top of page

Resultados de busca

180 resultados encontrados com uma busca vazia

  • Sujeito-pesquisador e sujeito-pesquisado: uma breve reflexão sobre a etnografia digital e a perspect

    Natasha Ribeiro de Oliveira As pesquisas científicas voltadas para a análise de interações on-line, como em redes sociais, sites ou algum outro aspecto da vida digital não são novidades. Assim como a própria presença (simbólica e, por vezes, física) da internet em nossas vidas também não é, afinal, as novas gerações já deixaram de ser compostas por imigrantes digitais e passaram a ser de nativos digitais, como apontado por Marc Prensky (2001). Embora pareça que a internet seja “terra de ninguém”, como popularmente é dito, em termos de pesquisa e rigor científico, não podemos compactuar com tal pensamento. Por isso, apresentamos, de forma breve, algumas questões que devem ser consideradas em relação a um estudo que se propõe a analisar as interações on-line a partir da perspectiva da etnografia digital e como o sujeito-pesquisador e o seu outro, o sujeito-pesquisado (corpus), muito caros à abordagem dialógica, são concebidos nessa perspectiva metodológica. Segundo Hine (2000), a internet é um artefato cultural, a inserção de tal tecnologia em nossa vida cotidiana é tamanha que não cabe mais pensar, como antes, em irrealidade ao se falar de vida on-line, pois o virtual deve ser compreendido como uma possibilidade do real, um novo formato de realidade, como pontua Lévy (2000 [1997]), não de situação dicotômica e oposta, em que tudo que está on-line não seja embasado em situações da vida off-line. Como Hine (2016) pontua, as mídias sociais transformam as nossas experiências de identidade (aqui, ressaltamos, pautadas na alteridade), de interação e as fronteiras sociais, pois os ambientes on-line e off-line transformaram e continuam a transformar a sociabilidade. Dentre tantas possibilidades, o pesquisador que se propõe a compreender as interações em ambiente on-line pode fazê-lo na forma de um “lurking” (BRAGA, 2006), com o objetivo de observar determinado grupo, situação ou sujeito sem a necessidade de se manifestar para não interferir nas relações que ocorrem de maneira espontânea e natural, sem ser estimulada ou frojada. Por isso a etnografia digital, com as suas variadas possibilidades de execução, por meio da análise das redes sociais, tornou-se um instrumento para a compreensão da sociedade (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011). Aí é que está o papel do sujeito enquanto pesquisador e do seu outro (que, aqui, entendemos como o corpus, seja em qual formato for, e que temos chamado de sujeito-pesquisado). Neste sentido, um ganho para o pesquisador e para as análises feitas em ambiente virtual, na abordagem da etnografia digital, é poder analisar as atividades on-line que deixam “traços visíveis de audiência” (HINE, 2016), ou seja, que mesmo já tendo acontecido, ainda são possíveis de localizar mediante mecanismos de busca e acesso, o que possibilita, portanto, acessar determinados modos de ser e estar em certo período histórico e social, como uma leitura do agir do sujeito-pesquisado naquele momento específico que, por vezes, pode já ter acontecido há meses, anos e até décadas e, ainda assim, ser recuperado pela estrutura disposta no social. Assim é que compreendemos que há muitas e diferentes vozes a ser ouvidas neste ambiente on-line, que divergem entre si, entram em tensão, embate dialógico, sem fim, porque nada é dito do nada, mas sempre em relação com algo que veio antes (e após), o que Bakhtin e o Círculo entendem como o elo da comunicação discursiva de em enunciado. A pesquisa que se propõe a analisar as interações on-line precisa, portanto, estar ancorada nos princípios da etnografia digital que, por sua vez, possui diferentes tipos de realização de coleta de dados e análise. Ressaltamos, aqui, a perspectiva dialógica como uma aliada neste tipo de análise, por entendermos que “por trás” de todo e qualquer corpus há um sujeito falante, que enuncia e deixa a sua assinatura autoral, seja em qual formato for. Desse modo, há, ali, uma voz social que marca social e historicamente determinados posicionamentos, que são visões de mundo, por sua vez, entendidos como a voz social de um determinado grupo. Pensar, junto ao Círculo de Bakhtin, em um sujeito-pesquisador e um sujeito-pesquisado, como as interações on-line em redes sociais é também pensar que há sujeitos falantes nas duas vias: o sujeito que fala e fala tanto quanto o sujeito por quem ele fala. Ou seja, o corpus (o sujeito-pesquisado, como temos chamado), fala tanto quanto o pesquisador, de modo que cabe a ele dar voz, em sua pesquisa, a esse sujeito, para que ele seja ouvido, na pesquisa, na mesma proporção em que ele fala. A perspectiva dialógica comporta a ideia de que um texto deve ser visto no seu contexto e na relação com outros textos, o que nos permite considerar o caráter responsivo e responsável do(s) enunciado(s) (ou, dos textos, como está nos escritos bakhtinianos) para analisar esse sujeito-pesquisado que fala tanto quanto o sujeito-pesquisador na pesquisa. Bakhtin diz: “Cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos. […] A índole dialógica desse correlacionamento” (BAKHTIN, 2011, p. 400). A partir disso, podemos escutar outras e diferentes vozes a partir de um dado texto, colocadas em diálogos e recuperadas por meio do contato com outros contextos: O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. […] e um contato dialógico entre textos (enunciados) […]. Por trás desse contato está o contato entre indivíduos e não entre coisas (BAKHTIN, 2011, p. 401). Esta escuta-ativa do pesquisador é extremamente necessária nas pesquisas, não só as de abordagem dialógica, etnográfica digital ou de qual cunho seja, pois é o ganho das Ciências Humanas: conseguir inserir o sujeito e toda a sua subjetividade (pautada na alteridade) na pesquisa, com caráter científico. Analisar os sujeitos e suas interações, de forma on-line ou off-line, é uma forma de apreender modos de comportamento que são específicos de um ou outro ambiente, e que não se enquadram de maneira igualitária em outro espaço não porque os sujeitos são outros, mas porque os gêneros que permitem a comunicação são outros. Com isso, não estamos dizendo que o sujeito-pesquisado, por exemplo, é um duplo, que adquire “máscaras” para lidar em ambiente on-line, mas que a comunicação na internet é diferente de uma comunicação face a face, por isso que há a necessidade de procedimentos e abordagens próprias para este tipo de pesquisa e análise. Hine (2016) defende que a internet é um componente do dia-a-dia e que a usamos de maneira despercebida, com os dispositivos móveis incorporados às nossas vidas. Segundo a autora O uso da internet torna-se significativo para nossas compreensões da identidade e responsabilidade, e transformador de nossas estruturas de recompensa, confiança e reconhecimento. Qualquer fragmento individual dos dados derivados da internet é, por isso, passível de ser interpretado de uma série de formas, dependendo dos contextos em que se incorpora e adquire significado (HINE, 2016, p. 16). As escolhas metodológicas são de extrema importância para a pesquisa científica, por isso que cabe, ao sujeito-pesquisador, clareza sobre os caminhos a serem percorridos, para justamente entender qual tipo de abordagem que o próprio sujeito-pesquisado vai demandar, pois como dito, ele fala tanto quanto o pesquisador. Com os dados provenientes da internet e das interações on-line não é diferente, a análise e interpretação podem ser feitas de determinadas formas, mas todas vão remeter e ser um retrato, ainda que com nuances diferentes, do momento específico em que foram produzidas, bem como dos sujeitos que as produziram. Frisamos, por fim, como o contexto do próprio sujeito-pesquisador encaminha e determina o percurso da pesquisa, ao considerar que ele é fruto da sua época. Ou seja, as valorações e sentidos aos quais ele responde são provenientes do próprio contexto por ele vivenciado. Nesse sentido, o sujeito-pesquisado é também um reflexo e refração de um momento tido como atual, mesmo que não sejam dados recentes, pois revelam modos de ser e compreender não só a contemporaneidade, mas também tempos passados, a partir de pistas deixadas e coletadas pelo próprio sujeito-pesquisador, confrontadas e colocadas em diálogo com outros sujeitos-pesquisados, textos e/ou enunciados. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Metodologia das ciências humanas. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, p. 393-410. BRAGA, Adriana. Técnica etnográfica aplicada à comunicação online: uma discussão metodológica. UNIrevista, vol. 1, n° 3, julho 2006. FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana (orgs.). Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. HINE, Christine. Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia. In: CAMPANELLA, Bruno; BARROS, Carla. Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos. – 1. ed. – Rio de Janeiro: E-papers, 2016, p. 11-28. HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: SAGE Publications, 2000. LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva. Edições Loyola, 2000 [1997]. PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants part 2:Do they really think differently?. On the horizon, 2001.

  • Sujeito-pesquisador e sujeito-pesquisado: uma breve reflexão sobre a etnografia digital e a perspect

    Natasha Ribeiro de Oliveira As pesquisas científicas voltadas para a análise de interações on-line, como em redes sociais, sites ou algum outro aspecto da vida digital não são novidades. Assim como a própria presença (simbólica e, por vezes, física) da internet em nossas vidas também não é, afinal, as novas gerações já deixaram de ser compostas por imigrantes digitais e passaram a ser de nativos digitais, como apontado por Marc Prensky (2001). Embora pareça que a internet seja “terra de ninguém”, como popularmente é dito, em termos de pesquisa e rigor científico, não podemos compactuar com tal pensamento. Por isso, apresentamos, de forma breve, algumas questões que devem ser consideradas em relação a um estudo que se propõe a analisar as interações on-line a partir da perspectiva da etnografia digital e como o sujeito-pesquisador e o seu outro, o sujeito-pesquisado (corpus), muito caros à abordagem dialógica, são concebidos nessa perspectiva metodológica. Segundo Hine (2000), a internet é um artefato cultural, a inserção de tal tecnologia em nossa vida cotidiana é tamanha que não cabe mais pensar, como antes, em irrealidade ao se falar de vida on-line, pois o virtual deve ser compreendido como uma possibilidade do real, um novo formato de realidade, como pontua Lévy (2000 [1997]), não de situação dicotômica e oposta, em que tudo que está on-line não seja embasado em situações da vida off-line. Como Hine (2016) pontua, as mídias sociais transformam as nossas experiências de identidade (aqui, ressaltamos, pautadas na alteridade), de interação e as fronteiras sociais, pois os ambientes on-line e off-line transformaram e continuam a transformar a sociabilidade. Dentre tantas possibilidades, o pesquisador que se propõe a compreender as interações em ambiente on-line pode fazê-lo na forma de um “lurking” (BRAGA, 2006), com o objetivo de observar determinado grupo, situação ou sujeito sem a necessidade de se manifestar para não interferir nas relações que ocorrem de maneira espontânea e natural, sem ser estimulada ou frojada. Por isso a etnografia digital, com as suas variadas possibilidades de execução, por meio da análise das redes sociais, tornou-se um instrumento para a compreensão da sociedade (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011). Aí é que está o papel do sujeito enquanto pesquisador e do seu outro (que, aqui, entendemos como o corpus, seja em qual formato for, e que temos chamado de sujeito-pesquisado). Neste sentido, um ganho para o pesquisador e para as análises feitas em ambiente virtual, na abordagem da etnografia digital, é poder analisar as atividades on-line que deixam “traços visíveis de audiência” (HINE, 2016), ou seja, que mesmo já tendo acontecido, ainda são possíveis de localizar mediante mecanismos de busca e acesso, o que possibilita, portanto, acessar determinados modos de ser e estar em certo período histórico e social, como uma leitura do agir do sujeito-pesquisado naquele momento específico que, por vezes, pode já ter acontecido há meses, anos e até décadas e, ainda assim, ser recuperado pela estrutura disposta no social. Assim é que compreendemos que há muitas e diferentes vozes a ser ouvidas neste ambiente on-line, que divergem entre si, entram em tensão, embate dialógico, sem fim, porque nada é dito do nada, mas sempre em relação com algo que veio antes (e após), o que Bakhtin e o Círculo entendem como o elo da comunicação discursiva de em enunciado. A pesquisa que se propõe a analisar as interações on-line precisa, portanto, estar ancorada nos princípios da etnografia digital que, por sua vez, possui diferentes tipos de realização de coleta de dados e análise. Ressaltamos, aqui, a perspectiva dialógica como uma aliada neste tipo de análise, por entendermos que “por trás” de todo e qualquer corpus há um sujeito falante, que enuncia e deixa a sua assinatura autoral, seja em qual formato for. Desse modo, há, ali, uma voz social que marca social e historicamente determinados posicionamentos, que são visões de mundo, por sua vez, entendidos como a voz social de um determinado grupo. Pensar, junto ao Círculo de Bakhtin, em um sujeito-pesquisador e um sujeito-pesquisado, como as interações on-line em redes sociais é também pensar que há sujeitos falantes nas duas vias: o sujeito que fala e fala tanto quanto o sujeito por quem ele fala. Ou seja, o corpus (o sujeito-pesquisado, como temos chamado), fala tanto quanto o pesquisador, de modo que cabe a ele dar voz, em sua pesquisa, a esse sujeito, para que ele seja ouvido, na pesquisa, na mesma proporção em que ele fala. A perspectiva dialógica comporta a ideia de que um texto deve ser visto no seu contexto e na relação com outros textos, o que nos permite considerar o caráter responsivo e responsável do(s) enunciado(s) (ou, dos textos, como está nos escritos bakhtinianos) para analisar esse sujeito-pesquisado que fala tanto quanto o sujeito-pesquisador na pesquisa. Bakhtin diz: “Cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos. […] A índole dialógica desse correlacionamento” (BAKHTIN, 2011, p. 400). A partir disso, podemos escutar outras e diferentes vozes a partir de um dado texto, colocadas em diálogos e recuperadas por meio do contato com outros contextos: O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. […] e um contato dialógico entre textos (enunciados) […]. Por trás desse contato está o contato entre indivíduos e não entre coisas (BAKHTIN, 2011, p. 401). Esta escuta-ativa do pesquisador é extremamente necessária nas pesquisas, não só as de abordagem dialógica, etnográfica digital ou de qual cunho seja, pois é o ganho das Ciências Humanas: conseguir inserir o sujeito e toda a sua subjetividade (pautada na alteridade) na pesquisa, com caráter científico. Analisar os sujeitos e suas interações, de forma on-line ou off-line, é uma forma de apreender modos de comportamento que são específicos de um ou outro ambiente, e que não se enquadram de maneira igualitária em outro espaço não porque os sujeitos são outros, mas porque os gêneros que permitem a comunicação são outros. Com isso, não estamos dizendo que o sujeito-pesquisado, por exemplo, é um duplo, que adquire “máscaras” para lidar em ambiente on-line, mas que a comunicação na internet é diferente de uma comunicação face a face, por isso que há a necessidade de procedimentos e abordagens próprias para este tipo de pesquisa e análise. Hine (2016) defende que a internet é um componente do dia-a-dia e que a usamos de maneira despercebida, com os dispositivos móveis incorporados às nossas vidas. Segundo a autora O uso da internet torna-se significativo para nossas compreensões da identidade e responsabilidade, e transformador de nossas estruturas de recompensa, confiança e reconhecimento. Qualquer fragmento individual dos dados derivados da internet é, por isso, passível de ser interpretado de uma série de formas, dependendo dos contextos em que se incorpora e adquire significado (HINE, 2016, p. 16). As escolhas metodológicas são de extrema importância para a pesquisa científica, por isso que cabe, ao sujeito-pesquisador, clareza sobre os caminhos a serem percorridos, para justamente entender qual tipo de abordagem que o próprio sujeito-pesquisado vai demandar, pois como dito, ele fala tanto quanto o pesquisador. Com os dados provenientes da internet e das interações on-line não é diferente, a análise e interpretação podem ser feitas de determinadas formas, mas todas vão remeter e ser um retrato, ainda que com nuances diferentes, do momento específico em que foram produzidas, bem como dos sujeitos que as produziram. Frisamos, por fim, como o contexto do próprio sujeito-pesquisador encaminha e determina o percurso da pesquisa, ao considerar que ele é fruto da sua época. Ou seja, as valorações e sentidos aos quais ele responde são provenientes do próprio contexto por ele vivenciado. Nesse sentido, o sujeito-pesquisado é também um reflexo e refração de um momento tido como atual, mesmo que não sejam dados recentes, pois revelam modos de ser e compreender não só a contemporaneidade, mas também tempos passados, a partir de pistas deixadas e coletadas pelo próprio sujeito-pesquisador, confrontadas e colocadas em diálogo com outros sujeitos-pesquisados, textos e/ou enunciados. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Metodologia das ciências humanas. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, p. 393-410. BRAGA, Adriana. Técnica etnográfica aplicada à comunicação online: uma discussão metodológica. UNIrevista, vol. 1, n° 3, julho 2006. FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana (orgs.). Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina, 2011. HINE, Christine. Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia. In: CAMPANELLA, Bruno; BARROS, Carla. Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos. – 1. ed. – Rio de Janeiro: E-papers, 2016, p. 11-28. HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: SAGE Publications, 2000. LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva. Edições Loyola, 2000 [1997]. PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants part 2:Do they really think differently?. On the horizon, 2001.

  • OS TRÊS IRMÃOS POTTERIANOS: UM OLHAR BAKHTINIANO ACERCA DA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE PERSONAGENS DE HA

    Ana Beatriz Maia Barissa Era uma vez três irmãos… Em O conto dos três irmãos, J. K. Rowling aborda sobre uma antiga crença dentro do mundo bruxo acerca das relíquias da Morte, constituídas da Varinha das Varinhas, a Pedra da Ressurreição e a Capa da Invisibilidade. No conto, um objeto foi dado a cada um dos três irmãos em uma ponte, território da Morte e por onde tentaram atravessar. Tal como acontece com as narrativas populares, o conto traz em si não apenas o modelo tradicional dos contos de fadas, mas também uma moralidade, no que concerne condutas há muito exploradas, tais como humildade e legado e penitência para a ganância e soberba dos seres humanos. Seguindo os pressupostos bakhtinianos de linguagem como as personagens desse conto pertencente à literatura bruxa, ajudam a compreender a constituição dos sujeitos Harry Potter, Voldemort e Severus Snape. A proposta de análise fará suas devidas ressalvas quanto à constituição das personagens como sujeitos que, tal como a concepção dialógica proposta pelo Círculo de Bakhtin, Medviedév e Voloshinov, ambos possuem discursos com vozes outras e dados por relações dialógicas, sejam elas dissonantes ou consonantes. Severus Snape, Voldemort e Harry Potter se tornam uma tríade bastante importante para a composição da saga, tal como os irmãos Peverell. Por sua vez, ambos os trios acabam por constituir uns aos outros como sujeitos, também constituídos pelas vozes presentes nos discursos tanto do próprio conto (narrativa popular de caráter moralista, remetente a toda uma carga ideológica que regem a sociedade e é regido por ela), quanto da saga potteriana. Dessa forma, nossa proposta se volta a um viés tanto teórico, quanto analítico, com conceitos norteadores do nosso trabalho, tais como: enunciado, diálogo e sujeito. Não nos restringiremos à materialidade linguística, uma vez que pretendemos compreender como o conto se relaciona ao meio social no qual está inserido (o mundo bruxo). Partiremos do linguístico (materialidade verbal) rumo ao translinguístico (cultura e sociedade), tal como é trabalhado pelo Círculo. Beedle, o bardo e os contos: A importância da narrativa popular do /no mundo bruxo potteriano Tzvetan Todorov, em uma divisão didática explana acerca da aparição do sobrenatural nas narrativas e como este é percebido pelas personagens do enredo e, por conseguinte, pelo leitor. O Maravilhoso se configura como uma categoria cujo caráter sobrenatural e as criaturas dessa natureza (fadas, duendes, animais falantes) têm a transgressão das leis da física e da natureza nas obras e isso decorre como algo aceito pelo leitor desde o início da leitura. Dentro do maravilhoso é possível encontrar os contos de fadas, as ficções científicas e a literatura de horror. Segundo Todorov, os contos possuem essa diferença em relação ao sobrenatural não por conta da temática, mas o modo pelo qual a narrativa é estruturada, pensada de modo a fazer o leitor se sentir no mesmo plano dos acontecimentos da narrativa e não estranhar ou se assustar com o sobrenatural. Desse modo, os contos de fadas são narrativas de origem popular, cujo legado é carregado por meio da tradição oral e transmitido de geração em geração. Logo após tiveram suas (diversas) versões escritas para, enfim, serem difundidas e transformadas em “um fruto e um bem da coletividade” (VOLOBUEF, 1993, p.100). Por todo o solo (não somente) europeu teremos precursores dessas histórias, com um estudo mais estruturalista iniciado na Rússia por Vladmir Propp sobre os contos de fadas, a fim de se encontrar as similaridades decorrentes dessas narrativas, tais como: Situação introdutória; Surgimento de um problema (doença, pobreza da família, perda ocasionada pela desobediência a alguma proibição, maldades infligidas pelo malfeitor, tais como rapto, abandono etc.); Procura por solução: protagonista ou “herói” sai em viagem com o propósito de cumprir tarefa que lhe foi imposta (resgatar a princesa, buscar a água da vida para o rei moribundo, achar um objeto encantado); Submissão a uma prova: o herói tem que mostrar sua humildade, força, inteligência, coragem, astúcia etc.; Êxito na prova: em consequência de sua boa conduta ou qualidades, o herói conquista a ajuda de um benfeitor (fada madrinha, animal falante) ou adquire um objeto mágico (bolsa sempre cheia de moedas de ouro, chapéu que o torna invisível); Superação da dificuldade imposta pelo malfeitor (que raptou a princesa ou mantém guardada a água da vida): com o auxílio mágico recebido, o herói realiza a sua tarefa; Punição do malfeitor (bruxa, dragão, lobo mau são mortos); Final ditoso: protagonista casa-se com a princesa e/ou enriquece. (VOLOBUEF, 1993, p.101) Outra característica dos contos de fadas acerca do herói é o fato de que todas as personagens que aparecem estarão conectadas diretamente com ele. Seja o ajudante do herói, o inimigo, pessoa salva pelo herói e também as personagens figurantes, como irmãos, por exemplo. Mais um destaque a ser considerado sobre as narrativas maravilhosas é o extremo com que emoções, personalidades, defeitos e qualidades aparecem nas histórias: só há o bom e o mau, o belo e o feio, o amor e o ódio. Não há espaço para o meio termo. Esses moldes mais fechados e universalistas é o que garantirão o propósito do conto e também sua sobrevivência ao longo dos séculos. É necessário ter em mente de que estas narrativas se eternizaram também por conta da função moralista a que sempre foi atribuída. O ensinamento por meio da contação de história é um feito desde os primórdios a fim de orientar crianças, principalmente, sobre condutas e ritos importantes da/na natureza, como nascimento, morte, crescimento e maturação sexual. Entretanto, abordar também sobre o bem e o mal, ensinar sobre a humildade penitência ao que é considerado como correto também sempre foram funções primordiais dos contos maravilhosos e que aparece claramente durante a saga: […] – Que acha? – Perguntou a Hermione; – Ah, Harry – Disse, preocupada –, isso é um monte de besteiras. Não pode ser realmente o significado do símbolo [das Relíquias da Morte] Deve ser a versão excêntrica dele. Que perda de tempo. – Suponho que esse seja o homem que descobriu os Bufadores de Chifre Enrugado – comentou Rony. – Você também não acredita nele? – Perguntou Harry ao amigo. – Bah, essa história é uma dessas coisas que se conta às crianças para ensinar lições de vida, não é? Não saia procurando encrenca, não compre brigas, não mexa com coisas que é melhor deixar em paz? Mantenha a cabeça abaixada, cuide de sua vida e você viverá bem. Pensando bem – acrescentou Rony –, talvez essa história seja para explicar porque varinhas de sabugueiro dão azar. Do que está falando? – É uma dessas superstições, não? “Bruxa nascida em maio com trouxa irá casar”. “Feitiço ao anoitecer desfaz ao amanhecer.” “Varinha de sabugueiro, azar o ano inteiro.” Você já deve ter ouvido. Minha mãe sabe uma porção. – Harry e eu fomos criados por trouxas – lembrou-lhe Hermione –, aprendemos outras superstições. – […] – Acho que tem razão – disse-lhe – É só um conto moral […]. (ROWLING, 2007, p.231) No que concerne Os contos de Beedle, o bardo, ele não fugirá desse modelo tradicional. Especificamente, n’O conto dos três irmãos, temos como situação introdutória três irmãos portadores de magia, que conseguiram ultrapassar um rio perigoso de travessia e onde a própria Morte fazia várias vítimas. A problemática é ocasionada por personagens perdidos, mas pela própria Morte que ilude os irmãos ao fazê-los acreditar estar impressionada com as habilidades mágicas dos irmãos e a procura por solução toma forma dos pedidos de presentes feitos pelas três personagens e que foram oferecidos pela própria Morte: Então, o irmão mais velho, que era um homem combativo, pediu a varinha mais poderosa que existisse: uma varinha que sempre vencesse os duelos para seu dono, uma varinha digna de um bruxo que derrotara a Morte! Ela atravessou a ponte e se dirigiu a um vetusto sabugueiro na margem do rio, fabricou uma varinha de um galho da árvore e entregou-a ao irmão mais velho. Então, o segundo irmão, que era um homem arrogante, resolveu humilhar ainda mais a Morte e pediu o poder de restituir a vida aos que ela levara. Então a Morte apanhou uma pedra da margem do rio e entregou-a ao segundo irmão, dizendo-lhe que a pedra tinha o poder de ressuscitar os mortos. Então, a Morte perguntou ao terceiro e mais moço dos irmãos o que queria. O mais moço era o mais humilde e também o mais sábio dos irmãos, e não confiou na Morte. Pediu, então, algo que lhe permitisse sair daquele lugar sem ser seguido por ela. E a Morte, de má vontade, lhe entregou a própria Capa da Invisibilidade. (ROWLING, 2007, p.228). Ao escolher a Capa da Invisibilidade, o irmão mais novo prova sua humildade (ou seja, sua boa conduta) em não querer humilhar a Morte, como o fez os outros dois irmãos, o que o recompensou com permanência da Capa e a tornou um legado para o filho, diferente dos outros, que tiveram as relíquias perdidas, além da morte precoce. A partir disso, é preciso se atentar aos objetos considerados as Relíquias da Morte. No caso da Varinha das Varinhas, ela se concretiza como o a própria mágica. A mitologia celta é bastante presente na obra de Rowling e, para essa cultura, segundo o Dicionário de símbolos, a varinha é um instrumento de magia por excelência, por simbolizar o poder mágico do druida sobre os elementos. No caso da Pedra da Ressurreição, a pedra tem uma conexão estreita com a alma e, dessa forma, é possível compreender sua ligação com a (vida) pós-morte. No que concerne seu valor místico, a pedra e o homem representam o movimento duplo de subida e descida. Conforme explica Chevalier O homem nasce de Deus e a Ele retorna. A pedra bruta descende do céu, transmuta-se e se eleva a ele. O templo deve ser construído com pedra bruta e não talhada. […] A pedra talhada, em efeito, nada mais é do que obra humana; profana a obra de Deus, simboliza a ação humana que substitui a energia da Criação. A pedra bruta é também símbolo da liberdade, a pedra talhada, de servidão e trevas. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1986, 828, tradução livre)[1] No que concerne a Capa da Invisibilidade, se faz necessário ressaltar, uma vez mais, a importância da mitologia celta para a construção da saga. No imaginário celta, Mananan Mac Lir era um feiticeiro cruel possuidor de artefatos mágicos, inclusive um manto da invisibilidade, que assumia qualquer cor desejada. Mesmo na crença católica, o manto é uma imagem (pedida em oração) que aparece para simbolizar a proteção e a invisibilidade de tudo aquilo considerado negativo. Compreendidas a importância da narrativa popular (também aplicada dentro do mundo bruxo) e sua moralidade e as significações dos objetos denominados Relíquias da Morte, estabeleceremos no próximo item do artigo, a construção das personagens, Voldemort, Severus Snape e Harry Potter na saga e de como essa tríade, que refletem e refratam ideologias de uma comunidade (não somente) bruxa materializada na e pela linguagem, arena de combate ideológico por excelência entre sujeitos – neste caso, os três irmãos e Harry Potter/ Voldemort/ Severus Snape – repletos de valores, concretizados em discurso e na qual o próprio meio ideológico de manifesta. 2. Os três irmãos: A construção de Voldemort, Severo Snape e Harry Potter no/por meio do conto de Beedle, o bardo Na saga Harry Potter, Voldemort é um bruxo das trevas poderoso, cujo único objetivo é construir uma sociedade bruxa livre das “impurezas” da população não mágica: isto é, sem que haja envolvimento entre bruxos e não mágicos. Uma de suas ambições é conseguir poder e, para tanto, procura pela Varinha das Varinhas. No espaço-tempo da saga, a Varinha se encontra em posse de Albus Dumbledore, diretor da escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Durante o último livro da saga, é mostrado o empenho de Voldemort em conseguir a varinha, tal como é descrito no conto de Beedle, o bardo. Por ser um homem combativo e violento, o irmão mais velho pede uma varinha com a qual possa vencer qualquer batalha. No caso de Voldemort, é por meio de um sistema ditatorial que pretende fazer uma (em sua concepção) limpeza sócio-racial de toda uma comunidade. Bakhtin faz a proposta de uma filosofia da linguagem baseada na interação, ou seja, no diálogo, que ocorre entre enunciados, entre sujeitos e entre enunciados e sujeitos. Dessa forma, compreende-se o enunciado como concreto e dialógico, social e transmissor de valores dos sujeitos que o enunciaram, inseridos em um determinado espaço-tempo. Voldemort é um vilão que vive para e pelo poder acima de qualquer moralidade. Desobedece a ideia base de que é na varinha que recai a escolha de bruxo usuário. Ao conseguir a Varinha das Varinhas, seu feito é conseguido a partir do assassínio. Tal como o Primeiro Irmão, cuja única intenção era a de humilhar a Morte (desafiá-la) e provar sua posição como a de bruxo mais poderoso. A construção de uma personagem referente ao Irmão mais Velho no contexto de produção da saga potteriana tão semelhante aos princípios de Voldemort nos conduz a fazer um diálogo imediato entre ambos os sujeitos, que materializam seus valores em seus discursos. Essa conexão decorre devido à consciência ideológica em torno de um determinado objeto de enunciação, tal qual explana Souza sobre o enunciado que […] existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares fios, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto enunciação, não pode deixar de ser um participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto. (BAKHTIN apud SOUZA, 2002, p.83, grifos do autor) Do mesmo modo ocorre com a personagem Severus Snape e o Segundo Irmão. O Mestre de Poções se tornou um ícone dentro da saga devido à construção dupla desse sujeito e que confere à sua personagem o exemplo máximo da ambivalência humana. Outro ponto que o destaca dentro da saga é a base que o faz trabalhar como espião duplo para os dois maiores bruxos da época: Lily Evans, mãe d eHarry Potter. Nasce daí a construção da personagem Snape refletida e refratada n’O conto dos três irmãos por meio da imagem do Segundo Irmão: Entrementes, o segundo irmão viajou para a própria casa, onde vivia sozinho. Ali, tomou a pedra que tinha o poder de ressuscitar os mortos e virou-a três vezes na mão. Para sua surpresa e alegria, a figura de uma moça que tivera esperança de desposar antes de sua morte precoce surgiu instantaneamente diante dele. Contudo, ela estava triste e fria, como que separada dele por um véu. Embora tivesse retornado ao mundo dos mortais, seu lugar não era ali, e ela sofria. Diante disso, o segundo irmão, enlouquecido pelo desesperado desejo, matou-se para poder verdadeiramente se unir a ela. Então, a Morte levou o segundo irmão. (ROWLING, 2007, p. 228). A imagem de Snape se configura por meio da/ na imagem do Segundo Irmão, do mesmo jeito que o este é construído por/em Snape também. O diálogo social se faz presente e os entrelaces ideológicos se constroem nessas duas personagens. A pedra do Segundo Irmão, conectora do plano terrestre e o plano místico, não transpassa as leis de vida e morte e traz à vida uma mulher de espírito desfalecido. O sacrifício (da vida) é feito a fim de que haja a união no post mortem. Severus Snape também se condicionou a uma vida por uma causa maior por amor (a uma mulher) e que transpassou qualquer valor ético, moral e conduta. No caso de Harry Potter, sua personagem se configura na/por meio da imagem do Terceiro Irmão e cuja Capa da Invisibilidade foi o que o (en)cobriu da Morte até se entregar a ela no devido tempo, tal qual fez o mais novo dos irmãos: – Pensei que ele viria – comentou Voldemort em sua voz clara e aguda, seus olhos postos nas línguas de fogo. – Esperava que viesse. Ninguém falou. Todos pareciam tão apavorados quanto Harry, cujo coração agora saltava contra as costelas como se tivesse decidido escapar do corpo que estava prestes a descartar. Suas mãos estavam suadas, e ele despiu a Capa da Invisibilidade e guardou-a, com a varinha, dentro das vestes. Não queria se sentir tentado a lutar. – Aparentemente… me enganei – disse Voldemort. – Não se enganou. Harry falou o mais alto que pôde, com toda a força que conseguiu reunir: não queria parecer amedrontado. […] Voldemort erguera a varinha. Sua cabeça ainda estava inclinada para um lado, como a de uma criança curiosa, imaginando o que aconteceria se ele prosseguisse. Harry encarou os olhos vermelhos e desejou que acontecesse naquele instante, rapidamente, enquanto ele ainda se mantinha de pé, antes que se descontrolasse, antes que traísse o seu medo… Ele viu a boca se mover e um clarão verde, e tudo desapareceu. (ROWLING, 2007, p.385-386). Embora a Morte procurasse o terceiro irmão durante muitos anos, jamais conseguiu encontrá-lo. Somente quando atingiu uma idade avançada foi que o irmão mais moço despiu a Capa da Invisibilidade e deu-a de presente ao filho. Acolheu, então, a Morte como uma velha amiga e acompanhou-a de bom grado, e, iguais, partiram desta vida. (ROWLING, 2007, p.228). Harry Potter, tal qual acontece com o Terceiro Irmão, torna-se ciente de que não pode (e nem deve) transgredir as leis naturais e desafiar a Morte e foi por isso (e pela Pedra da Ressurreição) que conseguiu ser atingido novamente pela maldição da morte e ainda assim não morrer. Em ambos os discursos (de Harry Potter e do Terceiro Irmão), é possível contemplar a valoração axiológica no que concerne a ideia de Vida versus Morte, diferenciada das de Voldemort (cuja ideia de Morte era inaplicável a si mesmo) e de Snape (que tinha a Morte como redenção ao seu passado) e também do Primeiro e Segundo Irmãos. Harry Potter e o Terceiro Irmão são materialização da aceitação da ordem natural da vida e que não existe a possibilidade da transgressão dessas leis. Algumas considerações… Na história, buscamos contemplar a relação entre os irmãos e a Morte, ao passo de como é construída esta relação na saga potteriana entre Harry Potter, Severus Snape e Voldemort e a Morte. Em cada construção genérica enunciativa, discursos são inseridos em sua construção arquitetônica. Ambos discursos (Tríade potteriana e Três Irmãos) são plenos de valores sociais, já que se constituem por vozes de sujeitos inseridos em determinado espaço tempo. Desse modo, é possível compreender a importância do sujeito para a construção desses enunciados. O sujeito é parte fundamental no ato de enunciar. Por ser colocado sob um posicionamento responsivo e responsável, o enunciado responde a outros enunciados, carregados de vozes sociais. Essas vozes trarão em si posicionamentos variados de sujeitos situados em espaços-tempos diferentes, o que nos faz voltar no postulado bakhtiniano da linguagem como dialógica. Essa condição está fundamentada na interação entre sujeitos responsivos, cuja natureza é de uso social e interacional por meio de enunciados. Referência Bibliográfica BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997 BETELLHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2014. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. ROWLING, J. K. Os contos de Beedle, o bardo. Trad. Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. ROWLING, J. K. Harry Potter e as relíquias da morte. Trad. Lia Wyler, Rio de Janeiro: Rocco, 2007. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. CopyMarket, 2001 SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto: círculo de Bakhtin/Volochinov/Medvedev – 2 ed. – São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002. VOLOBUEF, Karin; ALVAREZ, Roxana Guadalupe Herrera (Org.); WIMMER, Norma (Org.) Dimensões do fantástico, mítico e maravilhoso. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. VOLOCHINOV, V. A Construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João, 2013. [1] El hombre nace de Dios y retorna a Dios. La piedra bruta desciende Del cielo; transmudada, se eleva hacia él. El templo debe construirse com piedra bruta, no com piedra tallada. […] La piedra labrada no es em efecto más que obra humana; profana La obra de Dios, simboliza La acción humana que substituye a la energia creadora. La piedra bruta es también símbolo de libertad, la piedra tallada de servidumbre y de tinieblas.

  • OS TRÊS IRMÃOS POTTERIANOS: UM OLHAR BAKHTINIANO ACERCA DA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE PERSONAGENS DE HA

    Ana Beatriz Maia Barissa Era uma vez três irmãos… Em O conto dos três irmãos, J. K. Rowling aborda sobre uma antiga crença dentro do mundo bruxo acerca das relíquias da Morte, constituídas da Varinha das Varinhas, a Pedra da Ressurreição e a Capa da Invisibilidade. No conto, um objeto foi dado a cada um dos três irmãos em uma ponte, território da Morte e por onde tentaram atravessar. Tal como acontece com as narrativas populares, o conto traz em si não apenas o modelo tradicional dos contos de fadas, mas também uma moralidade, no que concerne condutas há muito exploradas, tais como humildade e legado e penitência para a ganância e soberba dos seres humanos. Seguindo os pressupostos bakhtinianos de linguagem como as personagens desse conto pertencente à literatura bruxa, ajudam a compreender a constituição dos sujeitos Harry Potter, Voldemort e Severus Snape. A proposta de análise fará suas devidas ressalvas quanto à constituição das personagens como sujeitos que, tal como a concepção dialógica proposta pelo Círculo de Bakhtin, Medviedév e Voloshinov, ambos possuem discursos com vozes outras e dados por relações dialógicas, sejam elas dissonantes ou consonantes. Severus Snape, Voldemort e Harry Potter se tornam uma tríade bastante importante para a composição da saga, tal como os irmãos Peverell. Por sua vez, ambos os trios acabam por constituir uns aos outros como sujeitos, também constituídos pelas vozes presentes nos discursos tanto do próprio conto (narrativa popular de caráter moralista, remetente a toda uma carga ideológica que regem a sociedade e é regido por ela), quanto da saga potteriana. Dessa forma, nossa proposta se volta a um viés tanto teórico, quanto analítico, com conceitos norteadores do nosso trabalho, tais como: enunciado, diálogo e sujeito. Não nos restringiremos à materialidade linguística, uma vez que pretendemos compreender como o conto se relaciona ao meio social no qual está inserido (o mundo bruxo). Partiremos do linguístico (materialidade verbal) rumo ao translinguístico (cultura e sociedade), tal como é trabalhado pelo Círculo. Beedle, o bardo e os contos: A importância da narrativa popular do /no mundo bruxo potteriano Tzvetan Todorov, em uma divisão didática explana acerca da aparição do sobrenatural nas narrativas e como este é percebido pelas personagens do enredo e, por conseguinte, pelo leitor. O Maravilhoso se configura como uma categoria cujo caráter sobrenatural e as criaturas dessa natureza (fadas, duendes, animais falantes) têm a transgressão das leis da física e da natureza nas obras e isso decorre como algo aceito pelo leitor desde o início da leitura. Dentro do maravilhoso é possível encontrar os contos de fadas, as ficções científicas e a literatura de horror. Segundo Todorov, os contos possuem essa diferença em relação ao sobrenatural não por conta da temática, mas o modo pelo qual a narrativa é estruturada, pensada de modo a fazer o leitor se sentir no mesmo plano dos acontecimentos da narrativa e não estranhar ou se assustar com o sobrenatural. Desse modo, os contos de fadas são narrativas de origem popular, cujo legado é carregado por meio da tradição oral e transmitido de geração em geração. Logo após tiveram suas (diversas) versões escritas para, enfim, serem difundidas e transformadas em “um fruto e um bem da coletividade” (VOLOBUEF, 1993, p.100). Por todo o solo (não somente) europeu teremos precursores dessas histórias, com um estudo mais estruturalista iniciado na Rússia por Vladmir Propp sobre os contos de fadas, a fim de se encontrar as similaridades decorrentes dessas narrativas, tais como: Situação introdutória; Surgimento de um problema (doença, pobreza da família, perda ocasionada pela desobediência a alguma proibição, maldades infligidas pelo malfeitor, tais como rapto, abandono etc.); Procura por solução: protagonista ou “herói” sai em viagem com o propósito de cumprir tarefa que lhe foi imposta (resgatar a princesa, buscar a água da vida para o rei moribundo, achar um objeto encantado); Submissão a uma prova: o herói tem que mostrar sua humildade, força, inteligência, coragem, astúcia etc.; Êxito na prova: em consequência de sua boa conduta ou qualidades, o herói conquista a ajuda de um benfeitor (fada madrinha, animal falante) ou adquire um objeto mágico (bolsa sempre cheia de moedas de ouro, chapéu que o torna invisível); Superação da dificuldade imposta pelo malfeitor (que raptou a princesa ou mantém guardada a água da vida): com o auxílio mágico recebido, o herói realiza a sua tarefa; Punição do malfeitor (bruxa, dragão, lobo mau são mortos); Final ditoso: protagonista casa-se com a princesa e/ou enriquece. (VOLOBUEF, 1993, p.101) Outra característica dos contos de fadas acerca do herói é o fato de que todas as personagens que aparecem estarão conectadas diretamente com ele. Seja o ajudante do herói, o inimigo, pessoa salva pelo herói e também as personagens figurantes, como irmãos, por exemplo. Mais um destaque a ser considerado sobre as narrativas maravilhosas é o extremo com que emoções, personalidades, defeitos e qualidades aparecem nas histórias: só há o bom e o mau, o belo e o feio, o amor e o ódio. Não há espaço para o meio termo. Esses moldes mais fechados e universalistas é o que garantirão o propósito do conto e também sua sobrevivência ao longo dos séculos. É necessário ter em mente de que estas narrativas se eternizaram também por conta da função moralista a que sempre foi atribuída. O ensinamento por meio da contação de história é um feito desde os primórdios a fim de orientar crianças, principalmente, sobre condutas e ritos importantes da/na natureza, como nascimento, morte, crescimento e maturação sexual. Entretanto, abordar também sobre o bem e o mal, ensinar sobre a humildade penitência ao que é considerado como correto também sempre foram funções primordiais dos contos maravilhosos e que aparece claramente durante a saga: […] – Que acha? – Perguntou a Hermione; – Ah, Harry – Disse, preocupada –, isso é um monte de besteiras. Não pode ser realmente o significado do símbolo [das Relíquias da Morte] Deve ser a versão excêntrica dele. Que perda de tempo. – Suponho que esse seja o homem que descobriu os Bufadores de Chifre Enrugado – comentou Rony. – Você também não acredita nele? – Perguntou Harry ao amigo. – Bah, essa história é uma dessas coisas que se conta às crianças para ensinar lições de vida, não é? Não saia procurando encrenca, não compre brigas, não mexa com coisas que é melhor deixar em paz? Mantenha a cabeça abaixada, cuide de sua vida e você viverá bem. Pensando bem – acrescentou Rony –, talvez essa história seja para explicar porque varinhas de sabugueiro dão azar. Do que está falando? – É uma dessas superstições, não? “Bruxa nascida em maio com trouxa irá casar”. “Feitiço ao anoitecer desfaz ao amanhecer.” “Varinha de sabugueiro, azar o ano inteiro.” Você já deve ter ouvido. Minha mãe sabe uma porção. – Harry e eu fomos criados por trouxas – lembrou-lhe Hermione –, aprendemos outras superstições. – […] – Acho que tem razão – disse-lhe – É só um conto moral […]. (ROWLING, 2007, p.231) No que concerne Os contos de Beedle, o bardo, ele não fugirá desse modelo tradicional. Especificamente, n’O conto dos três irmãos, temos como situação introdutória três irmãos portadores de magia, que conseguiram ultrapassar um rio perigoso de travessia e onde a própria Morte fazia várias vítimas. A problemática é ocasionada por personagens perdidos, mas pela própria Morte que ilude os irmãos ao fazê-los acreditar estar impressionada com as habilidades mágicas dos irmãos e a procura por solução toma forma dos pedidos de presentes feitos pelas três personagens e que foram oferecidos pela própria Morte: Então, o irmão mais velho, que era um homem combativo, pediu a varinha mais poderosa que existisse: uma varinha que sempre vencesse os duelos para seu dono, uma varinha digna de um bruxo que derrotara a Morte! Ela atravessou a ponte e se dirigiu a um vetusto sabugueiro na margem do rio, fabricou uma varinha de um galho da árvore e entregou-a ao irmão mais velho. Então, o segundo irmão, que era um homem arrogante, resolveu humilhar ainda mais a Morte e pediu o poder de restituir a vida aos que ela levara. Então a Morte apanhou uma pedra da margem do rio e entregou-a ao segundo irmão, dizendo-lhe que a pedra tinha o poder de ressuscitar os mortos. Então, a Morte perguntou ao terceiro e mais moço dos irmãos o que queria. O mais moço era o mais humilde e também o mais sábio dos irmãos, e não confiou na Morte. Pediu, então, algo que lhe permitisse sair daquele lugar sem ser seguido por ela. E a Morte, de má vontade, lhe entregou a própria Capa da Invisibilidade. (ROWLING, 2007, p.228). Ao escolher a Capa da Invisibilidade, o irmão mais novo prova sua humildade (ou seja, sua boa conduta) em não querer humilhar a Morte, como o fez os outros dois irmãos, o que o recompensou com permanência da Capa e a tornou um legado para o filho, diferente dos outros, que tiveram as relíquias perdidas, além da morte precoce. A partir disso, é preciso se atentar aos objetos considerados as Relíquias da Morte. No caso da Varinha das Varinhas, ela se concretiza como o a própria mágica. A mitologia celta é bastante presente na obra de Rowling e, para essa cultura, segundo o Dicionário de símbolos, a varinha é um instrumento de magia por excelência, por simbolizar o poder mágico do druida sobre os elementos. No caso da Pedra da Ressurreição, a pedra tem uma conexão estreita com a alma e, dessa forma, é possível compreender sua ligação com a (vida) pós-morte. No que concerne seu valor místico, a pedra e o homem representam o movimento duplo de subida e descida. Conforme explica Chevalier O homem nasce de Deus e a Ele retorna. A pedra bruta descende do céu, transmuta-se e se eleva a ele. O templo deve ser construído com pedra bruta e não talhada. […] A pedra talhada, em efeito, nada mais é do que obra humana; profana a obra de Deus, simboliza a ação humana que substitui a energia da Criação. A pedra bruta é também símbolo da liberdade, a pedra talhada, de servidão e trevas. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1986, 828, tradução livre)[1] No que concerne a Capa da Invisibilidade, se faz necessário ressaltar, uma vez mais, a importância da mitologia celta para a construção da saga. No imaginário celta, Mananan Mac Lir era um feiticeiro cruel possuidor de artefatos mágicos, inclusive um manto da invisibilidade, que assumia qualquer cor desejada. Mesmo na crença católica, o manto é uma imagem (pedida em oração) que aparece para simbolizar a proteção e a invisibilidade de tudo aquilo considerado negativo. Compreendidas a importância da narrativa popular (também aplicada dentro do mundo bruxo) e sua moralidade e as significações dos objetos denominados Relíquias da Morte, estabeleceremos no próximo item do artigo, a construção das personagens, Voldemort, Severus Snape e Harry Potter na saga e de como essa tríade, que refletem e refratam ideologias de uma comunidade (não somente) bruxa materializada na e pela linguagem, arena de combate ideológico por excelência entre sujeitos – neste caso, os três irmãos e Harry Potter/ Voldemort/ Severus Snape – repletos de valores, concretizados em discurso e na qual o próprio meio ideológico de manifesta. 2. Os três irmãos: A construção de Voldemort, Severo Snape e Harry Potter no/por meio do conto de Beedle, o bardo Na saga Harry Potter, Voldemort é um bruxo das trevas poderoso, cujo único objetivo é construir uma sociedade bruxa livre das “impurezas” da população não mágica: isto é, sem que haja envolvimento entre bruxos e não mágicos. Uma de suas ambições é conseguir poder e, para tanto, procura pela Varinha das Varinhas. No espaço-tempo da saga, a Varinha se encontra em posse de Albus Dumbledore, diretor da escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Durante o último livro da saga, é mostrado o empenho de Voldemort em conseguir a varinha, tal como é descrito no conto de Beedle, o bardo. Por ser um homem combativo e violento, o irmão mais velho pede uma varinha com a qual possa vencer qualquer batalha. No caso de Voldemort, é por meio de um sistema ditatorial que pretende fazer uma (em sua concepção) limpeza sócio-racial de toda uma comunidade. Bakhtin faz a proposta de uma filosofia da linguagem baseada na interação, ou seja, no diálogo, que ocorre entre enunciados, entre sujeitos e entre enunciados e sujeitos. Dessa forma, compreende-se o enunciado como concreto e dialógico, social e transmissor de valores dos sujeitos que o enunciaram, inseridos em um determinado espaço-tempo. Voldemort é um vilão que vive para e pelo poder acima de qualquer moralidade. Desobedece a ideia base de que é na varinha que recai a escolha de bruxo usuário. Ao conseguir a Varinha das Varinhas, seu feito é conseguido a partir do assassínio. Tal como o Primeiro Irmão, cuja única intenção era a de humilhar a Morte (desafiá-la) e provar sua posição como a de bruxo mais poderoso. A construção de uma personagem referente ao Irmão mais Velho no contexto de produção da saga potteriana tão semelhante aos princípios de Voldemort nos conduz a fazer um diálogo imediato entre ambos os sujeitos, que materializam seus valores em seus discursos. Essa conexão decorre devido à consciência ideológica em torno de um determinado objeto de enunciação, tal qual explana Souza sobre o enunciado que […] existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares fios, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto enunciação, não pode deixar de ser um participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto. (BAKHTIN apud SOUZA, 2002, p.83, grifos do autor) Do mesmo modo ocorre com a personagem Severus Snape e o Segundo Irmão. O Mestre de Poções se tornou um ícone dentro da saga devido à construção dupla desse sujeito e que confere à sua personagem o exemplo máximo da ambivalência humana. Outro ponto que o destaca dentro da saga é a base que o faz trabalhar como espião duplo para os dois maiores bruxos da época: Lily Evans, mãe d eHarry Potter. Nasce daí a construção da personagem Snape refletida e refratada n’O conto dos três irmãos por meio da imagem do Segundo Irmão: Entrementes, o segundo irmão viajou para a própria casa, onde vivia sozinho. Ali, tomou a pedra que tinha o poder de ressuscitar os mortos e virou-a três vezes na mão. Para sua surpresa e alegria, a figura de uma moça que tivera esperança de desposar antes de sua morte precoce surgiu instantaneamente diante dele. Contudo, ela estava triste e fria, como que separada dele por um véu. Embora tivesse retornado ao mundo dos mortais, seu lugar não era ali, e ela sofria. Diante disso, o segundo irmão, enlouquecido pelo desesperado desejo, matou-se para poder verdadeiramente se unir a ela. Então, a Morte levou o segundo irmão. (ROWLING, 2007, p. 228). A imagem de Snape se configura por meio da/ na imagem do Segundo Irmão, do mesmo jeito que o este é construído por/em Snape também. O diálogo social se faz presente e os entrelaces ideológicos se constroem nessas duas personagens. A pedra do Segundo Irmão, conectora do plano terrestre e o plano místico, não transpassa as leis de vida e morte e traz à vida uma mulher de espírito desfalecido. O sacrifício (da vida) é feito a fim de que haja a união no post mortem. Severus Snape também se condicionou a uma vida por uma causa maior por amor (a uma mulher) e que transpassou qualquer valor ético, moral e conduta. No caso de Harry Potter, sua personagem se configura na/por meio da imagem do Terceiro Irmão e cuja Capa da Invisibilidade foi o que o (en)cobriu da Morte até se entregar a ela no devido tempo, tal qual fez o mais novo dos irmãos: – Pensei que ele viria – comentou Voldemort em sua voz clara e aguda, seus olhos postos nas línguas de fogo. – Esperava que viesse. Ninguém falou. Todos pareciam tão apavorados quanto Harry, cujo coração agora saltava contra as costelas como se tivesse decidido escapar do corpo que estava prestes a descartar. Suas mãos estavam suadas, e ele despiu a Capa da Invisibilidade e guardou-a, com a varinha, dentro das vestes. Não queria se sentir tentado a lutar. – Aparentemente… me enganei – disse Voldemort. – Não se enganou. Harry falou o mais alto que pôde, com toda a força que conseguiu reunir: não queria parecer amedrontado. […] Voldemort erguera a varinha. Sua cabeça ainda estava inclinada para um lado, como a de uma criança curiosa, imaginando o que aconteceria se ele prosseguisse. Harry encarou os olhos vermelhos e desejou que acontecesse naquele instante, rapidamente, enquanto ele ainda se mantinha de pé, antes que se descontrolasse, antes que traísse o seu medo… Ele viu a boca se mover e um clarão verde, e tudo desapareceu. (ROWLING, 2007, p.385-386). Embora a Morte procurasse o terceiro irmão durante muitos anos, jamais conseguiu encontrá-lo. Somente quando atingiu uma idade avançada foi que o irmão mais moço despiu a Capa da Invisibilidade e deu-a de presente ao filho. Acolheu, então, a Morte como uma velha amiga e acompanhou-a de bom grado, e, iguais, partiram desta vida. (ROWLING, 2007, p.228). Harry Potter, tal qual acontece com o Terceiro Irmão, torna-se ciente de que não pode (e nem deve) transgredir as leis naturais e desafiar a Morte e foi por isso (e pela Pedra da Ressurreição) que conseguiu ser atingido novamente pela maldição da morte e ainda assim não morrer. Em ambos os discursos (de Harry Potter e do Terceiro Irmão), é possível contemplar a valoração axiológica no que concerne a ideia de Vida versus Morte, diferenciada das de Voldemort (cuja ideia de Morte era inaplicável a si mesmo) e de Snape (que tinha a Morte como redenção ao seu passado) e também do Primeiro e Segundo Irmãos. Harry Potter e o Terceiro Irmão são materialização da aceitação da ordem natural da vida e que não existe a possibilidade da transgressão dessas leis. Algumas considerações… Na história, buscamos contemplar a relação entre os irmãos e a Morte, ao passo de como é construída esta relação na saga potteriana entre Harry Potter, Severus Snape e Voldemort e a Morte. Em cada construção genérica enunciativa, discursos são inseridos em sua construção arquitetônica. Ambos discursos (Tríade potteriana e Três Irmãos) são plenos de valores sociais, já que se constituem por vozes de sujeitos inseridos em determinado espaço tempo. Desse modo, é possível compreender a importância do sujeito para a construção desses enunciados. O sujeito é parte fundamental no ato de enunciar. Por ser colocado sob um posicionamento responsivo e responsável, o enunciado responde a outros enunciados, carregados de vozes sociais. Essas vozes trarão em si posicionamentos variados de sujeitos situados em espaços-tempos diferentes, o que nos faz voltar no postulado bakhtiniano da linguagem como dialógica. Essa condição está fundamentada na interação entre sujeitos responsivos, cuja natureza é de uso social e interacional por meio de enunciados. Referência Bibliográfica BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997 BETELLHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2014. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. ROWLING, J. K. Os contos de Beedle, o bardo. Trad. Lia Wyler. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. ROWLING, J. K. Harry Potter e as relíquias da morte. Trad. Lia Wyler, Rio de Janeiro: Rocco, 2007. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. CopyMarket, 2001 SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto: círculo de Bakhtin/Volochinov/Medvedev – 2 ed. – São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002. VOLOBUEF, Karin; ALVAREZ, Roxana Guadalupe Herrera (Org.); WIMMER, Norma (Org.) Dimensões do fantástico, mítico e maravilhoso. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. VOLOCHINOV, V. A Construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João, 2013. [1] El hombre nace de Dios y retorna a Dios. La piedra bruta desciende Del cielo; transmudada, se eleva hacia él. El templo debe construirse com piedra bruta, no com piedra tallada. […] La piedra labrada no es em efecto más que obra humana; profana La obra de Dios, simboliza La acción humana que substituye a la energia creadora. La piedra bruta es también símbolo de libertad, la piedra tallada de servidumbre y de tinieblas.

  • As relações de alteridade em tempos de pandemia: breves reflexões

    Tatiele Silva Nos últimos meses, o país e o mundo têm enfrentado tempos difíceis em decorrência da pandemia de COVID-19. As relações entre os sujeitos e as dinâmicas de encontros passaram por transformações mediante esse cenário. O sujeito se dá na relação com o outro conforme a teoria bakhtiniana e as relações de alteridade são moldadas pelas vivências sociais. Nesse sentido, a comunicação cotidiana presente nas vivências dos sujeitos influencia as relações e como elas ocorrem. No contexto de pandemia, as interações físicas foram substituídas pela interação mediada por redes sociais, telas e encontros virtuais com o objetivo de evitar o contato físico e diminuir a disseminação da doença. Os sujeitos se adaptaram e passaram a vivenciar a vida de uma outra forma com o intuito de manter as relações, os vínculos afetivos e se comunicar com o outro. A comunicação entre os sujeitos é essencial para a alteridade, principalmente, tendo em vista que a solidão física e o isolamento social trouxeram aos sujeitos a urgência de compreender como as dinâmicas da vida cotidiana são essenciais, desde as celebrações festivas (festas, aniversários e datas comemorativas) até as ações mais simples, como passear pela cidade. A simplicidade da vida cotidiana, o encontro físico dos sujeitos e os seus rituais passaram a ter um sentido diferente quando o sujeito é privado de exercer essas vivências em função de uma doença contagiosa. Os gestos de afeição (abraço, aperto de mão e beijo) adquiriram um sentido ambíguo, ao mesmo tempo que o gesto implica a afeição também retoma o medo do contágio pelo toque. Os gestos físicos e os toques, ações que fazem parte das vivências humanas, foram transformados e ressignificados nesse contexto. O cenário da pandemia, caracterizado por muitas incertezas, faz com que a “resiliência”, a “resistência” e a “sobrevivência” sejam palavras essenciais e mobilizadoras das relações de alteridade na sociedade. Essas palavras têm uma valoração importante no contexto de crise social e são parte dos enunciados e das relações de alteridade. A “resiliência”, a “resistência” e a “sobrevivência” fazem parte do gesto, do olhar, do comentário, da conversa e do áudio do WhatsApp. Elas têm a valoração de elemento que move o sujeito, a continuidade das relações de alteridade e a própria vida, como força impulsionadora. Cada sujeito é peculiar e único, composto pela sua vida cotidiana e pelas relações estabelecidas com o outro. Desse ponto de vista, a vida de cada sujeito é insubstituível. As relações alteridade mantém o sujeito vivo como voz ressoante nos enunciados e em outros sujeitos como continuidade de ser resiliência, resistência e sobrevivência na busca pelo respeito à vida de cada sujeito. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. GERALDI, J.W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin–Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010. PAULA, L. DE; SIANI, A. C. Uma análise bakhtiniana da necropolítica brasileira em tempos de pandemia. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 475-503, 17 dez. 2020.

  • As relações de alteridade em tempos de pandemia: breves reflexões

    Tatiele Silva Nos últimos meses, o país e o mundo têm enfrentado tempos difíceis em decorrência da pandemia de COVID-19. As relações entre os sujeitos e as dinâmicas de encontros passaram por transformações mediante esse cenário. O sujeito se dá na relação com o outro conforme a teoria bakhtiniana e as relações de alteridade são moldadas pelas vivências sociais. Nesse sentido, a comunicação cotidiana presente nas vivências dos sujeitos influencia as relações e como elas ocorrem. No contexto de pandemia, as interações físicas foram substituídas pela interação mediada por redes sociais, telas e encontros virtuais com o objetivo de evitar o contato físico e diminuir a disseminação da doença. Os sujeitos se adaptaram e passaram a vivenciar a vida de uma outra forma com o intuito de manter as relações, os vínculos afetivos e se comunicar com o outro. A comunicação entre os sujeitos é essencial para a alteridade, principalmente, tendo em vista que a solidão física e o isolamento social trouxeram aos sujeitos a urgência de compreender como as dinâmicas da vida cotidiana são essenciais, desde as celebrações festivas (festas, aniversários e datas comemorativas) até as ações mais simples, como passear pela cidade. A simplicidade da vida cotidiana, o encontro físico dos sujeitos e os seus rituais passaram a ter um sentido diferente quando o sujeito é privado de exercer essas vivências em função de uma doença contagiosa. Os gestos de afeição (abraço, aperto de mão e beijo) adquiriram um sentido ambíguo, ao mesmo tempo que o gesto implica a afeição também retoma o medo do contágio pelo toque. Os gestos físicos e os toques, ações que fazem parte das vivências humanas, foram transformados e ressignificados nesse contexto. O cenário da pandemia, caracterizado por muitas incertezas, faz com que a “resiliência”, a “resistência” e a “sobrevivência” sejam palavras essenciais e mobilizadoras das relações de alteridade na sociedade. Essas palavras têm uma valoração importante no contexto de crise social e são parte dos enunciados e das relações de alteridade. A “resiliência”, a “resistência” e a “sobrevivência” fazem parte do gesto, do olhar, do comentário, da conversa e do áudio do WhatsApp. Elas têm a valoração de elemento que move o sujeito, a continuidade das relações de alteridade e a própria vida, como força impulsionadora. Cada sujeito é peculiar e único, composto pela sua vida cotidiana e pelas relações estabelecidas com o outro. Desse ponto de vista, a vida de cada sujeito é insubstituível. As relações alteridade mantém o sujeito vivo como voz ressoante nos enunciados e em outros sujeitos como continuidade de ser resiliência, resistência e sobrevivência na busca pelo respeito à vida de cada sujeito. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. GERALDI, J.W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Volume 1. Série Bakhtin–Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010. PAULA, L. DE; SIANI, A. C. Uma análise bakhtiniana da necropolítica brasileira em tempos de pandemia. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 475-503, 17 dez. 2020.

  • O ensino de gêneros discursivos: a questão do ato estético

    Jéssica de Castro Gonçalves O gênero discursivo e a escola. Você pode estar pensando nesse momento: “Lá vem mais um texto com teorizações, instruções e soluções acerca do uso do gênero discursivo na sala de aula”. Sim! Esse é o tema motivador desse texto, já que navego por essas águas turbulentas desde o meu mestrado. Não! Não pretendo trazer soluções salvadoras ou instruções sobre a abordagem certa ou errada do gênero discursivo no processo de ensino-aprendizagem. Convido-o, no entanto, a discutir e polemizar sobre dois pontos: o que seria gênero discursivo? De que forma lê-lo, pensá-lo e estudá-lo envolve mais do que um simples ato de ler, mas um ato estético. Como já afirmei no parágrafo anterior, preocupo-me com a questão do gênero discursivo e sua presença no contexto educacional há algum tempo. No mestrado, volvi os olhares para a relação de alunos pré-vestibulandos com o gênero discursivo tira de humor, para discutir a possível não compreensão por parte deles de tal gênero. No doutorado, atualmente, reflito sobre a ressignificação de romances canônicos em outros gêneros, a fim de compreender a aceitação ou não desses gêneros recriados como oficiais no contexto educacional. Tanto em uma como em outra destas pesquisas, a mesma problemática veio e continua vindo à tona: o que é gênero discursivo? Seria este pensado em sua complexidade quando no contexto escolar e até mesmo fora dele? Afirma-se, a partir dos estudos desenvolvidos pelo conhecido no Brasil de Círculo de Bakhtin, que gênero é conteúdo, forma e estilo. No tão conhecido texto Gêneros do discurso de Mikhail Bakhtin, componente das bibliografias dos PCN’s e de concursos de docentes da educação básica encontramos a seguinte definição: Todos estes três elementos- o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2011, p. 261-262) Segundo as palavras de Bakhtin acima gêneros do discurso são enunciados relativamente estáveis e esses são compostos por conteúdo temático, estilo e construção composicional. Problema resolvido! Pergunta Respondida! Gênero nada mais é que uma forma de enunciado estabilizada, onde um conteúdo qualquer é expresso por uma materialidade de linguagem a qual é enformada em uma determinada construção composicional e apresenta marcas na linguagem de seu autor. Equívoco! O gênero não nasce só do encaixe de um elemento no outro, não é uma boneca russa em que eu vou colocando um elemento dentro do outro para atingir o todo. Os problemas quanto ao seu entendimento estão relacionados ao tratamento recorrente de operação de adição: tema + forma + estilo = GÊNERO. Essa segmentação do gênero em partes e o tratamento recorrente dessas, como independentes, gera equívocos no ensinar, aprender e compreender gênero discursivo. Em muitos momentos essas partes não são tratadas só como independentes mas como únicas e principais no gênero. Ora observamos a redução do gênero a sua forma, ora a seu conteúdo e ora a seu estilo. Julgar uma adaptação literária para outro gênero boa ou ruim pela semelhança ou não com o enredo original é reduzir o gênero ao conteúdo sem levar em consideração a relação desse com sua construção e suas particularidades estilísticas. Ensinar e pensar gênero discursivo em sala de aula como resultante de um conjunto de procedimentos e regras de montagem é não só reduzí-lo a forma, mas também pensar essa forma como algo engessado e prescrito. Focaliza-se, comumente, na citação acima que gênero é forma, conteúdo e estilo, mas esquece-se de duas palavras que ali aparecem e fazem uma grande diferença e tremenda relação entre esses elementos: INDISSOLUVEMENTE ligados. Forma, conteúdo e estilo, para começar a conversa apenas, não podem ser compreendidos em sua complexidade de forma separada. Um se constitui na relação com o outro. Segundo Bakhtin (1988) a forma não é simplesmente a forma dada a um simples material e o conteúdo não é simplesmente uma determinação objetal engendrada numa forma qualquer. Ao falar sobre a produção da obra de arte, em Problema do Conteúdo do Material e da forma na criação literária, Bakhtin (1988) vai discutir a relação forma- material e conteúdo, e apesar de ele estar falando sobre a produção artística, essa relação por ele discutida nos serve para pensarmos a existente no gênero e essa indissolubilidade afirmada em Bakhtin (2011) A forma artisticamente significativa se refere na realidade a algo, ela está orientada sobre um valor além do material ao qual se prende e com o qual está indissoluvelmente ligada. Parece-nos indispensável admitir um momento do conteúdo que permitiria interpretar a forma de modo mais substancial do que o hedonista grosseiro. (BAKHTIN, 1988, p. 21) Percebe-se novamente a afirmação da indissolubilidade entre forma, conteúdo e aí acrescentado o material. Mais a frente ele defende novamente que “o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são indissolúveis para a análise estética” (Bakhtin, 1988, p. 35). Bakhtin (1988) discute que a forma de uma produção não é somente uma organização de um material qualquer (linguístico ou não) para falar de um objeto, de um tema. Ele defende que as relações estabelecidas entre a forma e o material que a ela constituí, bem como a as relações entre ela e o conteúdo temático, são axiológicas, são valorativas. A forma realizada no material é a forma de um conteúdo e relaciona-se axiologicamente com ele. A forma é a expressão da relação axiológica ativa do autor-criador e do indivíduo que percebe (co-criador da forma) com o conteúdo; todos os momentos da obra, nos quais podemos sentir a nossa presença, a nossa atividade relacionada axiologicamente com o conteúdo, e que são superados na sua materialidade por essa atividade, devem ser relacionados com a forma. (BAKHTIN, 1988, p. 59) As significações e valorações de uma produção, em qualquer gênero, não estão presentes apenas no seu conteúdo, mas também na maneira como este aparece arquitetado em um material por meio de uma forma. São indissolúveis. A essa indissolubilidade do estilo a esses dois elementos, também é defendida por Bakhtin “ o estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento” (BAKHTIN, 2011, p.266). O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipo de de construção do conjunto, de tipos de seu acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro (BAKHTIN, 2011. 266) Percebe-se, fundamentado em alguns trechos do Círculo de Bakhtin, que dizer que gênero é conteúdo, forma e estilo é dizer que o gênero discursivo se constitui na relação entre esses elementos, os quais são indissolúveis. Pensar, julgar e ensinar um gênero só pela sua forma ou só pelo seu conteúdo, não é falar do gênero em sua completude. Mesmo que haja o foco em um desses três elementos, como objeto de um estudo ou pesquisa específica, cada um deles precisa ser pensado na sua relação com os outros, pois é nessa relação que eles se constituem. Entretanto, falar só da forma, conteúdo e estilo por si, não é falar do gênero como todo. A totalidade artística de qualquer tipo, isto é, de qualquer gênero se orienta na realidade de forma dupla, e as particularidades dessa dupla orientação determinam o tipo dessa totalidade, isto é, seu gênero. Em primeiro lugar a obra se orienta para os ouvintes e os receptores, e para determinadas condições de realização e de percepção. Em segundo lugar, a obra está orientada na vida, como se diz, de dentro, por meio de seu conteúdo temático. A seu modo, cada gênero está tematicamente orientado para a vida, para seus acontecimentos, problemas, e assim por diante. (MEDVEDEV, 2012, P. 195) Estudar gêneros é pensar, além das relações entre forma, conteúdo e estilo, no fato dele estar nutrido no solo sócioideológico. O gênero nasce da vida, constitui-se nas relações sócioideológicas e se constitui nessas e para essas. Segundo Medvedev (2012), analisar enunciados constituídos em gêneros é considerar as particularidades sociais dos grupos que interagem e a complexidade do horizonte ideológico no qual se nutre o enunciado. Após essa breve e não esgotada reflexão sobre o que seria gênero, resta-nos ainda o segundo questionamento: de que forma ler e estudar gêneros envolve um certo ato estético? A análise estética, envolve o olhar para a obra em sua constituição, mas também além de suas fronteiras, para a relação com o extra, para a relação do artista com ela, a relação do leitor com ela e a relação dela como solo sócio-ideológico de onde ela se nutre. Segundo Bakhtin (1988) a principal tarefa da análise estética é Compreender o objeto estético sinteticamente, no seu todo, compreender a forma e o conteúdo na sua inter-relação necessária: compreender a forma como forma do conteúdo e o conteúdo como conteúdo da forma, compreender a singularidade e a lei das suas inter-relações. Só com base nessa concepção é possível delinear o sentido correto para uma análise estética concreta das obras particulares. (BAKHTIN, 1988, p.69) Apesar de nem todo gênero estar relacionado a arte, todo estudo de gênero envolve o pensar nas relações conteúdo, forma e estilo e suas relações sócioideológicas. Dessa forma, ler e estudar gênero envolve de certa maneira um ato estético. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. (MEDVEDEV). O método formal nos estudos literários. São Paulo: Contexto, 2012. ___. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993. #Educação #escola #gênero

  • O ensino de gêneros discursivos: a questão do ato estético

    Jéssica de Castro Gonçalves O gênero discursivo e a escola. Você pode estar pensando nesse momento: “Lá vem mais um texto com teorizações, instruções e soluções acerca do uso do gênero discursivo na sala de aula”. Sim! Esse é o tema motivador desse texto, já que navego por essas águas turbulentas desde o meu mestrado. Não! Não pretendo trazer soluções salvadoras ou instruções sobre a abordagem certa ou errada do gênero discursivo no processo de ensino-aprendizagem. Convido-o, no entanto, a discutir e polemizar sobre dois pontos: o que seria gênero discursivo? De que forma lê-lo, pensá-lo e estudá-lo envolve mais do que um simples ato de ler, mas um ato estético. Como já afirmei no parágrafo anterior, preocupo-me com a questão do gênero discursivo e sua presença no contexto educacional há algum tempo. No mestrado, volvi os olhares para a relação de alunos pré-vestibulandos com o gênero discursivo tira de humor, para discutir a possível não compreensão por parte deles de tal gênero. No doutorado, atualmente, reflito sobre a ressignificação de romances canônicos em outros gêneros, a fim de compreender a aceitação ou não desses gêneros recriados como oficiais no contexto educacional. Tanto em uma como em outra destas pesquisas, a mesma problemática veio e continua vindo à tona: o que é gênero discursivo? Seria este pensado em sua complexidade quando no contexto escolar e até mesmo fora dele? Afirma-se, a partir dos estudos desenvolvidos pelo conhecido no Brasil de Círculo de Bakhtin, que gênero é conteúdo, forma e estilo. No tão conhecido texto Gêneros do discurso de Mikhail Bakhtin, componente das bibliografias dos PCN’s e de concursos de docentes da educação básica encontramos a seguinte definição: Todos estes três elementos- o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2011, p. 261-262) Segundo as palavras de Bakhtin acima gêneros do discurso são enunciados relativamente estáveis e esses são compostos por conteúdo temático, estilo e construção composicional. Problema resolvido! Pergunta Respondida! Gênero nada mais é que uma forma de enunciado estabilizada, onde um conteúdo qualquer é expresso por uma materialidade de linguagem a qual é enformada em uma determinada construção composicional e apresenta marcas na linguagem de seu autor. Equívoco! O gênero não nasce só do encaixe de um elemento no outro, não é uma boneca russa em que eu vou colocando um elemento dentro do outro para atingir o todo. Os problemas quanto ao seu entendimento estão relacionados ao tratamento recorrente de operação de adição: tema + forma + estilo = GÊNERO. Essa segmentação do gênero em partes e o tratamento recorrente dessas, como independentes, gera equívocos no ensinar, aprender e compreender gênero discursivo. Em muitos momentos essas partes não são tratadas só como independentes mas como únicas e principais no gênero. Ora observamos a redução do gênero a sua forma, ora a seu conteúdo e ora a seu estilo. Julgar uma adaptação literária para outro gênero boa ou ruim pela semelhança ou não com o enredo original é reduzir o gênero ao conteúdo sem levar em consideração a relação desse com sua construção e suas particularidades estilísticas. Ensinar e pensar gênero discursivo em sala de aula como resultante de um conjunto de procedimentos e regras de montagem é não só reduzí-lo a forma, mas também pensar essa forma como algo engessado e prescrito. Focaliza-se, comumente, na citação acima que gênero é forma, conteúdo e estilo, mas esquece-se de duas palavras que ali aparecem e fazem uma grande diferença e tremenda relação entre esses elementos: INDISSOLUVEMENTE ligados. Forma, conteúdo e estilo, para começar a conversa apenas, não podem ser compreendidos em sua complexidade de forma separada. Um se constitui na relação com o outro. Segundo Bakhtin (1988) a forma não é simplesmente a forma dada a um simples material e o conteúdo não é simplesmente uma determinação objetal engendrada numa forma qualquer. Ao falar sobre a produção da obra de arte, em Problema do Conteúdo do Material e da forma na criação literária, Bakhtin (1988) vai discutir a relação forma- material e conteúdo, e apesar de ele estar falando sobre a produção artística, essa relação por ele discutida nos serve para pensarmos a existente no gênero e essa indissolubilidade afirmada em Bakhtin (2011) A forma artisticamente significativa se refere na realidade a algo, ela está orientada sobre um valor além do material ao qual se prende e com o qual está indissoluvelmente ligada. Parece-nos indispensável admitir um momento do conteúdo que permitiria interpretar a forma de modo mais substancial do que o hedonista grosseiro. (BAKHTIN, 1988, p. 21) Percebe-se novamente a afirmação da indissolubilidade entre forma, conteúdo e aí acrescentado o material. Mais a frente ele defende novamente que “o conteúdo e a forma se interpenetram, são inseparáveis, porém, também são indissolúveis para a análise estética” (Bakhtin, 1988, p. 35). Bakhtin (1988) discute que a forma de uma produção não é somente uma organização de um material qualquer (linguístico ou não) para falar de um objeto, de um tema. Ele defende que as relações estabelecidas entre a forma e o material que a ela constituí, bem como a as relações entre ela e o conteúdo temático, são axiológicas, são valorativas. A forma realizada no material é a forma de um conteúdo e relaciona-se axiologicamente com ele. A forma é a expressão da relação axiológica ativa do autor-criador e do indivíduo que percebe (co-criador da forma) com o conteúdo; todos os momentos da obra, nos quais podemos sentir a nossa presença, a nossa atividade relacionada axiologicamente com o conteúdo, e que são superados na sua materialidade por essa atividade, devem ser relacionados com a forma. (BAKHTIN, 1988, p. 59) As significações e valorações de uma produção, em qualquer gênero, não estão presentes apenas no seu conteúdo, mas também na maneira como este aparece arquitetado em um material por meio de uma forma. São indissolúveis. A essa indissolubilidade do estilo a esses dois elementos, também é defendida por Bakhtin “ o estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento” (BAKHTIN, 2011, p.266). O estilo é indissociável de determinadas unidades temáticas e – o que é de especial importância – de determinadas unidades composicionais: de determinados tipo de de construção do conjunto, de tipos de seu acabamento, de tipos de relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros, o discurso do outro (BAKHTIN, 2011. 266) Percebe-se, fundamentado em alguns trechos do Círculo de Bakhtin, que dizer que gênero é conteúdo, forma e estilo é dizer que o gênero discursivo se constitui na relação entre esses elementos, os quais são indissolúveis. Pensar, julgar e ensinar um gênero só pela sua forma ou só pelo seu conteúdo, não é falar do gênero em sua completude. Mesmo que haja o foco em um desses três elementos, como objeto de um estudo ou pesquisa específica, cada um deles precisa ser pensado na sua relação com os outros, pois é nessa relação que eles se constituem. Entretanto, falar só da forma, conteúdo e estilo por si, não é falar do gênero como todo. A totalidade artística de qualquer tipo, isto é, de qualquer gênero se orienta na realidade de forma dupla, e as particularidades dessa dupla orientação determinam o tipo dessa totalidade, isto é, seu gênero. Em primeiro lugar a obra se orienta para os ouvintes e os receptores, e para determinadas condições de realização e de percepção. Em segundo lugar, a obra está orientada na vida, como se diz, de dentro, por meio de seu conteúdo temático. A seu modo, cada gênero está tematicamente orientado para a vida, para seus acontecimentos, problemas, e assim por diante. (MEDVEDEV, 2012, P. 195) Estudar gêneros é pensar, além das relações entre forma, conteúdo e estilo, no fato dele estar nutrido no solo sócioideológico. O gênero nasce da vida, constitui-se nas relações sócioideológicas e se constitui nessas e para essas. Segundo Medvedev (2012), analisar enunciados constituídos em gêneros é considerar as particularidades sociais dos grupos que interagem e a complexidade do horizonte ideológico no qual se nutre o enunciado. Após essa breve e não esgotada reflexão sobre o que seria gênero, resta-nos ainda o segundo questionamento: de que forma ler e estudar gêneros envolve um certo ato estético? A análise estética, envolve o olhar para a obra em sua constituição, mas também além de suas fronteiras, para a relação com o extra, para a relação do artista com ela, a relação do leitor com ela e a relação dela como solo sócio-ideológico de onde ela se nutre. Segundo Bakhtin (1988) a principal tarefa da análise estética é Compreender o objeto estético sinteticamente, no seu todo, compreender a forma e o conteúdo na sua inter-relação necessária: compreender a forma como forma do conteúdo e o conteúdo como conteúdo da forma, compreender a singularidade e a lei das suas inter-relações. Só com base nessa concepção é possível delinear o sentido correto para uma análise estética concreta das obras particulares. (BAKHTIN, 1988, p.69) Apesar de nem todo gênero estar relacionado a arte, todo estudo de gênero envolve o pensar nas relações conteúdo, forma e estilo e suas relações sócioideológicas. Dessa forma, ler e estudar gênero envolve de certa maneira um ato estético. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. M. (MEDVEDEV). O método formal nos estudos literários. São Paulo: Contexto, 2012. ___. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993. #Educação #escola #gênero

  • A Louca: o que a repercussão da canção diz sobre nossa sociedade?

    Bárbara Melissa Santana Ela quer dar Ela quer dar no pé Quem te deu esse direito, moça? Quem você pensa que é? A louca[1] é uma composição de Manuela Tecchio, estudante de jornalismo envolvida na luta pelos direitos feministas. A canção, postada na rede social Youtube, repercutiu nessa e na rede social Facebook, onde foi compartilhada por diversas páginas voltadas à discussão feminista e demais usuários, além de ter se tornado notícia em diversos jornais nacionais. A repercussão foi e está sendo polêmica: por um lado, homens e mulheres felizes por ouvir uma voz ironizando a desigualdade de gênero cristalizada em nosso cotidiano, enquanto por outro, homens e mulheres atacam agressivamente a performance da moça, o movimento feminista e mulheres que tem reclamado da situação histórica de desvantagem social vivida pelas mulheres. Em primeiro plano, nos voltamos à análise da letra da canção que tem um eu lírico machista que “se cansa” da moça feminista que passa a reclamar de suas obrigações por ser mulher e não quer mais assumir as atividades domésticas como dever por ter nascido mulher. O ponto de partida é a voz desse sujeito que não identificamos como homem ou mulher, mas que incorpora a ideologia machista contemporânea. Cada verso da canção remete a um dos clichês relacionado a estereótipos femininos construídos pelo patriarcado. A mulher dona de casa, sob a custódia do pai ou do marido e “bem” comportada. Esses dois estereótipos femininos de “boa moça” são concretizados e denunciados na música como forma de protesto a imposição desses modelos. Ando cansado dessa moça Que agora deu pra reclamar Tá achando ruim lavar a louça E ainda quer se sustentar Ela tá achando que eu sou trouxa Se namorando no espelho de Roupa que não cobre as “coxa’’ Sorrindo de batom vermelho. Além de trazer em primeiro momento resquícios dos estereótipos femininos da “boa moça”, a canção resgata símbolos da libertação feminina, como o reclamar, se sustentar, não cobrir “as coxa” e o batom vermelho. O embate entre a ideologia machista e o empoderamento feminino mediante rompimento dos estereótipos supramencionados se dá no nível do signo e dialoga com questões e discussões históricas incutidas em nossa sociedade. Ouça bem, mulher Mude logo sua conduta Que essa moda feminista É um jeito chique de ser puta Elogiar quando ela passa Agora é coisa de malandro Desse jeito não tem graça Você já tá exagerando A ironia na canção incorpora a crítica latente ao movimento feminista contemporâneo e a incompreensão das questões que motivam essa militância pelos direitos de igualdade de gênero. O ser puta, seria a mulher que exige que a sociedade lhe trate, lhe veja e se dirija a ela com igualdade. Por quais razões, a postura feminina de exigir que seu corpo e sua expressão social sejam respeitadas como as de um homem se torna justificativa para o ódio e desprezo ao movimento feminista? O fortalecimento histórico e milenar do sistema patriarcal que, por sua vez, é intrinsecamente paternalista e machista, gerou a concepção social masculina da inferioridade, fragilidade e malevolência da mulher. Em diversos momentos da história, após o nascimento do sistema patriarcal, ainda na Pré-História, a mulher representou o sujeito calado e submisso. A transgressão desses pilares do patriarcado gerou morte, torturas, estupros e a consolidação cada vez mais aceita da supremacia masculina. Antes da Era Cristã, Aristóteles defende o desprezo pela mulher sobre o pressuposto da inferioridade física, tese que se revigorou no advento do cristianismo a partir da representação feminina no texto bíblico, âncora da religião cristã. Nele, a primeira mulher é Eva, ícone da perdição e do mal, a femme fatale que corrompe o homem. A Bíblia, texto que viria a guiar grande parte do mundo a partir da Era Cristã é iniciado com uma mulher que, criada a partir da costela de Adão, faz com que ele perca seu domínio no paraíso. Sem contar a exclusão de Lilith, aquela que, conforme mitos e edições antigas do texto bíblico teria sido excluída da literatura cristã por ter sido criada do mesmo barro que Adão – portanto, em pé de igualdade – e rejeitado se submeter a ele. Esse conjunto de evidências históricas motivam a submissão da mulher e a concretização de estereótipos femininos de “boa moça”, como ironiza Manuela em A Louca. A liberdade de decisão da mulher sobre seu corpo e sua expressão também consolida o Calcanhar de Aquiles do sistema patriarcal, já que o empoderamento desafia a supremacia da voz machista e a censura ao corpo feminino. A canção traz a questão da liberdade a partir do direito da moça em decidir que horas sai e que horas volta sem ser reprovada pelo argumento de que “uma mulher decente não faz isso”. Quando ela sai de casa Não tem mais hora pra voltar Vou ter que cortar as asas Pela honra do meu lar A irreverência feminina supramencionada quanto à normatividade patriarcal é a o fósforo na fogueira misógina e machista. Quebrar esses paradigmas implica àquela que o faz e defende, engendrar em um caminho de críticas, abusos verbais e incoerência de teor machista que, infelizmente, se motivam e concretizam no senso comum patriarcal. Defender que o homem pode X coisa pois “é homem” e a mulher não pode a mesma X coisa por “ser mulher” é o limite mais baixo do senso comum machista, é o -1 na escala do bom senso e pressupõe falta de conhecimento histórico e social sobre as atrocidades já cometidas e justificadas pela ideologia patriarcal. Destarte, o discurso machista criticado na canção advém da construção histórica da fragilidade, inconveniência, malevolência e também da objetificação feminina, esta última, constatada quando a mulher, em recorrentes momentos da história, é tratada como objeto de reprodução de herdeiros e objeto de prazer sexual, construções observadas mesmo antes do início da Era Cristã na Grécia Antiga. Esse olhar sobre a mulher não apenas registra a desigualdade de gêneros como comprova que a construção cultural da inferioridade feminina se alicerça em recorrentes pontos da história da humanidade, sempre em diálogo com o discurso patriarcal. Refletir sobre A Louca e a repercussão do vídeo, nesse sentido, é observar a reação machista como um dos alicerces do patriarcado e a incompreensão às reivindicações feministas como uma herança histórica da misoginia que já calou, matou e escravizou mulheres. A ascendência da voz feminina foi e ainda é um ato de desafio à supremacia patriarcal que condena a mulher por exigir que seu corpo e poder de escolha sejam respeitados como o são o masculino. Quebrar com o estereótipo de “boa moça” é uma afronta ao tradicionalismo e causa repercussão. A liberdade sexual, o direito ao divórcio, o direito à leitura e ao aprendizado, assim como o direito a viver sozinha, livre da custódia masculina de um pai ou marido, foram etapas atravessadas pela mulher com suor e muito esforço. Foram imposições feitas à mulher sobre o pressuposto de que o homem era o sujeito digno de deter o poder. Uma construção histórica de desvantagens sociais e culturais que colocaram para trás milhares de mulheres que hoje, por meio do movimento feminista, lutam para superar os ecos ainda reticentes do patriarcado. Referências bibliográficas ADICHIE, C. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: A Antiguidade. Vol. 1. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1990. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Vol. 2. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1990. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: Do Renascimento à Idade Moderna. Vol. 3. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1991. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: ———–. Vol. 4. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1991. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: O Século XX. Vol. 5. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1991. [1] Link de acesso à canção https://www.youtube.com/watch?v=VzIE8pHJQwo #canção #feminismo #ideologia #mulher

  • A Louca: o que a repercussão da canção diz sobre nossa sociedade?

    Bárbara Melissa Santana Ela quer dar Ela quer dar no pé Quem te deu esse direito, moça? Quem você pensa que é? A louca[1] é uma composição de Manuela Tecchio, estudante de jornalismo envolvida na luta pelos direitos feministas. A canção, postada na rede social Youtube, repercutiu nessa e na rede social Facebook, onde foi compartilhada por diversas páginas voltadas à discussão feminista e demais usuários, além de ter se tornado notícia em diversos jornais nacionais. A repercussão foi e está sendo polêmica: por um lado, homens e mulheres felizes por ouvir uma voz ironizando a desigualdade de gênero cristalizada em nosso cotidiano, enquanto por outro, homens e mulheres atacam agressivamente a performance da moça, o movimento feminista e mulheres que tem reclamado da situação histórica de desvantagem social vivida pelas mulheres. Em primeiro plano, nos voltamos à análise da letra da canção que tem um eu lírico machista que “se cansa” da moça feminista que passa a reclamar de suas obrigações por ser mulher e não quer mais assumir as atividades domésticas como dever por ter nascido mulher. O ponto de partida é a voz desse sujeito que não identificamos como homem ou mulher, mas que incorpora a ideologia machista contemporânea. Cada verso da canção remete a um dos clichês relacionado a estereótipos femininos construídos pelo patriarcado. A mulher dona de casa, sob a custódia do pai ou do marido e “bem” comportada. Esses dois estereótipos femininos de “boa moça” são concretizados e denunciados na música como forma de protesto a imposição desses modelos. Ando cansado dessa moça Que agora deu pra reclamar Tá achando ruim lavar a louça E ainda quer se sustentar Ela tá achando que eu sou trouxa Se namorando no espelho de Roupa que não cobre as “coxa’’ Sorrindo de batom vermelho. Além de trazer em primeiro momento resquícios dos estereótipos femininos da “boa moça”, a canção resgata símbolos da libertação feminina, como o reclamar, se sustentar, não cobrir “as coxa” e o batom vermelho. O embate entre a ideologia machista e o empoderamento feminino mediante rompimento dos estereótipos supramencionados se dá no nível do signo e dialoga com questões e discussões históricas incutidas em nossa sociedade. Ouça bem, mulher Mude logo sua conduta Que essa moda feminista É um jeito chique de ser puta Elogiar quando ela passa Agora é coisa de malandro Desse jeito não tem graça Você já tá exagerando A ironia na canção incorpora a crítica latente ao movimento feminista contemporâneo e a incompreensão das questões que motivam essa militância pelos direitos de igualdade de gênero. O ser puta, seria a mulher que exige que a sociedade lhe trate, lhe veja e se dirija a ela com igualdade. Por quais razões, a postura feminina de exigir que seu corpo e sua expressão social sejam respeitadas como as de um homem se torna justificativa para o ódio e desprezo ao movimento feminista? O fortalecimento histórico e milenar do sistema patriarcal que, por sua vez, é intrinsecamente paternalista e machista, gerou a concepção social masculina da inferioridade, fragilidade e malevolência da mulher. Em diversos momentos da história, após o nascimento do sistema patriarcal, ainda na Pré-História, a mulher representou o sujeito calado e submisso. A transgressão desses pilares do patriarcado gerou morte, torturas, estupros e a consolidação cada vez mais aceita da supremacia masculina. Antes da Era Cristã, Aristóteles defende o desprezo pela mulher sobre o pressuposto da inferioridade física, tese que se revigorou no advento do cristianismo a partir da representação feminina no texto bíblico, âncora da religião cristã. Nele, a primeira mulher é Eva, ícone da perdição e do mal, a femme fatale que corrompe o homem. A Bíblia, texto que viria a guiar grande parte do mundo a partir da Era Cristã é iniciado com uma mulher que, criada a partir da costela de Adão, faz com que ele perca seu domínio no paraíso. Sem contar a exclusão de Lilith, aquela que, conforme mitos e edições antigas do texto bíblico teria sido excluída da literatura cristã por ter sido criada do mesmo barro que Adão – portanto, em pé de igualdade – e rejeitado se submeter a ele. Esse conjunto de evidências históricas motivam a submissão da mulher e a concretização de estereótipos femininos de “boa moça”, como ironiza Manuela em A Louca. A liberdade de decisão da mulher sobre seu corpo e sua expressão também consolida o Calcanhar de Aquiles do sistema patriarcal, já que o empoderamento desafia a supremacia da voz machista e a censura ao corpo feminino. A canção traz a questão da liberdade a partir do direito da moça em decidir que horas sai e que horas volta sem ser reprovada pelo argumento de que “uma mulher decente não faz isso”. Quando ela sai de casa Não tem mais hora pra voltar Vou ter que cortar as asas Pela honra do meu lar A irreverência feminina supramencionada quanto à normatividade patriarcal é a o fósforo na fogueira misógina e machista. Quebrar esses paradigmas implica àquela que o faz e defende, engendrar em um caminho de críticas, abusos verbais e incoerência de teor machista que, infelizmente, se motivam e concretizam no senso comum patriarcal. Defender que o homem pode X coisa pois “é homem” e a mulher não pode a mesma X coisa por “ser mulher” é o limite mais baixo do senso comum machista, é o -1 na escala do bom senso e pressupõe falta de conhecimento histórico e social sobre as atrocidades já cometidas e justificadas pela ideologia patriarcal. Destarte, o discurso machista criticado na canção advém da construção histórica da fragilidade, inconveniência, malevolência e também da objetificação feminina, esta última, constatada quando a mulher, em recorrentes momentos da história, é tratada como objeto de reprodução de herdeiros e objeto de prazer sexual, construções observadas mesmo antes do início da Era Cristã na Grécia Antiga. Esse olhar sobre a mulher não apenas registra a desigualdade de gêneros como comprova que a construção cultural da inferioridade feminina se alicerça em recorrentes pontos da história da humanidade, sempre em diálogo com o discurso patriarcal. Refletir sobre A Louca e a repercussão do vídeo, nesse sentido, é observar a reação machista como um dos alicerces do patriarcado e a incompreensão às reivindicações feministas como uma herança histórica da misoginia que já calou, matou e escravizou mulheres. A ascendência da voz feminina foi e ainda é um ato de desafio à supremacia patriarcal que condena a mulher por exigir que seu corpo e poder de escolha sejam respeitados como o são o masculino. Quebrar com o estereótipo de “boa moça” é uma afronta ao tradicionalismo e causa repercussão. A liberdade sexual, o direito ao divórcio, o direito à leitura e ao aprendizado, assim como o direito a viver sozinha, livre da custódia masculina de um pai ou marido, foram etapas atravessadas pela mulher com suor e muito esforço. Foram imposições feitas à mulher sobre o pressuposto de que o homem era o sujeito digno de deter o poder. Uma construção histórica de desvantagens sociais e culturais que colocaram para trás milhares de mulheres que hoje, por meio do movimento feminista, lutam para superar os ecos ainda reticentes do patriarcado. Referências bibliográficas ADICHIE, C. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: A Antiguidade. Vol. 1. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1990. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Vol. 2. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1990. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: Do Renascimento à Idade Moderna. Vol. 3. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1991. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: ———–. Vol. 4. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1991. DUBY, G.; PERROT, M. História das Mulheres no Ocidente: O Século XX. Vol. 5. Trad. COELHO, M. H. da C.; VAQUINHAS, M. I.; VENTURA, L.; MOTA, G. São Paulo: Ebradil, 1991. [1] Link de acesso à canção https://www.youtube.com/watch?v=VzIE8pHJQwo #canção #feminismo #ideologia #mulher

  • (DES)OBRIGAR(-SE) (D)O OUTRO: UMA INQUIETAÇÃO BAKHTINIANA

    Marco Antonio Villarta-Neder/ GEDISC-UFLA[1] Tem me incomodado, desde há muito tempo, um conjunto de discursos que se fundamenta na exclusão ou no extermínio do outro. Há duas razões para minha perplexidade. A primeira é por uma questão ética. Sou daquelas criaturas – talvez fracas e chorosas – que se indigna com o genocídio, a opressão e a destruição de um ser humano por outro. Encontrei no campo dos estudos bakhtinianos um lugar de abrigo. Em seu texto Arte e Responsabilidade, o filósofo da linguagem e pensador russo Mikhail Bakhtin discute a relação entre arte e vida: O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da responsabilidade. (BAKHTIN, 2011, p. xxxiv) Essa responsabilidade decorre da alteridade. É de um lugar-outro ao que ocupo – e somente dessa distância – que posso conferir-me acabamento, inteireza. É, portanto, desse lugar de um OUTRO, que não eu-mesmo, que posso atribuir sentido a mim mesmo. Portanto, esse lugar do outro é RESPONSÁVEL pela minha constituição. E esse outro que ocupa esse lugar é responsável por isso. Reversamente, eu sou outro de alguém. Posso conferir acabamento e inteireza a esse outro. Ele, de seu próprio lugar, não pode fazê-lo. Assim, cada ato, cada gesto, está impregnado dessa responsabilidade recíproca. Pois bem… vamos voltar à questão do início. Vamos deixar de molho a questão da responsabilidade ética. Depois voltaremos a ela. A segunda é conceitual. Se é o outro que me permite que eu me constitua no mundo, exterminá-lo seria suicidar-me. Talvez pior. Sem o outro, eu sequer me reconheceria, não existiria como sujeito, não teria um lugar a partir do qual pudesse olhar (para) o mundo. Lembro-me sempre de um conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, intitulado William Wilson. Nesse conto o protagonista estuda em um colégio interno e conhece um alter ego que representa uma censura aos hábitos desregrados que mantém. Depois de uma trajetória conflituosa, o protagonista acaba assassinando seu alter ego, cujas últimas palavras são essas: – Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo. (POE, 1981, p. 107) Nesse caso, a morte do outro aniquila o eu. O alter ego do protagonista do conto William Wilson, de Poe, é um duplo. O mito do duplo é antigo e tem tido várias versões em culturas diversas e em semioses e produções estéticas diferentes. Às vezes, as pessoas que compõem esse duplo são mutuamente destrutivas. Em Platão, no texto O Banquete, o andrógino, poderoso ser que combinava homem e mulher é separado em dois pelos deuses do Olimpo, terem tais seres se voltado contra seus deuses. Essa cisão causa, na visão mítica do personagem Aristófanes, uma busca pelo outro: Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (PLATÃO, 1972, p. 28) Parece haver, portanto, a ideia de um mito de Idade do Ouro, de Paraíso Perdido, que se manifesta nesse fascínio e nesse horror pelo outro. Em Jorge Luís Borges, no conto O Outro, é um Borges jovem que se senta ao lado, num banco, em lugares e tempos distintos, com um Borges mais velho. Não há destruição física, mas há a incomunicabilidade, o que não deixa de ser destrutivo. Se pensarmos na arquitetônica bakhtiniana, é dentro de um circuito de construções de subjetividade que essa relação alteritária se estabelece. É entre as representações de um eu-para-mim, eu-para-o-outro e outro-para-mim que se constrói esse acabamento relativamente instável, fugidio, mas necessário para a constituição dos sujeitos e dos sentidos. Nesse contexto, meu estranhamento e minha indignação se debruçam sobre um enunciado deôntico (que expressa dever, assumindo uma relação autoritária com o interlocutor) Tem que + verbo de ação com significado de ação punitiva e violenta (“Tem que matar”; “Tem que prender” etc.). Às vezes, a expressão deôntica é precedida pelo nome que alude a um mal a ser extirpado, do ponto de vista do enunciador (“Bandido tem que morrer”; “Gay tem que morrer”; “Mulher tem que ter marido” etc.) Cabe indagar, a partir da arquitetônica bakhtiniana, as posições enunciativas e os lugares no mundo que esses sujeitos ocupam para se constituírem no diálogo com outros sujeitos. A expressão deôntica é emblemática. Do ponto de vista do eu-para-mim, o sujeito se representa como um lugar de autoridade, com legitimidade não somente para emitir uma opinião, mas para dar uma ordem, definitiva. Lugar do demiurgo, autocrático. A representação do eu-para-o-outro lembra a do senhor de escravos. Um eu que se representa como quem, para o outro deve ser (do ponto de vista compatível com o do eu-para-mim) como alguém a ser obedecido, temido pela ferocidade de seu juízo de valor e pelo ethos de quem comanda. Já o outro-para-mim pode ser visto, a partir dessa atitude enunciativa, como alguém a ser subjugado pela força da opinião do primeiro. O mais impactante é se pensarmos nos sujeitos que são o tema do enunciado. Para Volóchinov (2017, pp. 227-228), o tema é o sentido da totalidade do enunciado. […] Ele expressa a situação concreta histórica que gerou o enunciado. Mas… enunciado para o Círculo é outra coisa, não é? Sim. É bom nos lembrarmos que, como diz Bakhtin, “[n]ão pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. (BAKHTIN, 2011, p. 371). Essa cadeia que o enunciado representa implica considerar que cada enunciado procede de alguém e se dirige a alguém. E que a própria compreensão já significa estabelecer esse diálogo: Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente. Em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas. […] Toda compreensão é dialógica. A compreensão opõe-se ao enunciado, assim como a réplica opõe-se a outra no diálogo. A compreensão busca uma antipalavra à palavra do falante. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232) Em função, disso, no contexto da arquitetônica, em que medida dizeres como “Tem que matar”, “Gay tem que morrer”, “Bandido tem que morrer” constituem réplicas a outros dizeres e são dizeres projetados a outros?  Que lugar constitui e é constituído por esse sujeito que diz essas coisas? E antes que se eleja, de maneira simplista, o binômio bem x mal, cabe discutir esses signos no contexto representacional desses sujeitos, dentro da arquitetônica, do diálogo e da responsabilidade. Qual o escopo da palavra bandido no enunciado “Bandido tem que morrer”? Aplica-se a crimes de colarinho branco? A serial killer? A acusados de promover chacinas?  Qual o lugar desse sujeito que recorta e retoma o sentido da palavra bandido como um subtipo – pobre, sempre -, o do pé-de-chinelo, o vagabundo, o pária? De que lugar vem esses dizeres recortados? E para quem se dirigem? Para os governantes, muitas vezes culpados de um duplo crime (o de gerar as condições para a existência de criminosos e de serem eles próprios criminosos na gestão da coisa pública)? Para os bandidos (desse subtipo) como um animal vociferando em seu território ante a aproximação de um intruso? Qual o escopo da palavra mulher em “Mulher tem que ter marido”? Não pode ter extensão máxima e referir-se a todas as mulheres. Porque senão, estariam incluídas as crianças do sexo feminino, as idosas, as que decidiram não se casar, as religiosas celibatárias, as homossexuais. É um enunciado metonímico, como no caso anterior. É um subgrupo. A das mulheres em idade e condições de terem vida sexual. Têm que ser objeto do desejo e do controle – masculino (machista). Bakhtin, ao tratar da relação de alteridade diz que “[a] mim não são dadas as minhas fronteiras temporais e espaciais, mas o outro me é dado integralmente. ” (BAKHTIN, 2011, p. 383). Esse eu deôntico, raivoso, é o discurso aniquilante desse outro que o constitui. Podemos brincar um pouco e fazer aludir aqui uma comparação com o mito platônico do andrógino: esse sujeito constitui-se no lugar que pune os homens pela insubordinação humana. É suicida, narcísico. Categoriza, classifica, seleciona e higieniza esse outro que deve totalizar e do qual depende para definir suas fronteiras temporais e espaciais. E, por falar em categorização, lembro-me, finalmente de Michel Foucault. No prefácio de seu livro As Palavras e as Coisas, Foucault começa declarando que deve essa obra à leitura de um conto de Jorge Luís Borges, no qual o escritor argentino constrói uma categorização paradoxal e insólita, atribuída a uma enciclopédia chinesa. O filósofo francês vai discorrendo sobre as implicações do absurdo da categorização borgeana e, num dado momento, a localiza: A monstruosidade que Borges faz circular na sua numeração consiste, ao contrário, em que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado. O impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo” — onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a transcreve? (FOUCAULT, 1999, p. 8) Invoco, aqui, a voz de Foucault nesse excerto para questionar, como ato responsável, qual é essa voz (aparentemente) imaterial que enuncia. Sob que ardil enunciativo se esconde, constituindo-se arquitetonicamente numa alteridade recusada e seletiva. Numa eugenia discursiva cujos limites entre o (re)conhecer-(se) (n)o outro e julgar(-se) (n)o outro dispersam-se, esfumam-se. Nada estranho para uma sociedade em que os lugares do julgar, do investigar, do sentenciar e do encarcerar são, muitas vezes, os mesmos. Divinizados, sacralizados. Na incompletude de cada elo da grande cadeia de enunciados, no âmbito micro no interior do grande tempo, constituo-me, responsavelmente, por essas indignações. Referências BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PLATÃO. O Banquete. In Os Pensadores – Platão. São Paulo: Abril Cultural, 1972. POE, Edgar A. William Wilson. In Histórias Extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1981. VOLÓCHINOV, Valentin V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução do russo de Sheila Grillo e Ekaterina Volkova. São Paulo: Editora 34, 2017. [1] Doutor em Letras (Unesp-Araraquara). Docente da Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC (Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin) que, desde 2013 tem-se ocupado com análise de semioses não-verbais sob o ponto de vista bakhtiniano. #foucault #alteridade #sujeito #Éticaeestética #bakhtin #euoutro #enunciado

  • (DES)OBRIGAR(-SE) (D)O OUTRO: UMA INQUIETAÇÃO BAKHTINIANA

    Marco Antonio Villarta-Neder/ GEDISC-UFLA[1] Tem me incomodado, desde há muito tempo, um conjunto de discursos que se fundamenta na exclusão ou no extermínio do outro. Há duas razões para minha perplexidade. A primeira é por uma questão ética. Sou daquelas criaturas – talvez fracas e chorosas – que se indigna com o genocídio, a opressão e a destruição de um ser humano por outro. Encontrei no campo dos estudos bakhtinianos um lugar de abrigo. Em seu texto Arte e Responsabilidade, o filósofo da linguagem e pensador russo Mikhail Bakhtin discute a relação entre arte e vida: O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da responsabilidade. (BAKHTIN, 2011, p. xxxiv) Essa responsabilidade decorre da alteridade. É de um lugar-outro ao que ocupo – e somente dessa distância – que posso conferir-me acabamento, inteireza. É, portanto, desse lugar de um OUTRO, que não eu-mesmo, que posso atribuir sentido a mim mesmo. Portanto, esse lugar do outro é RESPONSÁVEL pela minha constituição. E esse outro que ocupa esse lugar é responsável por isso. Reversamente, eu sou outro de alguém. Posso conferir acabamento e inteireza a esse outro. Ele, de seu próprio lugar, não pode fazê-lo. Assim, cada ato, cada gesto, está impregnado dessa responsabilidade recíproca. Pois bem… vamos voltar à questão do início. Vamos deixar de molho a questão da responsabilidade ética. Depois voltaremos a ela. A segunda é conceitual. Se é o outro que me permite que eu me constitua no mundo, exterminá-lo seria suicidar-me. Talvez pior. Sem o outro, eu sequer me reconheceria, não existiria como sujeito, não teria um lugar a partir do qual pudesse olhar (para) o mundo. Lembro-me sempre de um conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, intitulado William Wilson. Nesse conto o protagonista estuda em um colégio interno e conhece um alter ego que representa uma censura aos hábitos desregrados que mantém. Depois de uma trajetória conflituosa, o protagonista acaba assassinando seu alter ego, cujas últimas palavras são essas: – Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo. (POE, 1981, p. 107) Nesse caso, a morte do outro aniquila o eu. O alter ego do protagonista do conto William Wilson, de Poe, é um duplo. O mito do duplo é antigo e tem tido várias versões em culturas diversas e em semioses e produções estéticas diferentes. Às vezes, as pessoas que compõem esse duplo são mutuamente destrutivas. Em Platão, no texto O Banquete, o andrógino, poderoso ser que combinava homem e mulher é separado em dois pelos deuses do Olimpo, terem tais seres se voltado contra seus deuses. Essa cisão causa, na visão mítica do personagem Aristófanes, uma busca pelo outro: Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (PLATÃO, 1972, p. 28) Parece haver, portanto, a ideia de um mito de Idade do Ouro, de Paraíso Perdido, que se manifesta nesse fascínio e nesse horror pelo outro. Em Jorge Luís Borges, no conto O Outro, é um Borges jovem que se senta ao lado, num banco, em lugares e tempos distintos, com um Borges mais velho. Não há destruição física, mas há a incomunicabilidade, o que não deixa de ser destrutivo. Se pensarmos na arquitetônica bakhtiniana, é dentro de um circuito de construções de subjetividade que essa relação alteritária se estabelece. É entre as representações de um eu-para-mim, eu-para-o-outro e outro-para-mim que se constrói esse acabamento relativamente instável, fugidio, mas necessário para a constituição dos sujeitos e dos sentidos. Nesse contexto, meu estranhamento e minha indignação se debruçam sobre um enunciado deôntico (que expressa dever, assumindo uma relação autoritária com o interlocutor) Tem que + verbo de ação com significado de ação punitiva e violenta (“Tem que matar”; “Tem que prender” etc.). Às vezes, a expressão deôntica é precedida pelo nome que alude a um mal a ser extirpado, do ponto de vista do enunciador (“Bandido tem que morrer”; “Gay tem que morrer”; “Mulher tem que ter marido” etc.) Cabe indagar, a partir da arquitetônica bakhtiniana, as posições enunciativas e os lugares no mundo que esses sujeitos ocupam para se constituírem no diálogo com outros sujeitos. A expressão deôntica é emblemática. Do ponto de vista do eu-para-mim, o sujeito se representa como um lugar de autoridade, com legitimidade não somente para emitir uma opinião, mas para dar uma ordem, definitiva. Lugar do demiurgo, autocrático. A representação do eu-para-o-outro lembra a do senhor de escravos. Um eu que se representa como quem, para o outro deve ser (do ponto de vista compatível com o do eu-para-mim) como alguém a ser obedecido, temido pela ferocidade de seu juízo de valor e pelo ethos de quem comanda. Já o outro-para-mim pode ser visto, a partir dessa atitude enunciativa, como alguém a ser subjugado pela força da opinião do primeiro. O mais impactante é se pensarmos nos sujeitos que são o tema do enunciado. Para Volóchinov (2017, pp. 227-228), o tema é o sentido da totalidade do enunciado. […] Ele expressa a situação concreta histórica que gerou o enunciado. Mas… enunciado para o Círculo é outra coisa, não é? Sim. É bom nos lembrarmos que, como diz Bakhtin, “[n]ão pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. (BAKHTIN, 2011, p. 371). Essa cadeia que o enunciado representa implica considerar que cada enunciado procede de alguém e se dirige a alguém. E que a própria compreensão já significa estabelecer esse diálogo: Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente. Em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas. […] Toda compreensão é dialógica. A compreensão opõe-se ao enunciado, assim como a réplica opõe-se a outra no diálogo. A compreensão busca uma antipalavra à palavra do falante. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232) Em função, disso, no contexto da arquitetônica, em que medida dizeres como “Tem que matar”, “Gay tem que morrer”, “Bandido tem que morrer” constituem réplicas a outros dizeres e são dizeres projetados a outros?  Que lugar constitui e é constituído por esse sujeito que diz essas coisas? E antes que se eleja, de maneira simplista, o binômio bem x mal, cabe discutir esses signos no contexto representacional desses sujeitos, dentro da arquitetônica, do diálogo e da responsabilidade. Qual o escopo da palavra bandido no enunciado “Bandido tem que morrer”? Aplica-se a crimes de colarinho branco? A serial killer? A acusados de promover chacinas?  Qual o lugar desse sujeito que recorta e retoma o sentido da palavra bandido como um subtipo – pobre, sempre -, o do pé-de-chinelo, o vagabundo, o pária? De que lugar vem esses dizeres recortados? E para quem se dirigem? Para os governantes, muitas vezes culpados de um duplo crime (o de gerar as condições para a existência de criminosos e de serem eles próprios criminosos na gestão da coisa pública)? Para os bandidos (desse subtipo) como um animal vociferando em seu território ante a aproximação de um intruso? Qual o escopo da palavra mulher em “Mulher tem que ter marido”? Não pode ter extensão máxima e referir-se a todas as mulheres. Porque senão, estariam incluídas as crianças do sexo feminino, as idosas, as que decidiram não se casar, as religiosas celibatárias, as homossexuais. É um enunciado metonímico, como no caso anterior. É um subgrupo. A das mulheres em idade e condições de terem vida sexual. Têm que ser objeto do desejo e do controle – masculino (machista). Bakhtin, ao tratar da relação de alteridade diz que “[a] mim não são dadas as minhas fronteiras temporais e espaciais, mas o outro me é dado integralmente. ” (BAKHTIN, 2011, p. 383). Esse eu deôntico, raivoso, é o discurso aniquilante desse outro que o constitui. Podemos brincar um pouco e fazer aludir aqui uma comparação com o mito platônico do andrógino: esse sujeito constitui-se no lugar que pune os homens pela insubordinação humana. É suicida, narcísico. Categoriza, classifica, seleciona e higieniza esse outro que deve totalizar e do qual depende para definir suas fronteiras temporais e espaciais. E, por falar em categorização, lembro-me, finalmente de Michel Foucault. No prefácio de seu livro As Palavras e as Coisas, Foucault começa declarando que deve essa obra à leitura de um conto de Jorge Luís Borges, no qual o escritor argentino constrói uma categorização paradoxal e insólita, atribuída a uma enciclopédia chinesa. O filósofo francês vai discorrendo sobre as implicações do absurdo da categorização borgeana e, num dado momento, a localiza: A monstruosidade que Borges faz circular na sua numeração consiste, ao contrário, em que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado. O impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo” — onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a transcreve? (FOUCAULT, 1999, p. 8) Invoco, aqui, a voz de Foucault nesse excerto para questionar, como ato responsável, qual é essa voz (aparentemente) imaterial que enuncia. Sob que ardil enunciativo se esconde, constituindo-se arquitetonicamente numa alteridade recusada e seletiva. Numa eugenia discursiva cujos limites entre o (re)conhecer-(se) (n)o outro e julgar(-se) (n)o outro dispersam-se, esfumam-se. Nada estranho para uma sociedade em que os lugares do julgar, do investigar, do sentenciar e do encarcerar são, muitas vezes, os mesmos. Divinizados, sacralizados. Na incompletude de cada elo da grande cadeia de enunciados, no âmbito micro no interior do grande tempo, constituo-me, responsavelmente, por essas indignações. Referências BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. PLATÃO. O Banquete. In Os Pensadores – Platão. São Paulo: Abril Cultural, 1972. POE, Edgar A. William Wilson. In Histórias Extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1981. VOLÓCHINOV, Valentin V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução do russo de Sheila Grillo e Ekaterina Volkova. São Paulo: Editora 34, 2017. [1] Doutor em Letras (Unesp-Araraquara). Docente da Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC (Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin) que, desde 2013 tem-se ocupado com análise de semioses não-verbais sob o ponto de vista bakhtiniano. #foucault #alteridade #sujeito #Éticaeestética #bakhtin #euoutro #enunciado

bottom of page