ir para uma balada ou ficar em casa estudando. Mas essa atitude não poderia ser considerada como perda, e sim como ganho. O que aconteceu entre o perder e o dedicar? Certamente, alguém se deu conta desse equívoco e chamou a atenção dos produtores da campanha a respeito da escolha infeliz do signo ideológico “perder”, utilizado na propaganda. No entanto, diante do que se configura e que aqui brevemente tentei esboçar, a partir da análise de tal campanha, é preciso muito mais do que uma simples substituição de vocábulos, os quais, nesse contexto, acabam trazendo a mesma carga ideológica, para que a educação no Brasil ganhe um enfoque distinto. É necessário que haja uma conscientização crítica a respeito da história da educação no Brasil para que, em algum momento, passemos a considera-la como ganho e real possibilidade de transformação social. REFERÊNCIAS AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 95-114. BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, [1929] 1988. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado.  Rio de Janeiro: Graal, 2010. MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 167-176. [1] Docente do curso de Letras da UNESP – Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis; e do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), Câmpus de Assis/Araraquara. karin.ramos1@gmail.com [2] Assista à propaganda no link: https://www.youtube.com/watch?v=-QGmHmP7JEE [3] Assista à propaganda no link: https://www.youtube.com/watch?v=7E8dMZwb6cc [4] Os codinomes foram mantidos, por se tratar de uma publicação em rede social. [5] Apesar das ressalvas que Foucault faz ao conceito de ideologia, consideramos pertinente citá-lo nesta reflexão. #Educação #foucault #ideologia

  • Entre perder e dedicar: descompassos ideológicos da educação no Brasil

    Karin Adriane Henschel Pobbe Ramos[1] No início de 2016, circulou, nas redes de televisão abertas de todo o Brasil, uma campanha publicitária, patrocinada pelo Ministério da Educação, cujo objetivo foi a divulgação das datas para as inscrições nos programas do Governo Federal SISU (Sistema de Seleção Unificada), PROUNI (Programa Universidade para Todos) e FIES (Fundo de Financiamento Estudantil). O público alvo eram os estudantes que haviam prestado o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2015. Ao assistir ao anúncio pela primeira vez, chamou-me a atenção a reiteração do verbo escolhido por aqueles que fizeram o texto para designar a atitude dos estudantes ao se prepararem para fazer o exame: “perder”. Dizia o texto: Você perdeu noites, [perdeu] finais de semana, perdeu até o namorado. E se você que fez o ENEM, perder o prazo de inscrição do SISU, do PROUNI e do FIES, além de perder a chance de definir o seu futuro, você vai perder noites de novo, vai perder finais de semana de novo, você vai perder até o namorado de novo. E perder o namorado de novo não dá, né? Não perca o prazo de inscrição e siga o caminho de oportunidades. Uma pátria educadora se faz com educação de qualidade.[2] Curiosamente, uma semana depois, o texto foi modificado. O primeiro verbo “perdeu” foi substituído por “dedicou”, e o segundo, que ficava elíptico, foi substituído pela expressão “abriu mão”, ficando assim: Você dedicou noites, abriu mão dos finais de semana, e até perdeu o namorado. E se você que fez o ENEM, perder o prazo de inscrição do SISU, do PROUNI e do FIES, além de perder a chance de definir o seu futuro, você vai perder noites de novo, vai perder finais de semana de novo, você vai perder até o namorado de novo. E perder o namorado de novo não dá, né? Não perca o prazo de inscrição e siga o caminho de oportunidades. Uma pátria educadora se faz com educação de qualidade.[3] A princípio, a veiculação da campanha causou polêmica nas redes sociais, pois, apesar de apresentar uma garota como protagonista assume uma postura androcêntrica, na qual a mulher, mesmo que esteja pleiteando uma vaga em universidade, ainda assim, precisa de um namorado. Vejam-se alguns dos comentários, extraídos da página do Youtube em que o anúncio foi divulgado pela primeira vez[4]: (01)       Alguém ensina pro idiota que criou essa propaganda que namorado NÃO é prioridade, por favor? [BakooraLover] (02)       então a gente precisa de um namorado que ainda não entende que o estudo é essencial pra gente e não pode ficar o tempo todo com ele??? QUE PORRA É ESSA MEC [Ana Ribeiro] (03)       Só no Brasil mesmo pra acharem que “perder namoro, praia e diversão” é normal se quiser entrar numa faculdade, onde supostamente o estudante também nao terá “vida social”. Parabéns aos que passam madrugadas estudando e conseguem a aprovação, mas não deveria ser esse sacrificio todo. A adolescencia é uma periodo importante que precisa de lazer e tb de responsabilidades, mas perder 1 ou 2 anos de “vida” pra entrar na faculdade só mostra o quão injusto e falho é o sistema educacional desse país. [Kárim Ribeiro] Há também os que, nas redes sociais, defenderam a campanha, ressaltando o “bom humor” e a “sensatez” do texto: (04)       Caraca, como tem pessoas que não tem um mínimo de bom humor, puts estudamos o ano inteiro e estamos preparados para outro ano de estudo. Mas será que uma PROPAGANDA não pode fazer um clima mais ameno/divertido para os estudantes? [Mateus m] (05)       Acho que o comercial deu protagonismo a menina, achei isso bacana. Não é um rapaz perdendo a namorada (até pq se fosse, estariam reclamando que a mulher está em um local periférico da propaganda). Achei a propaganda bacana, não vi em momento nenhum a garota dando prioridade ao namorado, apenas que ela não quer perder o namorado por ter que estudar de novo, o que me parece bem sensato. Se for algum mal-entendido meu, espero que alguém me responda para eu abrir os olhos. Obrigado! (Na boa, lição de moral eu tô dispensando. Estou aberto a conversa apenas). [Eliezer Borges] Entretanto, apesar dessas polêmicas suscitadas pela propaganda, o objetivo desta reflexão é discutir os descompassos ideológicos dos enunciados, no que diz respeito ao modo como a educação é concebida no Brasil. Sei que não se pode generalizar uma questão como essa, mas existe um discurso enraizado historicamente na cultura brasileira que tende a atribuir um valor de perda à educação. Miotello (2010), ao discutir o conceito de ideologia a partir do pensamento do Círculo Bakhtiniano, define-a como expressão de uma tomada de posição determinada. E continua: Todo signo, além da dupla materialidade, no sentido físico-material e no sentido sócio histórico, ainda recebe um “ponto de vista”, pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio do ideológico. Logo, todo signo é signo ideológico. O ponto de vista, o lugar valorativo e a situação são sempre determinados sócio historicamente. (MIOTELLO, 2010, p. 170) Nesse sentido, se pensarmos do ponto de vista da enunciação temos que o Ministério da Educação contratou os serviços de uma agência de publicidade para divulgar, entre os que prestaram o ENEM, as datas de inscrição nos programas governamentais de acesso ao ensino superior no Brasil. Esse processo não é tão simples. É necessário que haja uma licitação e nem sempre os que são escolhidos são os que prestarão o melhor serviço. Podemos dizer que esses mecanismos, de certa forma, fazem parte do que Foucault (2010) denominou de governamentalidade, ou seja, […] táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não deve competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto, o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade. (FOUCAULT, 2010, p. 292)[5] Sem dúvida, divulgar nas mais diferentes mídias os programas de acesso ao ensino superior, financiados pelo governo, é uma tática de governamentalidade, na medida em que tira o foco dos reais problemas que a educação no Brasil enfrenta, tais como, péssimas condições de trabalho, formação docente inadequada, tendo como pano de fundo, uma concepção de educação totalmente diversa do que esse processo deveria representar em uma sociedade que preza pela dignidade de seus cidadãos. Entretanto, a palavra enunciada traz consigo vários significados que foram sendo construídos sócio historicamente, denunciando não apenas a posição do enunciador, mas todo o constructo exotópico no qual está inserido. Valho-me, aqui, do conceito de exotopia, apresentado por Amorim (2010, p. 104-105), como o ponto espaço-temporal a partir do qual o autor considera os acontecimentos que narra; um ponto em que vozes, nem sempre conscientes, ecoam, refratando mundos dos quais se derivam valores. No caso, a reiteração do verbo “perder”, mesmo na segunda versão, que tenta salvar o leite derramado, depois de todo o trabalho de produção do anúncio, substituindo o primeiro “perder” por “dedicar”, indica um ponto marcado por todo esse descaso que, ano após ano, governo após governo, assombra a educação brasileira. De acordo com Bakhtin/Voloshinov: […] toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros: encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1988, p. 107) Essa situação conflitante deflagra como olhares distintos se fusionam nos enunciados. Nesse caso, há, pelo menos, duas vozes em tensão. Uma que quer mostrar à população que o governo federal desenvolve programas os quais considera, segundo o texto da propaganda, como “caminhos de oportunidades” de “uma pátria educadora” que “se faz com educação de qualidade”. E outra voz em desacordo, que emerge no “perder”, que modaliza a vida dos jovens que se preparam para ingressar na universidade. Como sabemos, no Brasil, não temos uma tradição histórica de valorização da educação como um processo institucionalizado de produção de saberes. O que se tem, desde os tempos da colonização, é uma tentativa de adequação às práticas sociais dos grupos dominantes. E, nesse contexto, para a grande massa da população brasileira, educação é sinônimo de perder. Perder a identidade oriunda de um saber desprestigiado socialmente, considerado inculto, popular, vulgar. Estudar passa, então a ocupar um lugar valorativo da perda. Isso não quer dizer que, muitas vezes, no processo de produção de conhecimento temos de fazer escolhas entre ir para uma balada ou ficar em casa estudando. Mas essa atitude não poderia ser considerada como perda, e sim como ganho. O que aconteceu entre o perder e o dedicar? Certamente, alguém se deu conta desse equívoco e chamou a atenção dos produtores da campanha a respeito da escolha infeliz do signo ideológico “perder”, utilizado na propaganda. No entanto, diante do que se configura e que aqui brevemente tentei esboçar, a partir da análise de tal campanha, é preciso muito mais do que uma simples substituição de vocábulos, os quais, nesse contexto, acabam trazendo a mesma carga ideológica, para que a educação no Brasil ganhe um enfoque distinto. É necessário que haja uma conscientização crítica a respeito da história da educação no Brasil para que, em algum momento, passemos a considera-la como ganho e real possibilidade de transformação social. REFERÊNCIAS AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 95-114. BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, [1929] 1988. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado.  Rio de Janeiro: Graal, 2010. MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 167-176. [1] Docente do curso de Letras da UNESP – Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis; e do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), Câmpus de Assis/Araraquara. karin.ramos1@gmail.com [2] Assista à propaganda no link: https://www.youtube.com/watch?v=-QGmHmP7JEE [3] Assista à propaganda no link: https://www.youtube.com/watch?v=7E8dMZwb6cc [4] Os codinomes foram mantidos, por se tratar de uma publicação em rede social. [5] Apesar das ressalvas que Foucault faz ao conceito de ideologia, consideramos pertinente citá-lo nesta reflexão. #Educação #foucault #ideologia

  • Questões sobre o estilo de um autor-criador: associações (in)devidas à arquitetônica de Tim Burton

    Natasha Ribeiro de Oliveira[1] Luciane de Paula[2] Muitas pessoas atribuem produções que não são do Tim Burton a ele. Isso se deve, em grande parte, ao seu estilo autoral de produção consolidado. Convenhamos que, num primeiro olhar, algumas produções são confundíveis, tamanhas semelhanças existem entre elas. A proposta desse texto é refletir sobre semelhanças e diferenças de estilos autorais a partir de ­Burton. Para isso, pensaremos nas relações entre O Estranho Mundo de Jack, uma produção com roteiro de Tim Burton e direção de Henry Selick, de 1993; e Coraline e o Mundo Secreto, uma produção com o roteiro de Neil Gaiman e direção de Henry Selick, de 2009; assim como entre Frankenweenie, uma produção burtoniana de 2012; e Mary e Max, de Adam Elliot, de 2010. A arquitetônica é aqui encarada como o projeto de dizer do autor-criador que possui um estilo peculiar de produção que o faz ser confundido com outros autores-criadores e suas produções, sejam posteriores ou anteriores às dele. O estilo possui caráter singular e, ao mesmo tempo, está associado ao coletivo, segundo a visão bakhtiniana, por ser um dos traços do gênero enunciativo produzido e por aproximar obras e autores-criadores, bem como relacioná-los com os interlocutores de suas obras. O estilo burtoniano de produção é caracterizado por personagens deslocadas, anômalas e à margem da sociedade. Temas como solidão e desajuste social diante dos modelos canônicos de enquadramento são recorrentes, assim como o sombrio, a morte e o obscuro como condições de luz, vida, bondade e humanização. De acordo com Faraco (2009), o autor-criador é diferente do autor-pessoa ainda que um se nutra e não exista sem o outro. Como criador, o autor possui função estético-formal engendradora da obra e materializa a relação valorativa encontrada dentro das suas produções. Os traços recorrentes, típicos de suas obras, marcam a sua assinatura autoral – o que podemos chamar de estilo autoral. De acordo com Brait (2005), o conceito bakhtiniano de estilo não pode ser separado e visto como isolado ao da ideia de enunciado. Essa indissociabilidade se deve por serem, os enunciados, os refletores das singularidades de fala dos sujeitos, que, por sua vez, possuem um estilo (maneira típica de se enunciar). A construção enunciativa não é criada em seu todo isoladamente. O sujeito e o enunciado não são apartados da sociedade, de um tempo e de um espaço específicos. Ainda que o estilo seja considerado marca autoral constituída de singularidade, ele produz respostas, tanto do próprio autor quanto de outros sujeitos. Respostas que se aproximam e que se distanciam do enunciado produzido, seja pelo posicionamento valorativo, que dá ao autor-criador a possibilidade de constituir o todo, seja pelo acabamento estético, que materializa as escolhas de composição, que resultam em determinada valoração. De acordo com o pensamento bakhtiniano, toda construção enunciativa possui caráter valorativo frente a outras produções enunciativas. Isso marca a respondibilidade do enunciado e colabora para a compreensão de que um estilo autoral não se define exclusivamente como individual, ainda que seja uma parte do ato singular. O traço de singularidade não exclui a marca social que caracteriza o estilo, uma vez que o autor-criador dá forma aos conteúdos temáticos de suas obras com seus traços específicos sem estar apartado da “realidade” social. O(s) mundo(s) de Jack e Coraline: do estranho ao secreto O Estranho Mundo de Jack, assim como Coraline e o Mundo Secreto, foram dirigidos pelo mesmo diretor, Heny Selick, mas partem de roteiristas e produtores diferentes[3]. O primeiro é de produção e roteiro (composto como um poema autoral – enunciado de um outro gênero) de Tim Burton, já o segundo possui o roteiro adaptado do livro “Coraline”, de Neil Gaiman. Embora ambas as direções sejam de uma mesma autoria, não é apenas a direção que os coloca como provenientes do mesmo autor-criador[4], afinal, elas não são atribuídas a Henry Selick (o que também não é indevido, uma vez que ele é o diretor das duas obras), mas, sim, a Burton, que possui uma forma específica de tratamento das temáticas já trabalhadas anteriormente por ele e também por outros autores-criadores. Em outras palavras, as produções que não são dele (mas associadas a ele) são confundidas com o seu estilo autoral não pela abordagem dos mesmos temas – o sombrio e o diferente – com um tom específico (a sátira, a leveza, a inversão etc). A temática do sombrio é recorrente em diversas criações, mas a forma e o estilo (em especial este último) é que caracterizam a voz do autor – o toque irônico ao abordar os temas dentro da “realidade”, a utilização de animações em stop-motion, a diversão com o que seria tomado como sério e degradante, entre outras características. Burton formaliza a temática do desajuste social a seu modo, a ponto de suas produções apresentarem recorrências que consolidaram o seu estilo autoral. A temática é uma das marcas possíveis de aproximação entre as obras, visto que ambas abordam o universo paralelo e o sujeito deslocado em suas composições. Entretanto, não é o bastante falarmos do tema como o fio condutor das associações de outras obras às de Burton, pois autores-criadores anteriores e posteriores a ele também abordaram e abordam esses temas em suas obras, de maneira semelhante ou não. A forma de abordar determinado tema dentro de uma produção é que faz com que o estilo autoral seja identificado por outros sujeitos. Isto é, a interação entre forma e tema (conteúdo) é o que caracteriza o estilo, o modo específico de produção do autor-criador. Assim como Jack, uma espécie de caveira-abóbora rei do Halloween vive em um mundo, num momento de insatisfação, e descobre a possibilidade de viver de outro modo e em um outro mundo, Coraline, uma garotinha de 13 anos que acaba de se mudar com seus pais (que não lhe dão atenção) para um lugar estranho, também descobre a possibilidade de um novo mundo, subterrâneo, diferente daquele em que vive e com outra relação com seus pais. Para Bakhtin, tratar do estilo significa, também e em princípio, por uma questão inclusive de perspectiva de linguagem e pelo método, estudar um enunciado em diálogo com outro, pois é no cotejo entre enunciados que se torna possível verificar peculiaridades e proximidades entre eles, considerando os gêneros discursivos em sua relativa estabilidade. De acordo com a episteme bakhtiniana, diálogo é interação entre singularidades discursivas que, em embate, constituem-se, na relação, como enunciados únicos e irrepetíveis. As duas obras, no original, não possuem a palavra “mundo” (world, em inglês), como parte integrante do seu título, respectivamente, “The Nightmare Before Christmas”[5] e “Coraline: an Adventure too Weird for Words”[6]. Entretanto, na tradução brasileira, as duas obras possuem a palavra “mundo” como parte de seus títulos: “O Estranho Mundo de Jack” e “Coraline e o Mundo Secreto”, respectivamente. Esse é apenas um exemplo de semelhança lexical que colabora para uma noção de que as obras estão centradas em universos paralelos, encarados, aqui, como parte da temática das tramas, mas também como elementos para pensarmos em aspectos comuns entre as duas obras, que levam o espectador a associar a produção de um filme com o outro. A escolha do léxico em uma determinada construção verbal, seja ela qual for, não é fortuita, dada ao acaso e vista como “coincidência”. Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2014), diz ser o signo uma criação de função ideológica precisa. Os dois protagonistas de cada produção (Jack e Coraline) face aos dois mundos paralelos em que convivem (ver figura 1 e figura 2), concretizados pelo verbal e pelo visual, também apresentam semelhanças: Figura 1: Cartaz (edição de colecionador) – Jack Figura 2: Cartaz (Divulgação) – Coraline entre entre o mundo do Halloween e o do Natal o mundo “secreto” e o “real”. A distinção de cores (dos mundos) utilizada tanto na imagem de Jack quanto na de Coraline aproxima ainda mais as duas produções a um mesmo autor-criador, pois, embora a produção de O Estranho Mundo de Jack seja de 1993, a imagem utilizada data de 2008 para o lançamento do Blu-Ray do filme, ou seja, um ano antes da imagem utilizada para a divulgação do filme Coraline e o Mundo Secreto. Ambas as imagens acentuam que as obras retratam dois mundos diferentes entre si: o do Halloween, escuro e sombrio, e o do Natal, claro e divertido (figura 1); e o Outro Mundo, com tons arroxeados e as três crianças fantasmas, e o mundo “real”, em tons claros e azulados, com a presença do gato – sem nome tanto na obra fílmica quanto no livro – (figura 2). Assim como Jack, que em seu mundo (do Halloween) e também no mundo do Natal, tem Zero, seu cachorro-fantasma como aliado e espécie de cão-guia na Noite de Natal, Coraline também tem o Gato (figura 2) como uma espécie de “gato-guia”, um aliado que a ajuda em ambos os mundos. A produção de Selick e Burton possui mais de 10 anos de diferença da de Selick e Gaiman. O filme sobre Jack foi produzido antes do filme sobre Coraline. Isso acentua a ideia de que o estilo burtoniano é consolidado e de que as produções feitas depois das dele sejam respostas a seus enunciados fílmicos, ainda mais, no caso, sendo o mesmo diretor de ambas as produções. A(s) (diferentes) amizade(s): Victor e Sparky, Mary e Max As duas produções, Frankenweenie e Mary e Max – Uma Amizade Diferente, não possuem a mesma direção, como as anteriores. No primeiro filme, tanto a direção como a produção é de Tim Burton. No segundo, elas cabem a Adam Elliot e Melanie Coombs. Outra distinção importante se refere às datas de lançamento das obras, pois, nesse caso, diferente do primeiro, a obra de Burton é posterior àquela em que é atribuída sua autoria. Esse é um fator importante e, também, intrigante, visto que, mesmo após quase dois anos de lançamento, uma produção é associada ao mesmo autor-criador devido às suas semelhanças no interior da produção. Atribuímos a confusão autoral ao estilo de Burton que, desde a primeira produção, revela traços recorrentes. A temática das duas obras se volta à amizade. Não qualquer amizade, mas uma amizade diferente, incomum, estranha. Difícil de ser mantida. No caso de Frankenweenie, entre Victor, um garoto diferente dos demais de sua idade, e Sparky, seu cachorro. Em Mary e Max, como indica o próprio título do filme, entre Mary, uma garotinha, também diferente dos demais à sua volta, e Max, um senhor tão solitário e desajustado socialmente quanto ela. A amizade de ambas as duplas se desenvolve com o passar do tempo, com os altos e baixos da vida. A superação de todos os obstáculos – desde trazer o amigo de volta à vida (caso de Victor), como manter contato por anos por meio de cartas (caso de Mary e Max) – é o mote valorativo de amizade das duas obras. Essa temática, ainda que ligada a outros conteúdos, mais melancólicos, é uma das semelhanças dos filmes, e o que coloca no mesmo patamar o estilo de criação das obras é o tom sombrio presente nas cenas, a técnica de stop-motion utilizada na produção, a humanidade colocada nos sujeitos desajustados, o dilema da inadaptação e não aceitação social, ou seja, a semelhança entre as criações de autores-criadores diferentes está presente na maneira (forma) como essas temáticas são tratadas (coloração, trilha, foco etc) no interior de cada uma delas. As animações em preto e branco e tons de sépia não são comuns atualmente, mas ambos os autores-criadores utilizam essa técnica em suas obras (figura 3 e 4). Esse é apenas um exemplo do quanto o trato (forma) dado à temática marca semelhanças entre os enunciados. Frankenweenie é produzido em sua totalidade em preto e branco, sem a presença de nenhuma outra coloração (figura 3). Mary e Max é produzido com uma mistura de preto e branco, nas cenas de Max, e tons de sépia, nas cenas de Mary (figura 4), com apenas alguns detalhes na cor vermelho nas cenas, como o chapéu de Max e a presilha de cabelo de Mary, como pode ser visto já nos enunciados dos cartazes dos dois filmes: Figura 3: Cartaz (Divulgação) – Spark à frente Figura 4: Cartaz (Divulgação) – Mary à frente e com Victor (e outras personagens) ao fundo. Max ao fundo. Como já dito, o estilo é visto sob o ângulo dos enunciados, pois é por meio deles que essas e outras manifestações são concretizadas. Não é possível considerar a produção de um autor-criador sem ser por meio das suas construções enunciativas. Tanto o enunciado de Burton responde ao de Elliot quanto a obra de Elliot responde ao filme de Burton que, ao longo da arquitetônica, desde o princípio, revelava e marca o seu estilo, diferenciado das produções até o momento existentes. As duas obras se aproximam não só pela temática, mas também por sua construção: além da semelhança visual das cenas, por exemplo, as obras também foram produzidas com a técnica de animação de stop-motion, assim como os dois filmes citados anteriormente. De acordo com Discini (2010), o estilo pode ser entendido como a recorrência de um modo de dizer. A utilização de uma mesma forma de produção dentro da arquitetônica de um autor-criador colabora para a consolidação do seu estilo. Ainda que outras produções sejam feitas anterior e posteriormente às dele, a utilização recorrente do tratamento que ele dá ao material e aos conteúdos temáticos de uma determinada produção indica a sua posição autoral, uma vez que qualquer enunciado, seja de qual caráter for, tem a valoração do seu autor-criador. Mundos “estranhos” e “secretos”: diferentes construções para (um mesmo) Tim Burton Independente de qual produção tenha vindo primeiro (as de Burton ou as demais aqui mencionadas), todas são associadas à mesma autoria. Entendê-las como associadas ao mesmo autor-criador significa compreendê-las, sob a visão dialógica, em suas peculiaridades e afinidades. Quaisquer enunciados postos lado a lado acabam por estabelecer uma relação, mesmo que sejam enunciados separados no tempo-espaço ou até pelo gênero enunciativo. Segundo Faraco (2009), confrontados no plano do sentido, os textos/discursos sempre revelarão diálogos. Para compreender essa relação, é necessário analisar o material em contato com a produção de sentidos, a fim de entender como os enunciados respondem ativamente uns aos outros, como é o caso das produções fílmicas aqui selecionadas. É o trato (a forma) que um tema recebe dentro de uma dada obra que aproxima o estilo de Burton ao de outros autores-criadores: tratar sujeitos estranhos, deslocados e anômalos em seus mundos, na busca de uma outra “realidade” paralela (como, no caso, de Jack e Coraline) ou na tentativa de construir e consolidar uma amizade, mesmo que sob circunstâncias pouco propícias (como é o caso de Victor e Sparky e Mary e Max), colocados, esses conteúdos, com semelhanças técnicas e de “assinatura” autoral (ironia ou melancolia, estranhamento pela coloração ou jogo de luz, câmera etc) que faz com que Burton seja considerado o criador de obras que não são suas, que se confundem com o seu jeito de produzir e tratar tais conteúdos. Tratar os temas do diferente, obscuro, marginalizado em um tempo e espaço delimitado, apartado do “tempo real”, um entre-lugar, mundos paralelos ao universo humano tal qual o conhecemos faz, também, com que ocorram associações indevidas com relação às autorias das obras. A arquitetônica de Burton conta com a presença de traços temáticos, formais e estilísticos constantes para a construção dos enunciados verbo-voco-visuais[7], tal como é o fílmico: o traço dos desenhos, os enredos voltados ao tema da rejeição e do desajuste, os universos e tempos suspensos, os sujeitos “estranhos” e à margem da sociedade etc. Tratar do não-pertencimento e do desejo dos protagonistas de serem aceitos socialmente e apresentar personagens recorrentes, com dilemas semelhantes, é parte constitutiva do seu estilo. Alguns autores-criadores possuem formas diferentes de tratar essas mesmas temáticas enquanto outros se aproximam de Burton, especialmente ao que se refere ao estilo e à forma (tanto na escolha da técnica quanto no modo de produção dos filmes). Assim, quando colocadas as produções de Burton em diálogo com outras, é possível ver, por um lado, a peculiaridade estilística de cada autor-criador e, por outro, a recorrência das posições valorativas de um (ou mais) autor(es)-criador(es) como princípio de criação que direciona o olhar do espectador para um estilo (já consolidado), no caso, o de Burton, também tomado como ícone de sucesso voltado, em especial, a um público bastante peculiar. As obras aqui tomadas brevemente como exemplos para pensarmos a questão da autoria possuem como ponto-comum que compõe os estilos, a forma do conteúdo (tema) recorrendo à forma composicional (técnica) que materializa, por meio não só da linguagem verbal, mas também da não-verbal (visual, vocal e musical), o projeto de dizer presente estilístico de um determinado autor-criador, que, se em alguns pontos se confundem, em outros, se distinguem, como uma digital. Desse ponto de vista, ao mesmo tempo em que, num primeiro olhar, pode-se confundir a autoria de determinadas obras, atribuindo-as a um outro criador, por outro, as filigranas do discurso explicitam marcas peculiares de autoria que tornam os enunciados únicos. Assim, por mais que Frankenweenie e Mary e Max apresentem semelhanças, assim como O Estranho Mundo de Jack e Coraline e o Mundo Secreto, podemos distinguir suas autorias e reconhecer o que é típico da arquitetônica burtoniana e o que não é. Mas essa é uma outra reflexão. Referências BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal – 6. ed. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem – 16. ed. – São Paulo: Hucitec, 2014. BAKHTIN, M. M. Questões de Literatura e Estética – 7. ed. – São Paulo: Hucitec, 2014. BRAIT, B.  (org.) “Estilo”. In: “Bakhtin: conceitos-chave” – 2. ed. – São Paulo: Contexto, 2005. pp. 79-102 DISCINI, N. “Bakhtin: contribuições para uma estilística discursiva”. In: Círculo de Bakhtin teoria inclassificável” – 1. ed. – Campinas: Mercado de Letras, 2010. pp. 115-148 FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin – São Paulo: Parábola Editorial, 2009. PAULA, L. de. Análise dialógica de discursos verbo-voco-visuais. Projeto trienal. Assis: UNESP, 2014. (Mimio, não publicado) [1] Graduanda em Letras – Português/Francês pela UNESP – FCL/Assis. nariiibeiro@gmail.com [2] Docente do curso de Letras da UNESP – Universidade Estadual Paulista, Câmpus de Assis; e do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da mesma Universidade, Câmpus de Araraquara. lucianedepaula1@gmail.com [3] Uma produção fílmica pode apresentar diversas vozes autorais, ou seja, autores-criadores diferentes podem exercer a função de diretor, produtor e roteirista. Não é comum que uma obra fílmica possua um único autor-criador para esses três segmentos e, sim, que ela seja “dividida”. Também é possível ocorrer que um mesmo autor-criador esteja presente em duas funções diferentes dentro de uma mesma obra, como é o caso de Burton em O Estranho Mundo de Jack, que está presente na produção e também no roteiro (ao lado de Denise Di Novi e Caroline Thompson). Essas diferentes autorias compõem e alteram a obra, formam um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes autorais dentro de uma única produção e marcam a criação de caráter iminentemente coletivo com as particularidades autorais. Assim, mesmo sendo as autorias dos filmes aqui analisados atribuídos a autores diferentes, tendo elas um diretor comum, alguns traços de produção são recorrentes ao estilo da direção, o que as aproxima, em parte. [4] Entendemos o autor-criador, nesse caso, como Burton, atuando na função de produtor e roteirista de O estranho mundo de Jack, também estendido (indevidamente) de Coraline e o Mundo Secreto. [5] Em tradução livre, O Pesadelo antes do Natal. [6] Em tradução livre, Coraline: uma Aventura muito Estranha para ser Contada. [7] De acordo com a pesquisa de Paula (2014), enunciados verbo-voco-visuais compreendem as três dimensões da linguagem: a verbal (textual), a vocal (entoação, ritmo e música) e a visual (coloração da cena, ângulo da câmera, técnica de filmagem, cenografia etc). #autorcriador #autoria #discurso #estilo

  • Questões sobre o estilo de um autor-criador: associações (in)devidas à arquitetônica de Tim Burton

    Natasha Ribeiro de Oliveira[1] Luciane de Paula[2] Muitas pessoas atribuem produções que não são do Tim Burton a ele. Isso se deve, em grande parte, ao seu estilo autoral de produção consolidado. Convenhamos que, num primeiro olhar, algumas produções são confundíveis, tamanhas semelhanças existem entre elas. A proposta desse texto é refletir sobre semelhanças e diferenças de estilos autorais a partir de ­Burton. Para isso, pensaremos nas relações entre O Estranho Mundo de Jack, uma produção com roteiro de Tim Burton e direção de Henry Selick, de 1993; e Coraline e o Mundo Secreto, uma produção com o roteiro de Neil Gaiman e direção de Henry Selick, de 2009; assim como entre Frankenweenie, uma produção burtoniana de 2012; e Mary e Max, de Adam Elliot, de 2010. A arquitetônica é aqui encarada como o projeto de dizer do autor-criador que possui um estilo peculiar de produção que o faz ser confundido com outros autores-criadores e suas produções, sejam posteriores ou anteriores às dele. O estilo possui caráter singular e, ao mesmo tempo, está associado ao coletivo, segundo a visão bakhtiniana, por ser um dos traços do gênero enunciativo produzido e por aproximar obras e autores-criadores, bem como relacioná-los com os interlocutores de suas obras. O estilo burtoniano de produção é caracterizado por personagens deslocadas, anômalas e à margem da sociedade. Temas como solidão e desajuste social diante dos modelos canônicos de enquadramento são recorrentes, assim como o sombrio, a morte e o obscuro como condições de luz, vida, bondade e humanização. De acordo com Faraco (2009), o autor-criador é diferente do autor-pessoa ainda que um se nutra e não exista sem o outro. Como criador, o autor possui função estético-formal engendradora da obra e materializa a relação valorativa encontrada dentro das suas produções. Os traços recorrentes, típicos de suas obras, marcam a sua assinatura autoral – o que podemos chamar de estilo autoral. De acordo com Brait (2005), o conceito bakhtiniano de estilo não pode ser separado e visto como isolado ao da ideia de enunciado. Essa indissociabilidade se deve por serem, os enunciados, os refletores das singularidades de fala dos sujeitos, que, por sua vez, possuem um estilo (maneira típica de se enunciar). A construção enunciativa não é criada em seu todo isoladamente. O sujeito e o enunciado não são apartados da sociedade, de um tempo e de um espaço específicos. Ainda que o estilo seja considerado marca autoral constituída de singularidade, ele produz respostas, tanto do próprio autor quanto de outros sujeitos. Respostas que se aproximam e que se distanciam do enunciado produzido, seja pelo posicionamento valorativo, que dá ao autor-criador a possibilidade de constituir o todo, seja pelo acabamento estético, que materializa as escolhas de composição, que resultam em determinada valoração. De acordo com o pensamento bakhtiniano, toda construção enunciativa possui caráter valorativo frente a outras produções enunciativas. Isso marca a respondibilidade do enunciado e colabora para a compreensão de que um estilo autoral não se define exclusivamente como individual, ainda que seja uma parte do ato singular. O traço de singularidade não exclui a marca social que caracteriza o estilo, uma vez que o autor-criador dá forma aos conteúdos temáticos de suas obras com seus traços específicos sem estar apartado da “realidade” social. O(s) mundo(s) de Jack e Coraline: do estranho ao secreto O Estranho Mundo de Jack, assim como Coraline e o Mundo Secreto, foram dirigidos pelo mesmo diretor, Heny Selick, mas partem de roteiristas e produtores diferentes[3]. O primeiro é de produção e roteiro (composto como um poema autoral – enunciado de um outro gênero) de Tim Burton, já o segundo possui o roteiro adaptado do livro “Coraline”, de Neil Gaiman. Embora ambas as direções sejam de uma mesma autoria, não é apenas a direção que os coloca como provenientes do mesmo autor-criador[4], afinal, elas não são atribuídas a Henry Selick (o que também não é indevido, uma vez que ele é o diretor das duas obras), mas, sim, a Burton, que possui uma forma específica de tratamento das temáticas já trabalhadas anteriormente por ele e também por outros autores-criadores. Em outras palavras, as produções que não são dele (mas associadas a ele) são confundidas com o seu estilo autoral não pela abordagem dos mesmos temas – o sombrio e o diferente – com um tom específico (a sátira, a leveza, a inversão etc). A temática do sombrio é recorrente em diversas criações, mas a forma e o estilo (em especial este último) é que caracterizam a voz do autor – o toque irônico ao abordar os temas dentro da “realidade”, a utilização de animações em stop-motion, a diversão com o que seria tomado como sério e degradante, entre outras características. Burton formaliza a temática do desajuste social a seu modo, a ponto de suas produções apresentarem recorrências que consolidaram o seu estilo autoral. A temática é uma das marcas possíveis de aproximação entre as obras, visto que ambas abordam o universo paralelo e o sujeito deslocado em suas composições. Entretanto, não é o bastante falarmos do tema como o fio condutor das associações de outras obras às de Burton, pois autores-criadores anteriores e posteriores a ele também abordaram e abordam esses temas em suas obras, de maneira semelhante ou não. A forma de abordar determinado tema dentro de uma produção é que faz com que o estilo autoral seja identificado por outros sujeitos. Isto é, a interação entre forma e tema (conteúdo) é o que caracteriza o estilo, o modo específico de produção do autor-criador. Assim como Jack, uma espécie de caveira-abóbora rei do Halloween vive em um mundo, num momento de insatisfação, e descobre a possibilidade de viver de outro modo e em um outro mundo, Coraline, uma garotinha de 13 anos que acaba de se mudar com seus pais (que não lhe dão atenção) para um lugar estranho, também descobre a possibilidade de um novo mundo, subterrâneo, diferente daquele em que vive e com outra relação com seus pais. Para Bakhtin, tratar do estilo significa, também e em princípio, por uma questão inclusive de perspectiva de linguagem e pelo método, estudar um enunciado em diálogo com outro, pois é no cotejo entre enunciados que se torna possível verificar peculiaridades e proximidades entre eles, considerando os gêneros discursivos em sua relativa estabilidade. De acordo com a episteme bakhtiniana, diálogo é interação entre singularidades discursivas que, em embate, constituem-se, na relação, como enunciados únicos e irrepetíveis. As duas obras, no original, não possuem a palavra “mundo” (world, em inglês), como parte integrante do seu título, respectivamente, “The Nightmare Before Christmas”[5] e “Coraline: an Adventure too Weird for Words”[6]. Entretanto, na tradução brasileira, as duas obras possuem a palavra “mundo” como parte de seus títulos: “O Estranho Mundo de Jack” e “Coraline e o Mundo Secreto”, respectivamente. Esse é apenas um exemplo de semelhança lexical que colabora para uma noção de que as obras estão centradas em universos paralelos, encarados, aqui, como parte da temática das tramas, mas também como elementos para pensarmos em aspectos comuns entre as duas obras, que levam o espectador a associar a produção de um filme com o outro. A escolha do léxico em uma determinada construção verbal, seja ela qual for, não é fortuita, dada ao acaso e vista como “coincidência”. Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2014), diz ser o signo uma criação de função ideológica precisa. Os dois protagonistas de cada produção (Jack e Coraline) face aos dois mundos paralelos em que convivem (ver figura 1 e figura 2), concretizados pelo verbal e pelo visual, também apresentam semelhanças: Figura 1: Cartaz (edição de colecionador) – Jack Figura 2: Cartaz (Divulgação) – Coraline entre entre o mundo do Halloween e o do Natal o mundo “secreto” e o “real”. A distinção de cores (dos mundos) utilizada tanto na imagem de Jack quanto na de Coraline aproxima ainda mais as duas produções a um mesmo autor-criador, pois, embora a produção de O Estranho Mundo de Jack seja de 1993, a imagem utilizada data de 2008 para o lançamento do Blu-Ray do filme, ou seja, um ano antes da imagem utilizada para a divulgação do filme Coraline e o Mundo Secreto. Ambas as imagens acentuam que as obras retratam dois mundos diferentes entre si: o do Halloween, escuro e sombrio, e o do Natal, claro e divertido (figura 1); e o Outro Mundo, com tons arroxeados e as três crianças fantasmas, e o mundo “real”, em tons claros e azulados, com a presença do gato – sem nome tanto na obra fílmica quanto no livro – (figura 2). Assim como Jack, que em seu mundo (do Halloween) e também no mundo do Natal, tem Zero, seu cachorro-fantasma como aliado e espécie de cão-guia na Noite de Natal, Coraline também tem o Gato (figura 2) como uma espécie de “gato-guia”, um aliado que a ajuda em ambos os mundos. A produção de Selick e Burton possui mais de 10 anos de diferença da de Selick e Gaiman. O filme sobre Jack foi produzido antes do filme sobre Coraline. Isso acentua a ideia de que o estilo burtoniano é consolidado e de que as produções feitas depois das dele sejam respostas a seus enunciados fílmicos, ainda mais, no caso, sendo o mesmo diretor de ambas as produções. A(s) (diferentes) amizade(s): Victor e Sparky, Mary e Max As duas produções, Frankenweenie e Mary e Max – Uma Amizade Diferente, não possuem a mesma direção, como as anteriores. No primeiro filme, tanto a direção como a produção é de Tim Burton. No segundo, elas cabem a Adam Elliot e Melanie Coombs. Outra distinção importante se refere às datas de lançamento das obras, pois, nesse caso, diferente do primeiro, a obra de Burton é posterior àquela em que é atribuída sua autoria. Esse é um fator importante e, também, intrigante, visto que, mesmo após quase dois anos de lançamento, uma produção é associada ao mesmo autor-criador devido às suas semelhanças no interior da produção. Atribuímos a confusão autoral ao estilo de Burton que, desde a primeira produção, revela traços recorrentes. A temática das duas obras se volta à amizade. Não qualquer amizade, mas uma amizade diferente, incomum, estranha. Difícil de ser mantida. No caso de Frankenweenie, entre Victor, um garoto diferente dos demais de sua idade, e Sparky, seu cachorro. Em Mary e Max, como indica o próprio título do filme, entre Mary, uma garotinha, também diferente dos demais à sua volta, e Max, um senhor tão solitário e desajustado socialmente quanto ela. A amizade de ambas as duplas se desenvolve com o passar do tempo, com os altos e baixos da vida. A superação de todos os obstáculos – desde trazer o amigo de volta à vida (caso de Victor), como manter contato por anos por meio de cartas (caso de Mary e Max) – é o mote valorativo de amizade das duas obras. Essa temática, ainda que ligada a outros conteúdos, mais melancólicos, é uma das semelhanças dos filmes, e o que coloca no mesmo patamar o estilo de criação das obras é o tom sombrio presente nas cenas, a técnica de stop-motion utilizada na produção, a humanidade colocada nos sujeitos desajustados, o dilema da inadaptação e não aceitação social, ou seja, a semelhança entre as criações de autores-criadores diferentes está presente na maneira (forma) como essas temáticas são tratadas (coloração, trilha, foco etc) no interior de cada uma delas. As animações em preto e branco e tons de sépia não são comuns atualmente, mas ambos os autores-criadores utilizam essa técnica em suas obras (figura 3 e 4). Esse é apenas um exemplo do quanto o trato (forma) dado à temática marca semelhanças entre os enunciados. Frankenweenie é produzido em sua totalidade em preto e branco, sem a presença de nenhuma outra coloração (figura 3). Mary e Max é produzido com uma mistura de preto e branco, nas cenas de Max, e tons de sépia, nas cenas de Mary (figura 4), com apenas alguns detalhes na cor vermelho nas cenas, como o chapéu de Max e a presilha de cabelo de Mary, como pode ser visto já nos enunciados dos cartazes dos dois filmes: Figura 3: Cartaz (Divulgação) – Spark à frente Figura 4: Cartaz (Divulgação) – Mary à frente e com Victor (e outras personagens) ao fundo. Max ao fundo. Como já dito, o estilo é visto sob o ângulo dos enunciados, pois é por meio deles que essas e outras manifestações são concretizadas. Não é possível considerar a produção de um autor-criador sem ser por meio das suas construções enunciativas. Tanto o enunciado de Burton responde ao de Elliot quanto a obra de Elliot responde ao filme de Burton que, ao longo da arquitetônica, desde o princípio, revelava e marca o seu estilo, diferenciado das produções até o momento existentes. As duas obras se aproximam não só pela temática, mas também por sua construção: além da semelhança visual das cenas, por exemplo, as obras também foram produzidas com a técnica de animação de stop-motion, assim como os dois filmes citados anteriormente. De acordo com Discini (2010), o estilo pode ser entendido como a recorrência de um modo de dizer. A utilização de uma mesma forma de produção dentro da arquitetônica de um autor-criador colabora para a consolidação do seu estilo. Ainda que outras produções sejam feitas anterior e posteriormente às dele, a utilização recorrente do tratamento que ele dá ao material e aos conteúdos temáticos de uma determinada produção indica a sua posição autoral, uma vez que qualquer enunciado, seja de qual caráter for, tem a valoração do seu autor-criador. Mundos “estranhos” e “secretos”: diferentes construções para (um mesmo) Tim Burton Independente de qual produção tenha vindo primeiro (as de Burton ou as demais aqui mencionadas), todas são associadas à mesma autoria. Entendê-las como associadas ao mesmo autor-criador significa compreendê-las, sob a visão dialógica, em suas peculiaridades e afinidades. Quaisquer enunciados postos lado a lado acabam por estabelecer uma relação, mesmo que sejam enunciados separados no tempo-espaço ou até pelo gênero enunciativo. Segundo Faraco (2009), confrontados no plano do sentido, os textos/discursos sempre revelarão diálogos. Para compreender essa relação, é necessário analisar o material em contato com a produção de sentidos, a fim de entender como os enunciados respondem ativamente uns aos outros, como é o caso das produções fílmicas aqui selecionadas. É o trato (a forma) que um tema recebe dentro de uma dada obra que aproxima o estilo de Burton ao de outros autores-criadores: tratar sujeitos estranhos, deslocados e anômalos em seus mundos, na busca de uma outra “realidade” paralela (como, no caso, de Jack e Coraline) ou na tentativa de construir e consolidar uma amizade, mesmo que sob circunstâncias pouco propícias (como é o caso de Victor e Sparky e Mary e Max), colocados, esses conteúdos, com semelhanças técnicas e de “assinatura” autoral (ironia ou melancolia, estranhamento pela coloração ou jogo de luz, câmera etc) que faz com que Burton seja considerado o criador de obras que não são suas, que se confundem com o seu jeito de produzir e tratar tais conteúdos. Tratar os temas do diferente, obscuro, marginalizado em um tempo e espaço delimitado, apartado do “tempo real”, um entre-lugar, mundos paralelos ao universo humano tal qual o conhecemos faz, também, com que ocorram associações indevidas com relação às autorias das obras. A arquitetônica de Burton conta com a presença de traços temáticos, formais e estilísticos constantes para a construção dos enunciados verbo-voco-visuais[7], tal como é o fílmico: o traço dos desenhos, os enredos voltados ao tema da rejeição e do desajuste, os universos e tempos suspensos, os sujeitos “estranhos” e à margem da sociedade etc. Tratar do não-pertencimento e do desejo dos protagonistas de serem aceitos socialmente e apresentar personagens recorrentes, com dilemas semelhantes, é parte constitutiva do seu estilo. Alguns autores-criadores possuem formas diferentes de tratar essas mesmas temáticas enquanto outros se aproximam de Burton, especialmente ao que se refere ao estilo e à forma (tanto na escolha da técnica quanto no modo de produção dos filmes). Assim, quando colocadas as produções de Burton em diálogo com outras, é possível ver, por um lado, a peculiaridade estilística de cada autor-criador e, por outro, a recorrência das posições valorativas de um (ou mais) autor(es)-criador(es) como princípio de criação que direciona o olhar do espectador para um estilo (já consolidado), no caso, o de Burton, também tomado como ícone de sucesso voltado, em especial, a um público bastante peculiar. As obras aqui tomadas brevemente como exemplos para pensarmos a questão da autoria possuem como ponto-comum que compõe os estilos, a forma do conteúdo (tema) recorrendo à forma composicional (técnica) que materializa, por meio não só da linguagem verbal, mas também da não-verbal (visual, vocal e musical), o projeto de dizer presente estilístico de um determinado autor-criador, que, se em alguns pontos se confundem, em outros, se distinguem, como uma digital. Desse ponto de vista, ao mesmo tempo em que, num primeiro olhar, pode-se confundir a autoria de determinadas obras, atribuindo-as a um outro criador, por outro, as filigranas do discurso explicitam marcas peculiares de autoria que tornam os enunciados únicos. Assim, por mais que Frankenweenie e Mary e Max apresentem semelhanças, assim como O Estranho Mundo de Jack e Coraline e o Mundo Secreto, podemos distinguir suas autorias e reconhecer o que é típico da arquitetônica burtoniana e o que não é. Mas essa é uma outra reflexão. Referências BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal – 6. ed. – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem – 16. ed. – São Paulo: Hucitec, 2014. BAKHTIN, M. M. Questões de Literatura e Estética – 7. ed. – São Paulo: Hucitec, 2014. BRAIT, B.  (org.) “Estilo”. In: “Bakhtin: conceitos-chave” – 2. ed. – São Paulo: Contexto, 2005. pp. 79-102 DISCINI, N. “Bakhtin: contribuições para uma estilística discursiva”. In: Círculo de Bakhtin teoria inclassificável” – 1. ed. – Campinas: Mercado de Letras, 2010. pp. 115-148 FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin – São Paulo: Parábola Editorial, 2009. PAULA, L. de. Análise dialógica de discursos verbo-voco-visuais. Projeto trienal. Assis: UNESP, 2014. (Mimio, não publicado) [1] Graduanda em Letras – Português/Francês pela UNESP – FCL/Assis. nariiibeiro@gmail.com [2] Docente do curso de Letras da UNESP – Universidade Estadual Paulista, Câmpus de Assis; e do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da mesma Universidade, Câmpus de Araraquara. lucianedepaula1@gmail.com [3] Uma produção fílmica pode apresentar diversas vozes autorais, ou seja, autores-criadores diferentes podem exercer a função de diretor, produtor e roteirista. Não é comum que uma obra fílmica possua um único autor-criador para esses três segmentos e, sim, que ela seja “dividida”. Também é possível ocorrer que um mesmo autor-criador esteja presente em duas funções diferentes dentro de uma mesma obra, como é o caso de Burton em O Estranho Mundo de Jack, que está presente na produção e também no roteiro (ao lado de Denise Di Novi e Caroline Thompson). Essas diferentes autorias compõem e alteram a obra, formam um conjunto múltiplo e heterogêneo de vozes autorais dentro de uma única produção e marcam a criação de caráter iminentemente coletivo com as particularidades autorais. Assim, mesmo sendo as autorias dos filmes aqui analisados atribuídos a autores diferentes, tendo elas um diretor comum, alguns traços de produção são recorrentes ao estilo da direção, o que as aproxima, em parte. [4] Entendemos o autor-criador, nesse caso, como Burton, atuando na função de produtor e roteirista de O estranho mundo de Jack, também estendido (indevidamente) de Coraline e o Mundo Secreto. [5] Em tradução livre, O Pesadelo antes do Natal. [6] Em tradução livre, Coraline: uma Aventura muito Estranha para ser Contada. [7] De acordo com a pesquisa de Paula (2014), enunciados verbo-voco-visuais compreendem as três dimensões da linguagem: a verbal (textual), a vocal (entoação, ritmo e música) e a visual (coloração da cena, ângulo da câmera, técnica de filmagem, cenografia etc). #autorcriador #autoria #discurso #estilo

  • Construção do filme musical em The Rocky Horror Picture Show

    Nicole Mioni Serni [1] O presente texto pensa a produção cinematográfica, e mais especificamente, a do musical, a partir dos estudos do Círculo de Bakhtin, Medvedev, Volochinov, de forma a considerar o filme musical como gênero discursivo. As obras do Círculo se debruçam sobre objetos como a literatura, por exemplo, em especial, o romance. Porém, neste texto, ao se pensar o filme sob a ótica de Bakhtin toma-se uma posição de análise não tão usual, mas que se justifica ao se refletir sobre os conceitos gerados pelo filósofo russo. Ainda que seus objetos de análise fossem diferentes, ideias como diálogo, gênero discursivo, entre outras, fomentam discussões e possibilitam análises de artes diversas, entre elas, o cinema. A arte do cinema possui suas maneiras de sugerir, através da colocação da câmera, do enquadramento e da interpretação, fenômenos como intimidade ou distância, companheirismo e dominação, em suma, a dinâmica social e pessoal que se realiza entre interlocutores. (STAM, 1992, p.63) O filme musical, objeto do presente estudo, possui, como gênero discursivo, particularidades que se repetem, que permitem que este seja reconhecido como musical, tais como o canto (aqui será pensada a canção) e a dança (ou coreografia), por exemplo. Essas marcas possibilitam o reconhecimento do gênero, pois, mais do que estarem presentes no enunciado, elas constituem o filme musical. Há, no entanto, também as características inovadoras, únicas a cada novo exemplar desse gênero. Não existe, então, uma receita pronta, com exigências fixas, em que todo gênero deve se encaixar, mas sim formas relativamente estáveis, em que o gênero apresenta particularidades que se repetem ao mesmo tempo em que apresenta novas possibilidades de construção arquitetônicas. Sendo todo enunciado, conforme o Círculo, único e irrepetível, cada exemplar de um devido gênero sempre apresenta, concomitantemente, traços novos (instabilidades) e recorrentes (estabilidades). O musical teve forte influência do sapateado, desde seus primórdios. Fred Astaire, já nos anos 30 (considerando que os primeiros filmes musicais surgiram no final da década de 20, a década de 30 seria também o início da produção de filmes desse gênero), atuava em filmes com papeis que sempre apareciam com a dança de sapateado. Logo surgiu também Gene Kelly, Ginger Rogers, entre outros, que permaneceram reforçando o sapateado nos filmes musicais. Pode-se dizer que, inicialmente, uma das principais características dessas obras cinematográficas era a dança de sapateado, por exemplo. A música sustentava a dança. No entanto, o exemplar do gênero discutido a seguir se constitui justamente de forma oposta aos clássicos com danças como o sapateado, sendo um filme musical. Bom exemplo para ilustrar o quanto um gênero pode se transformar sem deixar de ser aquele gênero (o quanto o filme musical, em sua instabilidade-estável, caracteriza-se como musical). Tendo o sapateado como um exemplo de característica comum do musical, pode-se antecipar que o filme The Rocky Horror Picture Show (1975) se constrói de uma forma especialmente instável e diferente, não esperada, para o gênero. Se, por um lado, há um acabamento previsto pelo gênero, por outro, há um acabamento inovador, voltado ao acontecimento e que caracteriza o filme como evento único na cadeia histórica do gênero musical, pela construção de seu enunciado particular que inaugura uma outra maneira de se pensar o musical. O previsto para um filme musical seria, a partir dos considerados “clássicos”, a dança do sapateado e os temas de narrativas mais leves. Contudo, em The Rocky Horror Picture Show tanto o tema quanto a construção das personagens fogem ao que se consideraria como previsto para o gênero. The Rocky Horror Picture Show carrega traços fortes de humor e sátira, ao ressignificar marcas típicas de filmes de terror e ficção no interior de uma atmosfera que foge da oficialidade. No filme, a personagem do cientista, detentor do conhecimento, genial, criador de inovações, é interpretado por uma travesti, que canta, dança e se porta de formas que ridicularizam a imagem de um cientista “padrão”. Em sua genialidade,  cria um homem de físico musculoso, pele bronzeada e cabelos loiros. Seu Frankenstein é a materialização estereotipada de um modelo de imagem de ideal sexual. Fig. 1 Cena da abertura do filme Fig. 2 Cena com performance da personagem cientista/travesti O início do filme já traz uma canção. Uma boca gigante, em um fundo preto, canta uma letra em que são citadas as personagens do filme que está para se iniciar. E ao longo da obra, as canções surgem fora de palcos e são iniciadas pelas personagens como falas cantadas próprias à trama, incorporadas pelas personagens. Há também coreografia ao longo do filme e as interpretações das canções no interior do castelo (em que a maior parte do filme se passa) tomam rumos fantásticos e aparentemente fora da realidade. Na cena[2] específica em que é interpretada a canção Sweet Transvestite os movimentos da dança de Dr. Frank se concentram principalmente nas pernas e nos quadris, de forma sedutora e sensual. Esta primeira performance já transparece a personalidade da personagem em questão, pois assim como seus movimentos, Dr. Frank seduz os recém-chegados Brett e Janet. A narrativa em si é uma história que busca fugir ao oficial. Logo, as canções, suas coreografias e letras não seguem um modelo canônico do gênero musical, como o pop rock das canções acompanhado por danças no mesmo estilo. Enquanto os exemplos canônicos de filmes musicais até então se construíam por meio do sapateado e danças clássicas The Rocky Horror Picture Show é constituído por canções de rock e com coreografias que ao mesmo tempo que remetem ao lado sexual também “brincam” com o tom de sátira, por fazer referência a filmes de ficção de uma forma cômica. Algumas questões levantadas por Stam, voltadas ao gênero fílmico de forma geral, podem contribuir para refletir sobre esta obra musical: O filme assume uma atitude distante, ou uma espécie de intimidade? Pressupõe um interlocutor de determinado sexo ou classe, e qual é sua atitude em relação a esse interlocutor imaginado? Quais são os pressupostos do filme em relação a nosso conhecimento, ou ideologia? Em termos retóricos, ele seduz, admoesta, convence, encanta, colabora, implora ou intimida? […] Qual a relação entre os sujeitos falantes dos filmes, em termos de posição discursiva, grau de intimidade, relação com outros personagens? Qual a sua relação implícita com o autor do texto, ou com o espectador, nos mesmos termos? E como se transmitem todas essas relações através da entonação? (1992, p.63) The Rocky Horror Picture Show se insere na discussão gerada a partir dos questionamentos de Stam, pois é um exemplar do filme musical que possui um conteúdo ou tema que se difere do recorrente na construção do gênero ao longo dos anos. A forma, a construção desse enunciado em questão também é diferente, o que se une a um estilo único. O espectador imaginado se encontra em um padrão da oficialidade e compreende que certos papéis ou lugares na sociedade são tomados por devidos sujeitos. Esses lugares sociais e posições ideológicas podem ser pensados a partir dos estudos do Círculo, uma vez que, para Bakhtin, todo signo é ideológico e o enunciado é o lugar da luta de classes. Pode-se compreender que existem valores que permeam os signos e os enunciados. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem encontra-se a discussão sobre essa concepção: “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo”. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.31). Todo enunciado está ligado a uma realidade, a um contexto histórico e social, mas, além dessa ligação, encontra-se sempre uma marca ideológica em cada signo da interação verbal. Segundo o autor, “Compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signo.” (idem, p. 34). Para que a ideologia se materialize, ela necessita de um signo, pois ele semiotiza a vida. Os valores colocados no filme são contrários aos esperado, o que causa estranhamento e entra em embate com a construção vigente ou “oficial”. As personagens exemplificam bem a inversão mencionada. A travesti, sujeito excluído socialmente (basta lembrarmo-nos da Geni de “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, por exemplo), possui, na trama do musical, um papel centra, de dominação. O tema também pode ser pensado de forma diferente do relacionado ao conteúdo do gênero. Afinal, em algumas obras do Círculo, significação e tema aparecem com discussões diferentes, como afirma Cereja, A significação é um estágio inferior da capacidade de significar, e o tema, um estágio superior da mesma capacidade. A significação existe como capacidade potencial de construir sentido, própria dos signos linguísticos e das formas gramaticias da língua. É o sentido que esses elementos historicamente assumem, em virtude de seus usos reiterados. (2005, p.202) Enquanto a significação é o sentido criado historicamente, o tema é “único e irrepetível. Participam da construção do tema não apenas os elementos estáveis da significação, mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação.” (idem). O conceito de tema e significação pode ser pensado em The Rocky Horror Picture Show ao se considerar o signo, por exemplo, do cientista. Na construção da personagem de Frank (a travesti) o signo cientista é reconstruído, ou seja, o tema modifica o signo, deslocando-o do padrão. O esperado de um cientista historicamente, conforme outros enunciados, é o de seriedade ou maluquice , dominador da lógica e da razão. O lugar dominante pode ser estabelecido no filme musical em questão também pela entoação da personagem que, ao interpretar as canções ao longo do filme, coloca a voz de maneira firme e sedutora ao mesmo tempo. Na performance da canção Sweet Transvestite, por exemplo, a personagem da travesti passeia entre notas mais agudas e graves, desenho sonoro e pertencente à melodia da canção que marcam e confirmam, por sua vez, a posição de transexual. Colocar uma travesti no papel central da trama, como um cientista, refrata questões presentes historicamente na sociedade. No lugar de privilégio e dominação está, em The Rocky Horror Picture Show, um sujeito que, socialmente, não ocupa um lugar de destaque ou reconhecimento. A arte, no caso, a obra fílmica, semiotiza valores ao representar o que há na vida. As considerações feitas acima sobre algumas tomadas de The Rocky Horror Picture Show não têm como objetivo recortar uma cena sem considerá-la no todo, mas sim trazê-la como exemplo significativo do enunciado em sua totalidade, sem esgotar a espiral dialógica de relações possíveis a partir do exemplar de filme musical. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2011. ___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993. ___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005. ___. (Org.). Bakhtin: Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2006. CEREJA, W. Significação e tema. In: Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Cpntexto, 2005. CUNHA, Paulo Roberto Ferreira da. O Cinema Musical Norte-americano: Gênero, Histórias e Estratégias da Indústria do Entretenimento. São Paulo: Annablume, 2012. MEDVIEDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012. SHARMANM J. The Rock Horror Picture Show. Reino Unido/Estados Unidos: 20th Century Fox, 1975. STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução de Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992 (Série Temas, Vol. 20). [1] Estudante de doutorado do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Campus de Araraquara. Desenvolve pesquisa sobre enunciados fílmicos sob a orientação da professora Luciane de Paula. [2] Vídeo da cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZCZDWZFtyWY #cinema #filmemusical #gênero #verbovocovisual

  • Construção do filme musical em The Rocky Horror Picture Show

    Nicole Mioni Serni [1] O presente texto pensa a produção cinematográfica, e mais especificamente, a do musical, a partir dos estudos do Círculo de Bakhtin, Medvedev, Volochinov, de forma a considerar o filme musical como gênero discursivo. As obras do Círculo se debruçam sobre objetos como a literatura, por exemplo, em especial, o romance. Porém, neste texto, ao se pensar o filme sob a ótica de Bakhtin toma-se uma posição de análise não tão usual, mas que se justifica ao se refletir sobre os conceitos gerados pelo filósofo russo. Ainda que seus objetos de análise fossem diferentes, ideias como diálogo, gênero discursivo, entre outras, fomentam discussões e possibilitam análises de artes diversas, entre elas, o cinema. A arte do cinema possui suas maneiras de sugerir, através da colocação da câmera, do enquadramento e da interpretação, fenômenos como intimidade ou distância, companheirismo e dominação, em suma, a dinâmica social e pessoal que se realiza entre interlocutores. (STAM, 1992, p.63) O filme musical, objeto do presente estudo, possui, como gênero discursivo, particularidades que se repetem, que permitem que este seja reconhecido como musical, tais como o canto (aqui será pensada a canção) e a dança (ou coreografia), por exemplo. Essas marcas possibilitam o reconhecimento do gênero, pois, mais do que estarem presentes no enunciado, elas constituem o filme musical. Há, no entanto, também as características inovadoras, únicas a cada novo exemplar desse gênero. Não existe, então, uma receita pronta, com exigências fixas, em que todo gênero deve se encaixar, mas sim formas relativamente estáveis, em que o gênero apresenta particularidades que se repetem ao mesmo tempo em que apresenta novas possibilidades de construção arquitetônicas. Sendo todo enunciado, conforme o Círculo, único e irrepetível, cada exemplar de um devido gênero sempre apresenta, concomitantemente, traços novos (instabilidades) e recorrentes (estabilidades). O musical teve forte influência do sapateado, desde seus primórdios. Fred Astaire, já nos anos 30 (considerando que os primeiros filmes musicais surgiram no final da década de 20, a década de 30 seria também o início da produção de filmes desse gênero), atuava em filmes com papeis que sempre apareciam com a dança de sapateado. Logo surgiu também Gene Kelly, Ginger Rogers, entre outros, que permaneceram reforçando o sapateado nos filmes musicais. Pode-se dizer que, inicialmente, uma das principais características dessas obras cinematográficas era a dança de sapateado, por exemplo. A música sustentava a dança. No entanto, o exemplar do gênero discutido a seguir se constitui justamente de forma oposta aos clássicos com danças como o sapateado, sendo um filme musical. Bom exemplo para ilustrar o quanto um gênero pode se transformar sem deixar de ser aquele gênero (o quanto o filme musical, em sua instabilidade-estável, caracteriza-se como musical). Tendo o sapateado como um exemplo de característica comum do musical, pode-se antecipar que o filme The Rocky Horror Picture Show (1975) se constrói de uma forma especialmente instável e diferente, não esperada, para o gênero. Se, por um lado, há um acabamento previsto pelo gênero, por outro, há um acabamento inovador, voltado ao acontecimento e que caracteriza o filme como evento único na cadeia histórica do gênero musical, pela construção de seu enunciado particular que inaugura uma outra maneira de se pensar o musical. O previsto para um filme musical seria, a partir dos considerados “clássicos”, a dança do sapateado e os temas de narrativas mais leves. Contudo, em The Rocky Horror Picture Show tanto o tema quanto a construção das personagens fogem ao que se consideraria como previsto para o gênero. The Rocky Horror Picture Show carrega traços fortes de humor e sátira, ao ressignificar marcas típicas de filmes de terror e ficção no interior de uma atmosfera que foge da oficialidade. No filme, a personagem do cientista, detentor do conhecimento, genial, criador de inovações, é interpretado por uma travesti, que canta, dança e se porta de formas que ridicularizam a imagem de um cientista “padrão”. Em sua genialidade,  cria um homem de físico musculoso, pele bronzeada e cabelos loiros. Seu Frankenstein é a materialização estereotipada de um modelo de imagem de ideal sexual. Fig. 1 Cena da abertura do filme Fig. 2 Cena com performance da personagem cientista/travesti O início do filme já traz uma canção. Uma boca gigante, em um fundo preto, canta uma letra em que são citadas as personagens do filme que está para se iniciar. E ao longo da obra, as canções surgem fora de palcos e são iniciadas pelas personagens como falas cantadas próprias à trama, incorporadas pelas personagens. Há também coreografia ao longo do filme e as interpretações das canções no interior do castelo (em que a maior parte do filme se passa) tomam rumos fantásticos e aparentemente fora da realidade. Na cena[2] específica em que é interpretada a canção Sweet Transvestite os movimentos da dança de Dr. Frank se concentram principalmente nas pernas e nos quadris, de forma sedutora e sensual. Esta primeira performance já transparece a personalidade da personagem em questão, pois assim como seus movimentos, Dr. Frank seduz os recém-chegados Brett e Janet. A narrativa em si é uma história que busca fugir ao oficial. Logo, as canções, suas coreografias e letras não seguem um modelo canônico do gênero musical, como o pop rock das canções acompanhado por danças no mesmo estilo. Enquanto os exemplos canônicos de filmes musicais até então se construíam por meio do sapateado e danças clássicas The Rocky Horror Picture Show é constituído por canções de rock e com coreografias que ao mesmo tempo que remetem ao lado sexual também “brincam” com o tom de sátira, por fazer referência a filmes de ficção de uma forma cômica. Algumas questões levantadas por Stam, voltadas ao gênero fílmico de forma geral, podem contribuir para refletir sobre esta obra musical: O filme assume uma atitude distante, ou uma espécie de intimidade? Pressupõe um interlocutor de determinado sexo ou classe, e qual é sua atitude em relação a esse interlocutor imaginado? Quais são os pressupostos do filme em relação a nosso conhecimento, ou ideologia? Em termos retóricos, ele seduz, admoesta, convence, encanta, colabora, implora ou intimida? […] Qual a relação entre os sujeitos falantes dos filmes, em termos de posição discursiva, grau de intimidade, relação com outros personagens? Qual a sua relação implícita com o autor do texto, ou com o espectador, nos mesmos termos? E como se transmitem todas essas relações através da entonação? (1992, p.63) The Rocky Horror Picture Show se insere na discussão gerada a partir dos questionamentos de Stam, pois é um exemplar do filme musical que possui um conteúdo ou tema que se difere do recorrente na construção do gênero ao longo dos anos. A forma, a construção desse enunciado em questão também é diferente, o que se une a um estilo único. O espectador imaginado se encontra em um padrão da oficialidade e compreende que certos papéis ou lugares na sociedade são tomados por devidos sujeitos. Esses lugares sociais e posições ideológicas podem ser pensados a partir dos estudos do Círculo, uma vez que, para Bakhtin, todo signo é ideológico e o enunciado é o lugar da luta de classes. Pode-se compreender que existem valores que permeam os signos e os enunciados. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem encontra-se a discussão sobre essa concepção: “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo”. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.31). Todo enunciado está ligado a uma realidade, a um contexto histórico e social, mas, além dessa ligação, encontra-se sempre uma marca ideológica em cada signo da interação verbal. Segundo o autor, “Compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signo.” (idem, p. 34). Para que a ideologia se materialize, ela necessita de um signo, pois ele semiotiza a vida. Os valores colocados no filme são contrários aos esperado, o que causa estranhamento e entra em embate com a construção vigente ou “oficial”. As personagens exemplificam bem a inversão mencionada. A travesti, sujeito excluído socialmente (basta lembrarmo-nos da Geni de “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, por exemplo), possui, na trama do musical, um papel centra, de dominação. O tema também pode ser pensado de forma diferente do relacionado ao conteúdo do gênero. Afinal, em algumas obras do Círculo, significação e tema aparecem com discussões diferentes, como afirma Cereja, A significação é um estágio inferior da capacidade de significar, e o tema, um estágio superior da mesma capacidade. A significação existe como capacidade potencial de construir sentido, própria dos signos linguísticos e das formas gramaticias da língua. É o sentido que esses elementos historicamente assumem, em virtude de seus usos reiterados. (2005, p.202) Enquanto a significação é o sentido criado historicamente, o tema é “único e irrepetível. Participam da construção do tema não apenas os elementos estáveis da significação, mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação.” (idem). O conceito de tema e significação pode ser pensado em The Rocky Horror Picture Show ao se considerar o signo, por exemplo, do cientista. Na construção da personagem de Frank (a travesti) o signo cientista é reconstruído, ou seja, o tema modifica o signo, deslocando-o do padrão. O esperado de um cientista historicamente, conforme outros enunciados, é o de seriedade ou maluquice , dominador da lógica e da razão. O lugar dominante pode ser estabelecido no filme musical em questão também pela entoação da personagem que, ao interpretar as canções ao longo do filme, coloca a voz de maneira firme e sedutora ao mesmo tempo. Na performance da canção Sweet Transvestite, por exemplo, a personagem da travesti passeia entre notas mais agudas e graves, desenho sonoro e pertencente à melodia da canção que marcam e confirmam, por sua vez, a posição de transexual. Colocar uma travesti no papel central da trama, como um cientista, refrata questões presentes historicamente na sociedade. No lugar de privilégio e dominação está, em The Rocky Horror Picture Show, um sujeito que, socialmente, não ocupa um lugar de destaque ou reconhecimento. A arte, no caso, a obra fílmica, semiotiza valores ao representar o que há na vida. As considerações feitas acima sobre algumas tomadas de The Rocky Horror Picture Show não têm como objetivo recortar uma cena sem considerá-la no todo, mas sim trazê-la como exemplo significativo do enunciado em sua totalidade, sem esgotar a espiral dialógica de relações possíveis a partir do exemplar de filme musical. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2011. ___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993. ___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005. ___. (Org.). Bakhtin: Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2006. CEREJA, W. Significação e tema. In: Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Cpntexto, 2005. CUNHA, Paulo Roberto Ferreira da. O Cinema Musical Norte-americano: Gênero, Histórias e Estratégias da Indústria do Entretenimento. São Paulo: Annablume, 2012. MEDVIEDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012. SHARMANM J. The Rock Horror Picture Show. Reino Unido/Estados Unidos: 20th Century Fox, 1975. STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução de Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992 (Série Temas, Vol. 20). [1] Estudante de doutorado do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Campus de Araraquara. Desenvolve pesquisa sobre enunciados fílmicos sob a orientação da professora Luciane de Paula. [2] Vídeo da cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZCZDWZFtyWY #cinema #filmemusical #gênero #verbovocovisual

  • Refrações de Elena: a construção verbo-voco-visual dos sujeitos

    Tatiele Novais Silva[1] Luciane de Paula[2] Buscar a si é um incessante ato do ser humano. Essa busca faz parte de pequenas ações cotidianas dentro de um evento particular. Essas ações constroem o sujeito e se tornam parte dele. Buscar a si é buscar também ao outro/outros que nos constitui/em e que faz/em parte de nossas vivências, tendo participação nos atos e eventos da arquitetônica do mundo vivido. O documentário Elena (2012) retrata a trajetória de Petra Costa e reconstitui a vida da sua irmã mais velha, Elena, sendo a construção do documentário de autoria da própria Petra. Este texto não tem como intenção analisar todos os aspectos que compõem a obra fílmica, mas pretende esboçar alguns elementos referentes à composição do gênero e do sujeito a partir da ilustração particular do enunciado citado. A narração do documentário tem como personagem principal Elena, uma atriz que estudou teatro em Nova York e, sofrendo de depressão, cometeu suicídio. A constituição da arquitetônica da obra em sua elaboração demostra a busca de Petra por construir uma imagem de quem foi a irmã por meio de cartas, entrevistas, depoimentos, fotos, diários e vídeos caseiros, a fim de compreender como se constitui o sujeito Elena  e a si mesma. A trajetória de uma pessoa “real” narrada num filme. Por meio da elaboração estética do gênero, a pessoa passa a ser um sujeito discursivo, pois uma imagem semiotizada e não mais alguém de “carne e osso”. O trabalho com diferentes materialidades[3] que, arranjadas, apresentam uma estética e estilo próprio permitem que o trabalho artístico transforme a trajetória de uma pessoa numa trajetória recriada, não mais “real”. A trajetória reconstituída no nível do discurso não representa o caráter de fidelidade da vida do indivíduo de “carne e osso”, afinal esse sujeito e sua trajetória podem ser recuperados, contudo, por meio da elaboração do gênero, sua trajetória é reapresentada e corresponde à imagem que outros sujeitos têm de quem foi Elena. Conforme as concepções do Círculo, a construção da visão que o sujeito tem de sua constituição envolve as relações entre o eu-para-mim, o outro-para-mim e o eu-para-o-outro (o que é explorado em Para uma filosofia do ato responsável, 2010). Essas relações são essenciais para compreender como se dá a constituição do sujeito. No caso de Elena, a sua imagem “real” é projetada por meio de memórias e arquivos da família. Essas imagens construídas do sujeito são transpostas e modificadas pelo trabalho artístico. A visão de quem é o sujeito Elena feita de memórias é transformada em uma imagem representada pelo olhar valorativo da criação estética, que não corresponde às imagens anteriores, pois é resultado refratado da memória de quem foi o sujeito Elena. Memória selecionada (dentre tantas existentes) por Petra para compor exatamente o que esta deseja na obra. Elena é o outro-para-mim de Petra que, por sua vez, constitui-se como eu-para-mim por meio da sua visão apresentada sobre si mesma a partir de Elena na obra. O movimento de exotopia, discutido em Estética da criação verbal (2006), permite ao autor elaborar e dar acabamento à sua obra. Esse movimento implica o deslocamento do autor (noção discutida na mesma obra bakhtiniana) que, a partir da realização desse movimento, deixa de ser autor-pessoa e passa a ser autor-criador, dado o excedente de sua visão. Acerca do excedente de visão, explica Bakhtin que Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre  verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as parte de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – cabeça, o rosto e sua expressão –, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila de nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa. Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro individuo – é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. (2006, p.210, grifos do autor) Apenas ao se deslocar de si o sujeito adquire excedente de visão sobre si e ainda assim seu olhar jamais coincidirá com o olhar de cada um de seus outros, pois, cada sujeito, de seu lugar e tempo específicos, vê o outro de seu ponto de vista. Segundo Bakhtin, apenas o outro possui visão completa do eu, tanto quanto apenas o eu consegue dar acabamento ao outro. Isso ocorre pelo excedente de visão que cada um tem do outro e não possui de si mesmo. Por isso, ao falar sobre Elena, projetar-se em sua vida e se constituir a partir da irmã, Petra fala sobre si por meio do outro, num exercício de exotopia quádruplo: a não fusão do eu (Petra) com o outro (Elena), pois, apesar de se relacionar com ele e a partir dele se constituir, eu e outro são sujeitos distintos; a não coincidência da pessoa (irmã de Elena) com a criadora (produtora) da obra, mesmo que uma se nutra da outra; a diferença entre autores-criadores (produtora e diretora); e a distinção entre a personagem interpretada (Petra interpreta a si mesma – irmã de Elena – sendo, ela mesma a autora-pessoa e a autora-criadora que se desdobra em produtora e diretora). Essa multiplicidade de papéis desempenhados só é possível pelo exercício exotópico, num jogo de excedentes de visão que Petra incorpora. Funções difíceis e “contaminadas” por cada um dos papéis assumidos. Afinal, todos constituem o ser humano Petra que ela é. Autor-pessoa e autor-criador não coincidem. Por meio do movimento exotópico, o autor-criador se relaciona com a obra não do ponto de vista biográfico ou como autor-pessoa. O autor-criador constrói a obra e se relaciona com ela por meio de um posicionamento deslocado que carrega, ao mesmo tempo, marcas sociais e históricas do sujeito como também características e valores projetados no objeto estético (que não necessariamente coincidem com o seu posicionamento como autor-pessoa). O autor-criador, de certa forma, caracteriza-se como uma posição deslocada do autor-pessoa. Não é a pessoa que constrói uma obra (ainda que seja dela que saia a pena), mas o criador. No processo de criação da obra, o direcionamento do autor-criador colabora para um determinado olhar sobre os sujeitos criados (como são representados e como ocorrem essas representações). As fontes utilizadas no documentário (tais como vídeos, por exemplo) são reelaboradas pela direção do autor-criador e se tornam parte na obra por meio de um olhar valorativo. O olhar exotópico do autor-criador para reconstituir a imagem de Elena é um olhar que carrega uma entoação emotivo-volito do sujeito autor-pessoa. Petra é irmã do sujeito Elena. No conteúdo da arquitetônica da obra, Petra incorpora, como personagem, o papel de irmã e, como irmã, vai expor a imagem que tem de Elena. No decorrer da narrativa de Petra são incorporados no filme vídeos caseiros e enunciados que retomam a imagem pessoal de Elena, já semiotizada. Essa estratégia, própria da elaboração arquitetônica da obra, revela o direcionamento do autor-criador, da imagem que pretende criar de Elena (a escolha de determinado vídeo com um conteúdo específico para incorporar a obra em conjunto com a narrativa de Petra é fruto do olhar valorado do autor-criador e também do autor-pessoa). Verbal, visual e sonoro (Paula, 2014) se entrecruzam no enunciado fílmico e compõem os sujeitos Elena e Petra, elaborados em síncrese por essas materialidades. Os sujeitos são retratados no filme por meio do ato valorativo do autor-criador (Petra) que, nesse caso, é também sujeito na e da própria obra (personagem). Temos o autor-criador Petra e o sujeito personagem Petra no documentário, ambos com diferentes papéis: personagem, autor-pessoa e autor criador (que, por sua vez, se subdivide em produtor e diretor). Os resquícios de quem foi o indivíduo (cartas, entrevistas, depoimentos, fotos, diários e vídeos caseiros) são utilizados para construir uma imagem que se tem dele, pois dão um aspecto de fidúcia à história (por ser parte da memória da irmã) acerca de quem foi o sujeito enunciado (Elena). A imagem de Elena é recriada do ponto de vista de Petra, da mãe e de outras personagens, sendo construída por meio de fragmentos de imagens do sujeito. Dada a elaboração caraterística do documentário, a composição de Elena dialoga com imagens e características de sujeitos outros que colaboram para a reconstituição de sua trajetória. Por exemplo, a mãe de Petra e Elena narra que sofreu de depressão assim como a filha falecida; Petra estuda em Nova York e segue carreira no teatro, assim como fez a irmã. O ato de dançar, recorrente nas performances de Elena incorporadas ao documentário, é um ato realizado por Petra, como quem segue os movimentos da irmã. Ao mesmo tempo em que se constrói a imagem do sujeito Elena a partir de sujeitos outros, esses outros se veem no sujeito Elena, em suas ações, sentimentos e movimentos. Eu e outro se constroem concomitantemente, um a partir do outro. Os sujeitos se desdobram em uma profusão, na relação de si com seus outros internos e externos. A elaboração da obra, à medida que trata de um sujeito específico e sua trajetória de vida, retoma dois temas: a depressão e o suicídio. Esses temas estão incorporados no filme não apenas à trajetória do sujeito mas também na elaboração verbal, visual e sonora do enunciado. No discurso verbal, elementos léxicos de tristeza e depressão compõem as falas de Petra e da Mãe ao narrarem suas vivências e sentimentos. No visual, temos a presença de cores escuras e imagens que apresentam um tom melancólico. As cores (preto, bege, marrom, tons pastéis, cinza, azul, vermelho e verde) aparecem opacas e sem vivacidade na fotografia do filme, assim como compõem uma atmosfera que retoma o sentimento de tristeza na obra. Essa atmosfera é constituída por meio do uso de imagens que exploram, de forma concentrada, tons escuros e clássicos (pastéis) ao mesmo tempo. Esses contrários-contraditórios complementam a sequência da narrativa fílmica. O arranjo das cores em tom sépia (envelhecido) permite que os vídeos caseiros, inseridos no documentário, assemelhem-se às imagens elaboradas para a obra. Nas sequências dos fotogramas que seguem, temos, no final do documentário, a imagem de uma figura feminina flutuando em um rio e outras mulheres são acrescidas às imagens (inclusive a própria Petra), o que retoma a figura de Ofélia, da peça Hamlet, de Shakespeare. Essa retomada ocorre nos planos visual (a fotografia), musical (a canção – ver destaque em seguida para esse aspecto) e verbal, por meio na narração de Petra (“Me afogo em você, em Ofélias”). Figura 1 Petra e a mãe flutuando na água Figura 2  Mulheres flutuando na água Figura 3 Mulher flutuando nas águas de um rio Figura 4 Mulheres flutuando nas águas de um rio Podemos observar na sequência de imagens que, a princípio, na água escura,  destaca-se a figura feminina, a qual se multiplica à medida que a água se torna clara. A imagem, mostrada sob o ângulo de uma tomada de cima, captura o sujeito por completo e o focaliza. Essa construção das imagens dá ênfase ao sujeito, à sua posição e ao seu estado emocional. O jogo de cores em tons pastéis e não vívidos remete à figura de Ofélia. As imagens apresentam uma atmosfera triste e melancólica mediante as cores frias e escuras. A expressão corporal do sujeito (de olhos fechados, sendo levado pela água) também remete à morte ou ao sonho. Os elementos sonoros (silêncio, voz, música, e efeito sonoro) dão um tom melancólico às cenas, seja por meio do som do piano (Valsa para a lua, de Vitor Araújo), da narração de Petra ou de uma canção. A canção I turn to water (de Maggie Clifford) está inserida na sequência em que Petra faz movimentos com as mãos e toca o rosto. No decorrer da sequência mencionada, ouve-se o trecho “Touch me/ I turn to/I turn to water”. Transformar-se em água, como sugerido na letra da canção, relaciona-se com a imagem das mulheres, colocadas como parte intrínseca do rio (da vida). De maneira metafórica, os sujeitos (tanto da obra fílmica quanto da letra da canção) se tornam água. O verbo-voco-visual, tal qual Paula (2014) o tem estudado, em sua pesquisa sobre essas materialidades analisadas pela perspectiva bakhtiniana, em síncrese, é típico da construção fílmica, pois constitui a obra que, no caso ilustrado, trata de Elena. O enunciado fílmico, dado o arranjo estético, elaborado por essas materialidades, ao abordar os temas da depressão e do suicídio na trajetória de um sujeito em particular, retoma a trajetória de tantas outras mulheres que passam pelo que Elena vivenciou. Esse diálogo se dá por meio da construção da trajetória de Elena, realizada na obra por meio das vozes de Petra e da mãe das duas, num arranjo arquitetônico verbo-voco-visual. A narrativa de Petra e da mãe, que relatam ter passado por momentos de depressão como Elena, evidencia as proximidades de Elena, Petra e mãe, ao levar em consideração o estado depressivo de todas. Essa descrição é semiotizada de maneira sincrética na obra, que constitui o seu acabamento estético. Por meio do arranjo dos elementos verbo-voco-visuais, a proximidade entre esses sujeitos (Elena, Petra e Mãe) pode ser vista como a proximidade entre outros sujeitos femininos, o que se torna nítido pela sequência de imagens aqui destacadas, com as mulheres flutuando na água, que se inicia com Petra, em seguida aparece a mãe e, por fim, as outras mulheres são incorporadas às imagens. Essa sequência, apresentada no final do documentário, demostra, por meio das presenças de Petra, da mãe e das outras mulheres (as quais flutuam na água), que todas elas estão próximas, na mesma água, e têm vivências comuns. As outras mulheres presentes simbolizam outros sujeitos e semiotizam a depressão vivida por Elena, Petra e a mãe. Depressão que representa, como é tratado no filme, morte em vida que pode levar à morte em si (a exemplo de Elena que, sem suportar o peso da vida, suicidou-se).O enunciado da obra fílmica, ao tratar do sujeito Elena, como ele se compõe e as suas vivências, dialoga com e se constitui por meio de outros enunciados e sujeitos que vivencia(ra)m a depressão em sua trajetória. Cada história, com suas especificidades, tocada por características e vivências comuns à depressão. As proximidades permitem que o sujeito se veja no outro e se constitua a partir desse outro no ato de buscar a si. O sujeito, visto como incompleto e inacabado, só pode ser compreendido na relação com outro, pois é por meio das relações de alteridade que o sujeito pode dar acabamento a si, às vivências e aos enunciados. Afinal, como nos ensinou Bakhtin (2006, p. 201), “Viver significa ocupar uma posição de valores em cada um dos aspectos da vida” e isso é possível pela criação estética que aproxima imagens e valores de sujeitos semiotizados como reflexos e refrações humanas, tal qual acontece em Elena. Referências BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010 CLIFFORD, M. “I turn to water”. 2012. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/maggie-clifford/i-turn-to-water.html. Acesso em: 28/12/2015. COSTA, P. Elena. Brasil: Bretz Filmes, 2012. DVD (82 min.). PAULA, L. de. Análise Dialógica de Discursos verbo-voco-visuais. Pesquisa trienal de 2014 a 2016, em andamento. Não publicada. Mimeo. [1] Aluna do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da FCL Araraquara, nível de mestrado. Pesquisa intitulada “As representações de Anna Kariênina no romance e no cinema: a construção dialógica de sujeitos em diferentes gêneros”. Apoio FAPESP. [2] Docente da UNESP (lotada no Departamento de Linguística da FCL Assis e credenciada no PPGLLP da FCL Araraquara). [3] Paula estuda a verbo-voco-visualidade. Em consonância com a sua pesquisa, materialidades sincréticas tem sido analisadas por diversos integrantes do GED sob sua orientação, como fazem  Paglione (2015), Santana (2015), Silva (2015), entre outros. O grupo tem se voltado a enunciados compostos  por essas materialidades desde 2012. A partir de 2014, Paula tem se voltado à pertinência da episteme bakhtiniana para analisar enunciados verbo-voco-visuais. #excedentedevisão #exotopia #sujeito #verbovocovisual

  • Refrações de Elena: a construção verbo-voco-visual dos sujeitos

    Tatiele Novais Silva[1] Luciane de Paula[2] Buscar a si é um incessante ato do ser humano. Essa busca faz parte de pequenas ações cotidianas dentro de um evento particular. Essas ações constroem o sujeito e se tornam parte dele. Buscar a si é buscar também ao outro/outros que nos constitui/em e que faz/em parte de nossas vivências, tendo participação nos atos e eventos da arquitetônica do mundo vivido. O documentário Elena (2012) retrata a trajetória de Petra Costa e reconstitui a vida da sua irmã mais velha, Elena, sendo a construção do documentário de autoria da própria Petra. Este texto não tem como intenção analisar todos os aspectos que compõem a obra fílmica, mas pretende esboçar alguns elementos referentes à composição do gênero e do sujeito a partir da ilustração particular do enunciado citado. A narração do documentário tem como personagem principal Elena, uma atriz que estudou teatro em Nova York e, sofrendo de depressão, cometeu suicídio. A constituição da arquitetônica da obra em sua elaboração demostra a busca de Petra por construir uma imagem de quem foi a irmã por meio de cartas, entrevistas, depoimentos, fotos, diários e vídeos caseiros, a fim de compreender como se constitui o sujeito Elena  e a si mesma. A trajetória de uma pessoa “real” narrada num filme. Por meio da elaboração estética do gênero, a pessoa passa a ser um sujeito discursivo, pois uma imagem semiotizada e não mais alguém de “carne e osso”. O trabalho com diferentes materialidades[3] que, arranjadas, apresentam uma estética e estilo próprio permitem que o trabalho artístico transforme a trajetória de uma pessoa numa trajetória recriada, não mais “real”. A trajetória reconstituída no nível do discurso não representa o caráter de fidelidade da vida do indivíduo de “carne e osso”, afinal esse sujeito e sua trajetória podem ser recuperados, contudo, por meio da elaboração do gênero, sua trajetória é reapresentada e corresponde à imagem que outros sujeitos têm de quem foi Elena. Conforme as concepções do Círculo, a construção da visão que o sujeito tem de sua constituição envolve as relações entre o eu-para-mim, o outro-para-mim e o eu-para-o-outro (o que é explorado em Para uma filosofia do ato responsável, 2010). Essas relações são essenciais para compreender como se dá a constituição do sujeito. No caso de Elena, a sua imagem “real” é projetada por meio de memórias e arquivos da família. Essas imagens construídas do sujeito são transpostas e modificadas pelo trabalho artístico. A visão de quem é o sujeito Elena feita de memórias é transformada em uma imagem representada pelo olhar valorativo da criação estética, que não corresponde às imagens anteriores, pois é resultado refratado da memória de quem foi o sujeito Elena. Memória selecionada (dentre tantas existentes) por Petra para compor exatamente o que esta deseja na obra. Elena é o outro-para-mim de Petra que, por sua vez, constitui-se como eu-para-mim por meio da sua visão apresentada sobre si mesma a partir de Elena na obra. O movimento de exotopia, discutido em Estética da criação verbal (2006), permite ao autor elaborar e dar acabamento à sua obra. Esse movimento implica o deslocamento do autor (noção discutida na mesma obra bakhtiniana) que, a partir da realização desse movimento, deixa de ser autor-pessoa e passa a ser autor-criador, dado o excedente de sua visão. Acerca do excedente de visão, explica Bakhtin que Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre  verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as parte de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – cabeça, o rosto e sua expressão –, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila de nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa. Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro individuo – é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. (2006, p.210, grifos do autor) Apenas ao se deslocar de si o sujeito adquire excedente de visão sobre si e ainda assim seu olhar jamais coincidirá com o olhar de cada um de seus outros, pois, cada sujeito, de seu lugar e tempo específicos, vê o outro de seu ponto de vista. Segundo Bakhtin, apenas o outro possui visão completa do eu, tanto quanto apenas o eu consegue dar acabamento ao outro. Isso ocorre pelo excedente de visão que cada um tem do outro e não possui de si mesmo. Por isso, ao falar sobre Elena, projetar-se em sua vida e se constituir a partir da irmã, Petra fala sobre si por meio do outro, num exercício de exotopia quádruplo: a não fusão do eu (Petra) com o outro (Elena), pois, apesar de se relacionar com ele e a partir dele se constituir, eu e outro são sujeitos distintos; a não coincidência da pessoa (irmã de Elena) com a criadora (produtora) da obra, mesmo que uma se nutra da outra; a diferença entre autores-criadores (produtora e diretora); e a distinção entre a personagem interpretada (Petra interpreta a si mesma – irmã de Elena – sendo, ela mesma a autora-pessoa e a autora-criadora que se desdobra em produtora e diretora). Essa multiplicidade de papéis desempenhados só é possível pelo exercício exotópico, num jogo de excedentes de visão que Petra incorpora. Funções difíceis e “contaminadas” por cada um dos papéis assumidos. Afinal, todos constituem o ser humano Petra que ela é. Autor-pessoa e autor-criador não coincidem. Por meio do movimento exotópico, o autor-criador se relaciona com a obra não do ponto de vista biográfico ou como autor-pessoa. O autor-criador constrói a obra e se relaciona com ela por meio de um posicionamento deslocado que carrega, ao mesmo tempo, marcas sociais e históricas do sujeito como também características e valores projetados no objeto estético (que não necessariamente coincidem com o seu posicionamento como autor-pessoa). O autor-criador, de certa forma, caracteriza-se como uma posição deslocada do autor-pessoa. Não é a pessoa que constrói uma obra (ainda que seja dela que saia a pena), mas o criador. No processo de criação da obra, o direcionamento do autor-criador colabora para um determinado olhar sobre os sujeitos criados (como são representados e como ocorrem essas representações). As fontes utilizadas no documentário (tais como vídeos, por exemplo) são reelaboradas pela direção do autor-criador e se tornam parte na obra por meio de um olhar valorativo. O olhar exotópico do autor-criador para reconstituir a imagem de Elena é um olhar que carrega uma entoação emotivo-volito do sujeito autor-pessoa. Petra é irmã do sujeito Elena. No conteúdo da arquitetônica da obra, Petra incorpora, como personagem, o papel de irmã e, como irmã, vai expor a imagem que tem de Elena. No decorrer da narrativa de Petra são incorporados no filme vídeos caseiros e enunciados que retomam a imagem pessoal de Elena, já semiotizada. Essa estratégia, própria da elaboração arquitetônica da obra, revela o direcionamento do autor-criador, da imagem que pretende criar de Elena (a escolha de determinado vídeo com um conteúdo específico para incorporar a obra em conjunto com a narrativa de Petra é fruto do olhar valorado do autor-criador e também do autor-pessoa). Verbal, visual e sonoro (Paula, 2014) se entrecruzam no enunciado fílmico e compõem os sujeitos Elena e Petra, elaborados em síncrese por essas materialidades. Os sujeitos são retratados no filme por meio do ato valorativo do autor-criador (Petra) que, nesse caso, é também sujeito na e da própria obra (personagem). Temos o autor-criador Petra e o sujeito personagem Petra no documentário, ambos com diferentes papéis: personagem, autor-pessoa e autor criador (que, por sua vez, se subdivide em produtor e diretor). Os resquícios de quem foi o indivíduo (cartas, entrevistas, depoimentos, fotos, diários e vídeos caseiros) são utilizados para construir uma imagem que se tem dele, pois dão um aspecto de fidúcia à história (por ser parte da memória da irmã) acerca de quem foi o sujeito enunciado (Elena). A imagem de Elena é recriada do ponto de vista de Petra, da mãe e de outras personagens, sendo construída por meio de fragmentos de imagens do sujeito. Dada a elaboração caraterística do documentário, a composição de Elena dialoga com imagens e características de sujeitos outros que colaboram para a reconstituição de sua trajetória. Por exemplo, a mãe de Petra e Elena narra que sofreu de depressão assim como a filha falecida; Petra estuda em Nova York e segue carreira no teatro, assim como fez a irmã. O ato de dançar, recorrente nas performances de Elena incorporadas ao documentário, é um ato realizado por Petra, como quem segue os movimentos da irmã. Ao mesmo tempo em que se constrói a imagem do sujeito Elena a partir de sujeitos outros, esses outros se veem no sujeito Elena, em suas ações, sentimentos e movimentos. Eu e outro se constroem concomitantemente, um a partir do outro. Os sujeitos se desdobram em uma profusão, na relação de si com seus outros internos e externos. A elaboração da obra, à medida que trata de um sujeito específico e sua trajetória de vida, retoma dois temas: a depressão e o suicídio. Esses temas estão incorporados no filme não apenas à trajetória do sujeito mas também na elaboração verbal, visual e sonora do enunciado. No discurso verbal, elementos léxicos de tristeza e depressão compõem as falas de Petra e da Mãe ao narrarem suas vivências e sentimentos. No visual, temos a presença de cores escuras e imagens que apresentam um tom melancólico. As cores (preto, bege, marrom, tons pastéis, cinza, azul, vermelho e verde) aparecem opacas e sem vivacidade na fotografia do filme, assim como compõem uma atmosfera que retoma o sentimento de tristeza na obra. Essa atmosfera é constituída por meio do uso de imagens que exploram, de forma concentrada, tons escuros e clássicos (pastéis) ao mesmo tempo. Esses contrários-contraditórios complementam a sequência da narrativa fílmica. O arranjo das cores em tom sépia (envelhecido) permite que os vídeos caseiros, inseridos no documentário, assemelhem-se às imagens elaboradas para a obra. Nas sequências dos fotogramas que seguem, temos, no final do documentário, a imagem de uma figura feminina flutuando em um rio e outras mulheres são acrescidas às imagens (inclusive a própria Petra), o que retoma a figura de Ofélia, da peça Hamlet, de Shakespeare. Essa retomada ocorre nos planos visual (a fotografia), musical (a canção – ver destaque em seguida para esse aspecto) e verbal, por meio na narração de Petra (“Me afogo em você, em Ofélias”). Figura 1 Petra e a mãe flutuando na água Figura 2  Mulheres flutuando na água Figura 3 Mulher flutuando nas águas de um rio Figura 4 Mulheres flutuando nas águas de um rio Podemos observar na sequência de imagens que, a princípio, na água escura,  destaca-se a figura feminina, a qual se multiplica à medida que a água se torna clara. A imagem, mostrada sob o ângulo de uma tomada de cima, captura o sujeito por completo e o focaliza. Essa construção das imagens dá ênfase ao sujeito, à sua posição e ao seu estado emocional. O jogo de cores em tons pastéis e não vívidos remete à figura de Ofélia. As imagens apresentam uma atmosfera triste e melancólica mediante as cores frias e escuras. A expressão corporal do sujeito (de olhos fechados, sendo levado pela água) também remete à morte ou ao sonho. Os elementos sonoros (silêncio, voz, música, e efeito sonoro) dão um tom melancólico às cenas, seja por meio do som do piano (Valsa para a lua, de Vitor Araújo), da narração de Petra ou de uma canção. A canção I turn to water (de Maggie Clifford) está inserida na sequência em que Petra faz movimentos com as mãos e toca o rosto. No decorrer da sequência mencionada, ouve-se o trecho “Touch me/ I turn to/I turn to water”. Transformar-se em água, como sugerido na letra da canção, relaciona-se com a imagem das mulheres, colocadas como parte intrínseca do rio (da vida). De maneira metafórica, os sujeitos (tanto da obra fílmica quanto da letra da canção) se tornam água. O verbo-voco-visual, tal qual Paula (2014) o tem estudado, em sua pesquisa sobre essas materialidades analisadas pela perspectiva bakhtiniana, em síncrese, é típico da construção fílmica, pois constitui a obra que, no caso ilustrado, trata de Elena. O enunciado fílmico, dado o arranjo estético, elaborado por essas materialidades, ao abordar os temas da depressão e do suicídio na trajetória de um sujeito em particular, retoma a trajetória de tantas outras mulheres que passam pelo que Elena vivenciou. Esse diálogo se dá por meio da construção da trajetória de Elena, realizada na obra por meio das vozes de Petra e da mãe das duas, num arranjo arquitetônico verbo-voco-visual. A narrativa de Petra e da mãe, que relatam ter passado por momentos de depressão como Elena, evidencia as proximidades de Elena, Petra e mãe, ao levar em consideração o estado depressivo de todas. Essa descrição é semiotizada de maneira sincrética na obra, que constitui o seu acabamento estético. Por meio do arranjo dos elementos verbo-voco-visuais, a proximidade entre esses sujeitos (Elena, Petra e Mãe) pode ser vista como a proximidade entre outros sujeitos femininos, o que se torna nítido pela sequência de imagens aqui destacadas, com as mulheres flutuando na água, que se inicia com Petra, em seguida aparece a mãe e, por fim, as outras mulheres são incorporadas às imagens. Essa sequência, apresentada no final do documentário, demostra, por meio das presenças de Petra, da mãe e das outras mulheres (as quais flutuam na água), que todas elas estão próximas, na mesma água, e têm vivências comuns. As outras mulheres presentes simbolizam outros sujeitos e semiotizam a depressão vivida por Elena, Petra e a mãe. Depressão que representa, como é tratado no filme, morte em vida que pode levar à morte em si (a exemplo de Elena que, sem suportar o peso da vida, suicidou-se).O enunciado da obra fílmica, ao tratar do sujeito Elena, como ele se compõe e as suas vivências, dialoga com e se constitui por meio de outros enunciados e sujeitos que vivencia(ra)m a depressão em sua trajetória. Cada história, com suas especificidades, tocada por características e vivências comuns à depressão. As proximidades permitem que o sujeito se veja no outro e se constitua a partir desse outro no ato de buscar a si. O sujeito, visto como incompleto e inacabado, só pode ser compreendido na relação com outro, pois é por meio das relações de alteridade que o sujeito pode dar acabamento a si, às vivências e aos enunciados. Afinal, como nos ensinou Bakhtin (2006, p. 201), “Viver significa ocupar uma posição de valores em cada um dos aspectos da vida” e isso é possível pela criação estética que aproxima imagens e valores de sujeitos semiotizados como reflexos e refrações humanas, tal qual acontece em Elena. Referências BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010 CLIFFORD, M. “I turn to water”. 2012. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/maggie-clifford/i-turn-to-water.html. Acesso em: 28/12/2015. COSTA, P. Elena. Brasil: Bretz Filmes, 2012. DVD (82 min.). PAULA, L. de. Análise Dialógica de Discursos verbo-voco-visuais. Pesquisa trienal de 2014 a 2016, em andamento. Não publicada. Mimeo. [1] Aluna do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da FCL Araraquara, nível de mestrado. Pesquisa intitulada “As representações de Anna Kariênina no romance e no cinema: a construção dialógica de sujeitos em diferentes gêneros”. Apoio FAPESP. [2] Docente da UNESP (lotada no Departamento de Linguística da FCL Assis e credenciada no PPGLLP da FCL Araraquara). [3] Paula estuda a verbo-voco-visualidade. Em consonância com a sua pesquisa, materialidades sincréticas tem sido analisadas por diversos integrantes do GED sob sua orientação, como fazem  Paglione (2015), Santana (2015), Silva (2015), entre outros. O grupo tem se voltado a enunciados compostos  por essas materialidades desde 2012. A partir de 2014, Paula tem se voltado à pertinência da episteme bakhtiniana para analisar enunciados verbo-voco-visuais. #excedentedevisão #exotopia #sujeito #verbovocovisual

  • O Discurso Citado nas Canções-Respostas do Youtube

    Schneider Pereira Caixeta Na segunda parte de Marxismo e filosofia da linguagem, os olhares de Bakhtin/Volochinov, se concentram na palavra e na dificuldade de sua definição, bem como na dificuldade da definição completa do objeto real da filosofia da linguagem, pois tal objeto não é algo palpável ou visível (às mãos ou aos olhos), mas é o ouvido que ouve a palavra, a linguagem. Portanto, o objeto de estudo ali buscado não estaria somente definido pelo fisiológico, ou pelo biológico, mas envolvido, sobretudo, pela esfera da relação social. Assim, conclui-se que a verdadeira substância da língua consiste no fenômeno social da interação verbal, sendo ela a realidade fundamental da língua. No enunciado ressoam muito outros enunciados de enunciadores diversos. Pode-se dizer também que ressoam palavras de outros. Dessas palavras, o indivíduo se apropria, a elas ele julga, e as reelabora em seu contexto enunciativo. Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos (BAKHTIN, 2011a, p. 294). Primeiramente, cabe esclarecer que essa “palavra do outro[1]” à qual o autor se refere consiste em qualquer eco dos discursos de outras pessoas no discurso que eu mesmo (ou qualquer outra pessoa) emito. Não se trata, por hora, do “discurso de outrem” que aparece de forma citada explicitamente num outro discurso. Por palavra do outro (enunciado, produção de discurso) eu entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, é qualquer outra palavra não minha. Neste sentido, todas as palavras (enunciados, produções de discurso e literárias), além das minhas próprias, são palavras do outro. Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos) (BAKHTIN, 2011b, p. 379). Nisso consiste o dialogismo, apregoado pela teoria bakhtiniana, porém, muitas vezes essa palavra do outro aparece no discurso na forma de discurso citado. Em Os gêneros do discurso, Bakhtin alerta para essa possibilidade de presença da palavra do outro no discurso de variadas maneiras, até mesmo como enunciado pleno: Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. Essas reações têm diferentes formas: os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado; podem ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que, neste caso, figurem como representantes de enunciados plenos, e além disso enunciados plenos e palavras isoladas podem conservar a sua expressão alheia mas não podem ser reacentuados (em termos de ironia, de indignação, de reverência, etc.) (BAKHTIN, 2011a, p. 297). Assim, temos no fenômeno do discurso citado, a inserção de um enunciado dentro de outro enunciado, sendo aquele primeiro um enunciado alheio: é quando um enunciado entra num outro, podendo fazer parte inclusive de sua construção sintática. Quando um discurso aparece como citado, ele passa da condição de situado fora do contexto narrativo para pertencer ao contexto narrativo. Sendo assim, o discurso citado é “a presença explícita da palavra de outrem nos enunciados”, como também um processo de absorção valorada dessa palavra do outro (FARACO, 2009, p. 138-140). Ou seja, a palavra do outro não aparece simplesmente no discurso citado, mas esse encontra à sua espera posições valorativas. “Assim, reportar não é fundamentalmente reproduzir, repetir; é principalmente estabelecer uma relação ativa entre o discurso que reporta e o discurso reportado; uma interação dinâmica dessas duas dimensões” (op. cit., p. 140). No site de vídeos Youtube, onde circulam vídeos e canções de variados estilos, é comum encontrar vídeos que são respostas a outros vídeos, bem como canções que respondem a outras canções, os quais são popularmente chamados de “resposta”. Nesses vídeos-repostas, um discurso é retomado e, geralmente, questionado. A própria língua, segundo Bakhtin/Volochinov (2014, p. 155), consegue elaborar os meios para que o autor consiga: 1) citar o discurso em sua forma integral e autêntica, buscando um afastamento de julgamento quanto a ele, o que Bakhtin chama de estilo linear; ou 2) infiltrar suas réplicas e comentários nesse discurso que cita, através do apagamento das fronteiras entre o contexto narrativo e o enunciado citado, o que faz com que o narrador consiga permear o enunciado “com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o seu encantamento ou o seu desprezo” (Bakhtin/Volochinov, 2014, p. 157). No caso das canções-respostas que circulam no site Youtube, nas quais abunda o discurso de outrem, esses recursos são bastante latentes, uma vez que as canções-respostas em geral se firmam no humor e na ironia. A maneira que Bakhtin utiliza para mostrar como o discurso citado deixa de ser apenas um tema do discurso e passa a integrar o seu conteúdo é por meio das perguntas “Como” e “De que falava fulano?” e “O que dizia ele?”. Quando o discurso citado é apenas tema do discurso, consegue-se responder apenas às duas primeiras. A partir do momento em que há a transmissão das palavras desse “fulano”, é possível responder à última indagação. É possível, por meio deste trecho da canção-resposta As Mina Não Pira, visualizar tanto o emprego do discurso citado direto (aquele que reproduz exatamente o que foi dito, aparecendo, normalmente entre aspas) quanto do indireto (aquele em que os limites entre o discurso citado e o que cita aparecem diluídos): As Mina Não Pira – Hellen Vívia Com tipinho de playboy Me liga pra me dizer “Ai se eu te pego, gatinha Tu não vai se arrepender” Me diz que as mina pira Com seu jeito de fazer Mas eu já tô vacinada E vou falar pra você Os discursos citados em questão são dois: um da canção Ai Se Eu Te Pego, de Michel Teló, que aparece acima na forma de discurso direto, entre aspas; o outro da canção As Mina Pira, de Gusttavo Lima, sendo este um discurso indireto (me diz que…). Com o exemplo dos dois discursos de outrem acima, conseguimos responder tanto à questão “Como” e “De que falavam Michel Teló e Gusttavo Lima?” quanto a “O que diziam eles?”. Por fim, quando Bakhtin discorre sobre o processo de transmissão do enunciado no interior de um contexto, ele diz que “a transmissão leva em conta uma terceira pessoa – a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2014, p. 152). Cabe aqui uma análise de quem vem a ser esta terceira pessoa nesta transmissão do discurso citado na canção. Uma vez que a canção-resposta responde a outra canção, esta terceira pessoa pode ser o autor do enunciado ao qual responde, e neste caso a finalidade da resposta pode ser tanto de aprovação quanto de reprovação frente ao discurso citado, visto que um posicionamento valorativo é exigido. Contudo, esta terceira pessoa pode ser também qualquer público que ouça a canção-resposta, quer conheça a canção-oficial, quer não, já que por meio do discurso citado, o público tem acesso a “o que dizia ele?”. Referências bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch; VOLOCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2014. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. ________. Apontamentos de 1970-1971. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011b. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. [1]Esse termo também aparece como “palavra outra”, na tradução mais recente da terceira parte de Marxismo e filosofia da linguagem, publicada como Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação (2011). #diálogo #discursocitado #enunciado

  • O Discurso Citado nas Canções-Respostas do Youtube

    Schneider Pereira Caixeta Na segunda parte de Marxismo e filosofia da linguagem, os olhares de Bakhtin/Volochinov, se concentram na palavra e na dificuldade de sua definição, bem como na dificuldade da definição completa do objeto real da filosofia da linguagem, pois tal objeto não é algo palpável ou visível (às mãos ou aos olhos), mas é o ouvido que ouve a palavra, a linguagem. Portanto, o objeto de estudo ali buscado não estaria somente definido pelo fisiológico, ou pelo biológico, mas envolvido, sobretudo, pela esfera da relação social. Assim, conclui-se que a verdadeira substância da língua consiste no fenômeno social da interação verbal, sendo ela a realidade fundamental da língua. No enunciado ressoam muito outros enunciados de enunciadores diversos. Pode-se dizer também que ressoam palavras de outros. Dessas palavras, o indivíduo se apropria, a elas ele julga, e as reelabora em seu contexto enunciativo. Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos (BAKHTIN, 2011a, p. 294). Primeiramente, cabe esclarecer que essa “palavra do outro[1]” à qual o autor se refere consiste em qualquer eco dos discursos de outras pessoas no discurso que eu mesmo (ou qualquer outra pessoa) emito. Não se trata, por hora, do “discurso de outrem” que aparece de forma citada explicitamente num outro discurso. Por palavra do outro (enunciado, produção de discurso) eu entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, é qualquer outra palavra não minha. Neste sentido, todas as palavras (enunciados, produções de discurso e literárias), além das minhas próprias, são palavras do outro. Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressas em palavras ou em outros materiais semióticos) (BAKHTIN, 2011b, p. 379). Nisso consiste o dialogismo, apregoado pela teoria bakhtiniana, porém, muitas vezes essa palavra do outro aparece no discurso na forma de discurso citado. Em Os gêneros do discurso, Bakhtin alerta para essa possibilidade de presença da palavra do outro no discurso de variadas maneiras, até mesmo como enunciado pleno: Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. Essas reações têm diferentes formas: os enunciados dos outros podem ser introduzidos diretamente no contexto do enunciado; podem ser introduzidas somente palavras isoladas ou orações que, neste caso, figurem como representantes de enunciados plenos, e além disso enunciados plenos e palavras isoladas podem conservar a sua expressão alheia mas não podem ser reacentuados (em termos de ironia, de indignação, de reverência, etc.) (BAKHTIN, 2011a, p. 297). Assim, temos no fenômeno do discurso citado, a inserção de um enunciado dentro de outro enunciado, sendo aquele primeiro um enunciado alheio: é quando um enunciado entra num outro, podendo fazer parte inclusive de sua construção sintática. Quando um discurso aparece como citado, ele passa da condição de situado fora do contexto narrativo para pertencer ao contexto narrativo. Sendo assim, o discurso citado é “a presença explícita da palavra de outrem nos enunciados”, como também um processo de absorção valorada dessa palavra do outro (FARACO, 2009, p. 138-140). Ou seja, a palavra do outro não aparece simplesmente no discurso citado, mas esse encontra à sua espera posições valorativas. “Assim, reportar não é fundamentalmente reproduzir, repetir; é principalmente estabelecer uma relação ativa entre o discurso que reporta e o discurso reportado; uma interação dinâmica dessas duas dimensões” (op. cit., p. 140). No site de vídeos Youtube, onde circulam vídeos e canções de variados estilos, é comum encontrar vídeos que são respostas a outros vídeos, bem como canções que respondem a outras canções, os quais são popularmente chamados de “resposta”. Nesses vídeos-repostas, um discurso é retomado e, geralmente, questionado. A própria língua, segundo Bakhtin/Volochinov (2014, p. 155), consegue elaborar os meios para que o autor consiga: 1) citar o discurso em sua forma integral e autêntica, buscando um afastamento de julgamento quanto a ele, o que Bakhtin chama de estilo linear; ou 2) infiltrar suas réplicas e comentários nesse discurso que cita, através do apagamento das fronteiras entre o contexto narrativo e o enunciado citado, o que faz com que o narrador consiga permear o enunciado “com as suas entoações, o seu humor, a sua ironia, o seu ódio, com o seu encantamento ou o seu desprezo” (Bakhtin/Volochinov, 2014, p. 157). No caso das canções-respostas que circulam no site Youtube, nas quais abunda o discurso de outrem, esses recursos são bastante latentes, uma vez que as canções-respostas em geral se firmam no humor e na ironia. A maneira que Bakhtin utiliza para mostrar como o discurso citado deixa de ser apenas um tema do discurso e passa a integrar o seu conteúdo é por meio das perguntas “Como” e “De que falava fulano?” e “O que dizia ele?”. Quando o discurso citado é apenas tema do discurso, consegue-se responder apenas às duas primeiras. A partir do momento em que há a transmissão das palavras desse “fulano”, é possível responder à última indagação. É possível, por meio deste trecho da canção-resposta As Mina Não Pira, visualizar tanto o emprego do discurso citado direto (aquele que reproduz exatamente o que foi dito, aparecendo, normalmente entre aspas) quanto do indireto (aquele em que os limites entre o discurso citado e o que cita aparecem diluídos): As Mina Não Pira – Hellen Vívia Com tipinho de playboy Me liga pra me dizer “Ai se eu te pego, gatinha Tu não vai se arrepender” Me diz que as mina pira Com seu jeito de fazer Mas eu já tô vacinada E vou falar pra você Os discursos citados em questão são dois: um da canção Ai Se Eu Te Pego, de Michel Teló, que aparece acima na forma de discurso direto, entre aspas; o outro da canção As Mina Pira, de Gusttavo Lima, sendo este um discurso indireto (me diz que…). Com o exemplo dos dois discursos de outrem acima, conseguimos responder tanto à questão “Como” e “De que falavam Michel Teló e Gusttavo Lima?” quanto a “O que diziam eles?”. Por fim, quando Bakhtin discorre sobre o processo de transmissão do enunciado no interior de um contexto, ele diz que “a transmissão leva em conta uma terceira pessoa – a pessoa a quem estão sendo transmitidas as enunciações citadas” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2014, p. 152). Cabe aqui uma análise de quem vem a ser esta terceira pessoa nesta transmissão do discurso citado na canção. Uma vez que a canção-resposta responde a outra canção, esta terceira pessoa pode ser o autor do enunciado ao qual responde, e neste caso a finalidade da resposta pode ser tanto de aprovação quanto de reprovação frente ao discurso citado, visto que um posicionamento valorativo é exigido. Contudo, esta terceira pessoa pode ser também qualquer público que ouça a canção-resposta, quer conheça a canção-oficial, quer não, já que por meio do discurso citado, o público tem acesso a “o que dizia ele?”. Referências bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch; VOLOCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2014. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011a. ________. Apontamentos de 1970-1971. Estética da criação verbal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011b. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. [1]Esse termo também aparece como “palavra outra”, na tradução mais recente da terceira parte de Marxismo e filosofia da linguagem, publicada como Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação (2011). #diálogo #discursocitado #enunciado

bottom of page