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- Docência: um ato exotópico
Jessica de Castro Gonçalves “Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento”. (BAKHTIN, 2011, p.23) Na citação acima, ao discutir a relação autor/herói, e a constituição e a obtenção do acabamento conferido ao herói pelo autor, Bakhtin (2011) fala em “excedente de visão”, ou seja, aquilo que o outro vê em mim e que eu não consigo ver para obter o meu acabamento como sujeito, da mesma maneira que eu vejo e completo o outro do lugar em que me encontro, fora dele. Segundo Geraldi (2010), essa discussão sobre o acabamento do herói, serve também para analisar as relações de alteridade, pois o acabamento estético concedido pelo autor ao herói é resultante da necessidade absoluta do outro, da alteridade. Muito se discute sobre o ser professor, sobre o ensino-aprendizagem como um processo, uma via de mão dupla em que professor e aluno aprendem e contribuem com o aprendizado. No entanto educar é além de tudo constituir-se sujeito na constituição/relação de/com outros. Diante disso é interessante pensar que nesse processo, entrar em empatia com o(s) outro(s), posicionar-se a partir da reflexão sobre o posicionamento desses outros, em um exercício constante de deslocar-se para fora e dentro de si, discutido por Bakhtin, torna-se um ato constante quando pensamos em docência. Ser docente é conviver constantemente com o(s) outro(s). Cada ato do professor é concreto e singular e se constitui no processo dialógico com outros atos singulares. Cada aula constitui um evento e o ato de cada sujeito, seja ele aluno ou professor, ocorre, responsiva e responsavelmente, em diálogo com o ato de outro(s). A aula é um evento de atos e re-atos. Cada gesto, palavra, silêncio são respostas aos outros, no caso, na esfera escolar. O sujeito aluno atua, expressa, silencia, contesta, de forma responsiva, a outros sujeitos alunos, docentes, gestores, autores, livros, discursos outros e pais. O sujeito docente, da mesma forma, atua, cria, projeta, discute, aborda e seleciona materiais, em resposta aos outros, também, no mesmo caso, do contexto escolar. Nenhum ato se constitui de maneira isolada, mas se faz com propósitos diversos na teia de atos do evento aula. Sabe-se que, segundo as discussões do Círculo de Bakhtin, como na citação acima, o sujeito por si só não consegue conceder-se acabamento, já que não possui acesso àquilo que Bakhtin chama de excedente de visão sobre si, ou seja, ele necessita de um “olhar extraposto” – o que o “eu” vê no outro e que ele não vê em si mesmo, bem como o que o outro vê do e no “eu” que este não consegue. Assim, o processo da constituição do indivíduo em sujeito se faz nessa relação com o(s) outro(s), pois não é possível ver-se por completo, havendo necessidade do olhar do outro para a obtenção de sua completude. Diante desse ponto de vista, como a docência torna-se um ato exotópico, consciente da importância de que professor e aluno têm um ao outro? O atuar em sala de aula é um ato exotópico ao passo que colocar-se fora de si é um exercício constante e simultâneo. Deslocar-se de si é um ato que se realiza antes, durante e após a aula. Mesmo que os sujeitos não tenham consciência disso. O deslocamento é na verdade um elemento constitutivo do ser professor. O docente desloca-se ao posicionar-se axiologicamente ao aluno, à instituição escola e a si mesmo como um sujeito que é/está professor. Ao mesmo tempo em que ele reflete sobre os sujeitos a quem ensina, ele volta-se para si. O ato docente é exotópico à medida em que o professor entra em empatia com os sujeitos do contexto escolar, coloca-se no lugar deles, enxerga o posicionamento axiológico destes no mundo e ainda contempla seus excedentes de visão. Sair de seu lugar de docente para contemplar a visão de seu outro faz parte do processo de ensino-aprendizagem no âmbito institucional. A compenetração é essencial ao professor. Vivenciar o que o outro vivencia, sejam alunos, gestores, outros professores, seus livros, funcionários ou pais, colocar-se no lugar dele, entrar em empatia com ele, em diálogo e com a visão que este próprio possui do professor, contribui para a constituição do aluno em sujeito. Se o docente, como o outro de seus alunos, tem acesso ao excedente de visão destes, é necessário que ele desloque-se de si em direção a eles para contribuir com o processo de acabamento e a formação do aluno que o próprio não se pode dar. A docência é um ato exotópico ao pensar ainda no deslocar-se do professor de sua posição para contemplar a sua própria atuação como docente. Isso é importante para enxergar e refletir sobre seu próprio ato docente, olhar aquilo que, quando no lugar “professor”, ele não enxerga. Ao mesmo tempo que o professor contribui para a constituição do aluno em sujeito ele está em processo de formação de si próprio. Forma e é formado, constitui e é constituído. No entanto o contemplar-se e refletir-se como docente é algo necessário e essencial ao ser professor. Esse deslocar-se permite a ele uma contemplação de sua postura como tal, uma crítica acerca do posicionamento assumido por ele quando em posição de docência e uma análise deste na relação com os alunos. Através desse exercício os sujeitos envolvidos no ato de educar tornam-se mais acabados, mais sujeitos, na relação de alteridade O ato docente possui sua complexidade ao pensar que sua atuação envolve sujeitos em formação. É claro que no dia a dia, a cada relacionamento estabelecido com o(s) vários(s) outro(s), nas diferentes situações, há processos de formação e acabamento dos sujeitos. Todavia isso ocorre em um processo naturalmente dialógico, entre indivíduos que se posicionam axiologicamente em sociedade, no mundo. Já o professor, quando nesta posição, tem como objetivo a própria formação do aluno e a constituição deste como sujeito. Por consequência o processo de conferir acabamento fica em mais evidência e o deslocar-se para o outro e para si mesmo algo mais constante, reflexivo e um exercício procurado pelo docente. Este busca esse deslocar, ele coloca-se fora de si, e coloca-se em na empatia com o outro para constituir o seu ato docente. Cada deslocamento, seja na direção de seu(s) outro(s) seja para o contemplar de sua prática, é o que torna a docência um ato exotópico. Refletir a partir da visão do outro sobre si e da própria visão sobre o próprio ato docente, contribui para uma melhor formação de sujeitos, sejam eles alunos, pais, professores, funcionários, coordenadores ou quaisquer outros envolvidos nesse evento. Referências BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. GERALDI, J.W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010).
- Docência: um ato exotópico
Jessica de Castro Gonçalves “Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento”. (BAKHTIN, 2011, p.23) Na citação acima, ao discutir a relação autor/herói, e a constituição e a obtenção do acabamento conferido ao herói pelo autor, Bakhtin (2011) fala em “excedente de visão”, ou seja, aquilo que o outro vê em mim e que eu não consigo ver para obter o meu acabamento como sujeito, da mesma maneira que eu vejo e completo o outro do lugar em que me encontro, fora dele. Segundo Geraldi (2010), essa discussão sobre o acabamento do herói, serve também para analisar as relações de alteridade, pois o acabamento estético concedido pelo autor ao herói é resultante da necessidade absoluta do outro, da alteridade. Muito se discute sobre o ser professor, sobre o ensino-aprendizagem como um processo, uma via de mão dupla em que professor e aluno aprendem e contribuem com o aprendizado. No entanto educar é além de tudo constituir-se sujeito na constituição/relação de/com outros. Diante disso é interessante pensar que nesse processo, entrar em empatia com o(s) outro(s), posicionar-se a partir da reflexão sobre o posicionamento desses outros, em um exercício constante de deslocar-se para fora e dentro de si, discutido por Bakhtin, torna-se um ato constante quando pensamos em docência. Ser docente é conviver constantemente com o(s) outro(s). Cada ato do professor é concreto e singular e se constitui no processo dialógico com outros atos singulares. Cada aula constitui um evento e o ato de cada sujeito, seja ele aluno ou professor, ocorre, responsiva e responsavelmente, em diálogo com o ato de outro(s). A aula é um evento de atos e re-atos. Cada gesto, palavra, silêncio são respostas aos outros, no caso, na esfera escolar. O sujeito aluno atua, expressa, silencia, contesta, de forma responsiva, a outros sujeitos alunos, docentes, gestores, autores, livros, discursos outros e pais. O sujeito docente, da mesma forma, atua, cria, projeta, discute, aborda e seleciona materiais, em resposta aos outros, também, no mesmo caso, do contexto escolar. Nenhum ato se constitui de maneira isolada, mas se faz com propósitos diversos na teia de atos do evento aula. Sabe-se que, segundo as discussões do Círculo de Bakhtin, como na citação acima, o sujeito por si só não consegue conceder-se acabamento, já que não possui acesso àquilo que Bakhtin chama de excedente de visão sobre si, ou seja, ele necessita de um “olhar extraposto” – o que o “eu” vê no outro e que ele não vê em si mesmo, bem como o que o outro vê do e no “eu” que este não consegue. Assim, o processo da constituição do indivíduo em sujeito se faz nessa relação com o(s) outro(s), pois não é possível ver-se por completo, havendo necessidade do olhar do outro para a obtenção de sua completude. Diante desse ponto de vista, como a docência torna-se um ato exotópico, consciente da importância de que professor e aluno têm um ao outro? O atuar em sala de aula é um ato exotópico ao passo que colocar-se fora de si é um exercício constante e simultâneo. Deslocar-se de si é um ato que se realiza antes, durante e após a aula. Mesmo que os sujeitos não tenham consciência disso. O deslocamento é na verdade um elemento constitutivo do ser professor. O docente desloca-se ao posicionar-se axiologicamente ao aluno, à instituição escola e a si mesmo como um sujeito que é/está professor. Ao mesmo tempo em que ele reflete sobre os sujeitos a quem ensina, ele volta-se para si. O ato docente é exotópico à medida em que o professor entra em empatia com os sujeitos do contexto escolar, coloca-se no lugar deles, enxerga o posicionamento axiológico destes no mundo e ainda contempla seus excedentes de visão. Sair de seu lugar de docente para contemplar a visão de seu outro faz parte do processo de ensino-aprendizagem no âmbito institucional. A compenetração é essencial ao professor. Vivenciar o que o outro vivencia, sejam alunos, gestores, outros professores, seus livros, funcionários ou pais, colocar-se no lugar dele, entrar em empatia com ele, em diálogo e com a visão que este próprio possui do professor, contribui para a constituição do aluno em sujeito. Se o docente, como o outro de seus alunos, tem acesso ao excedente de visão destes, é necessário que ele desloque-se de si em direção a eles para contribuir com o processo de acabamento e a formação do aluno que o próprio não se pode dar. A docência é um ato exotópico ao pensar ainda no deslocar-se do professor de sua posição para contemplar a sua própria atuação como docente. Isso é importante para enxergar e refletir sobre seu próprio ato docente, olhar aquilo que, quando no lugar “professor”, ele não enxerga. Ao mesmo tempo que o professor contribui para a constituição do aluno em sujeito ele está em processo de formação de si próprio. Forma e é formado, constitui e é constituído. No entanto o contemplar-se e refletir-se como docente é algo necessário e essencial ao ser professor. Esse deslocar-se permite a ele uma contemplação de sua postura como tal, uma crítica acerca do posicionamento assumido por ele quando em posição de docência e uma análise deste na relação com os alunos. Através desse exercício os sujeitos envolvidos no ato de educar tornam-se mais acabados, mais sujeitos, na relação de alteridade O ato docente possui sua complexidade ao pensar que sua atuação envolve sujeitos em formação. É claro que no dia a dia, a cada relacionamento estabelecido com o(s) vários(s) outro(s), nas diferentes situações, há processos de formação e acabamento dos sujeitos. Todavia isso ocorre em um processo naturalmente dialógico, entre indivíduos que se posicionam axiologicamente em sociedade, no mundo. Já o professor, quando nesta posição, tem como objetivo a própria formação do aluno e a constituição deste como sujeito. Por consequência o processo de conferir acabamento fica em mais evidência e o deslocar-se para o outro e para si mesmo algo mais constante, reflexivo e um exercício procurado pelo docente. Este busca esse deslocar, ele coloca-se fora de si, e coloca-se em na empatia com o outro para constituir o seu ato docente. Cada deslocamento, seja na direção de seu(s) outro(s) seja para o contemplar de sua prática, é o que torna a docência um ato exotópico. Refletir a partir da visão do outro sobre si e da própria visão sobre o próprio ato docente, contribui para uma melhor formação de sujeitos, sejam eles alunos, pais, professores, funcionários, coordenadores ou quaisquer outros envolvidos nesse evento. Referências BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. GERALDI, J.W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010).
- Do lugar e relevância do escrever e publicar na formação do sujeito-pesquisador
José Cezinaldo Rocha Bessa (UNESP/UERN) [1] “Olha, eu trabalhava e tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecido ninguém ainda. Me ocorriam idéias e eu sempre me dizia: “Tá bem. Amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. Enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel branco. E a idéia? Não tinha mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo que me ocorria.” (Clarice Lispector, grifos meus) Das diversas práticas que me movem no universo da academia, seja como pesquisador, seja como professor, seja como aluno, a produção escrita é, decididamente, aquela com a qual eu tenho estabelecido uma relação mais amorosa. Não porque sempre fui um sujeito dado a escrever ou porque tenha aprendido a escrever com alguma “maestria”. Pelo contrário, foi justamente num contexto de tomada de consciência de minha dificuldade de escrever (atestada por ocasião da produção da temida “redação de vestibular”), que eu passaria a olhar para a escrita com mais entusiasmo, se assim posso dizer. Já durante a minha formação no curso de Licenciatura em Letras, eu viria a me interrogar sobre como um sujeito como eu, que apresentando tanta dificuldade de escrita, poderia estar justamente ali, num curso de Letras (onde já se imagina alguém que sabe “ler e escrever bem”, que escreve com clareza, com objetividade, sem “erros” de regência ou concordância… alguém que escreve com “perfeição”). Mais, como a partir de minha experiência e de minha formação poderia colaborar com essa tarefa árdua (inclusive de formação) de tantos outros sujeitos em condições parecidas com aquela em que eu me encontrava quando comecei meu curso. Uma coisa estava clara, para mim, naquele momento: eu não sabia escrever. E mais, eu sempre fazia questão de dizer: escrever é um grande “martírio”. O meu encontro com a escrita, com aquele papel em branco, era também, ressignificando e/ou reacentuando aqui as palavras de Clarice Lispector, um momento de desespero, de angústia. Gosto de ser honesto comigo mesmo. De pensar que escrever não é uma dessas atividades que mais me desperta prazer, ainda que eu a pratique diariamente, de pensar também que é uma atividade que eu gostaria de adiar, talvez, para um amanhã, um depois de amanhã… ou, quem sabe, indefinidamente. Mas sou chamado à realidade e a reconhecer o lugar essencial e decisivo que a escrita de textos desempenha na minha formação e, certamente, na vida de cada um que me ler. Entendi que escrever é preciso e é exercício essencial na busca incessante por respostas às questões que me cercam e me constituem como pesquisador, como professor, como aluno, como filho, como irmão, como amigo… como sujeito, como ser de linguagem. Não por acaso, até hoje me interesso por pesquisar a produção escrita. Não por acaso, até hoje me coloco na escuta dos discursos que emanam da escrita produzida no espaço de sala de aula. Quero pensar que os escutar não é tão somente uma atividade de pesquisador, mas que os escutar é também uma forma prazerosa de compreender como me constituo como produtor de textos e como posso contribuir com a escrita do outro, desse outro que me constitui, também, em sua escrita (ainda que não apenas por meio dela). No meu percurso de encontro com essa temática e com leituras sobre ela até o momento, aprendi também que, se para alguns, escrever é um exercício fácil e prazeroso, para outros não passa de uma atividade torturante, algo que se poderia adiar, como desejam diversas vezes muitos de nossos alunos, quando lhes é solicitado escrever, por exemplo, um artigo científico para uma disciplina, ou para um evento científico ou para um periódico. Estou convicto de que muitos alunos (inclusive formandos e até já graduados em Letras, e em outras áreas, certamente) compartilham até mesmo de um sentimento de aversão ao escrever, em especial quando se trata de escrever textos científicos. Para o aluno (o aluno de iniciação científica, o aluno que está começando o mestrado, por exemplo), que se encontra em um estágio inicial de formação como pesquisador, escrever um texto científico trata-se, muitas vezes, de uma atividade aterrorizante. Confrontados com a necessidade de obedecer a convenções específicas (até então desconhecidas) estabelecidas pela comunidade acadêmica, cujo domínio, via de regra, demanda tempo e realização de atividades sistemáticas, muitos alunos se sentem desencorajados a escrever qualquer texto. Na contramão desse quadro, tenho pensado e insistido em problematizar a relevância do exercício constante da produção de textos científicos e de publicação desses textos como pilares essenciais da formação do pesquisador, sobretudo do pesquisador iniciante. Se falo pilares, no plural mesmo, não quer dizer que eu tome o escrever e o publicar de forma estanque, separada. Minha ideia é não dissociar. Também não é pensar que se deva escrever textos científicos por obrigação (para cumprir, por exemplo, as exigências de uma disciplina, como expresso acima) ou para ceder às pressões do que se convencionou chamar de “produtivismo acadêmico”. É pensar que se escreve, acima de tudo, para se socializar uma leitura, uma compreensão, para interagir. É certo que, de início, logo nos primeiros escritos, é difícil esperar que o pesquisador iniciante consiga produzir um texto científico publicável. Se no começo é um texto com ideias mal articuladas ou mesmo com “cópias” de trechos, aos poucos, com trabalho de orientação, com incentivo constante e um pouco de persistência, se chega a um texto de mais qualidade. As idas e vindas, as rasuras, fazem parte do processo de aprendizado. E elas contribuem para que o pesquisador iniciante se aproprie das habilidades de escrita científica e se familiarize com as convenções próprias do fazer científico. Para aqueles que se situam no campo das ciências humanas, nos quais se inserem os estudiosos da linguagem, isso não pode ser visto como algo menos importante e significativo do que uma contribuição relevante apresentada por um pesquisador experiente. Afinal, não se pode esquecer que cada escrita tem um significado único, singular na vida de cada sujeito-pesquisador e no seu processo de formação. Quando insisto em não dissociar o escrever do publicar é porque penso também que o leque de possibilidades de diálogos que a publicação científica pode possibilitar contribui significativamente para o desenvolvimento pleno da capacidade de escrita de textos científicos. Penso que a escrita de textos dessa natureza é lugar para se explorar o diálogo com o-(s) outro-(s), a resposta de um outro como lugar de compreensão, cujos reflexos podem ser bastante proveitosos, já que, como nos ensina o pensamento bakhtiniano [2], “a compreensão amadurece apenas na resposta”. Penso aqui em várias possibilidades de diálogo, com: o outro que se é e que se altera a cada espaço-tempo da escrita; os autores, estudiosos e pesquisadores que se ler; o professor e/ou seu orientador de pesquisa; o seu colega, quando o texto que se produz é um trabalho coletivo; o avaliador do texto de um evento ou de um periódico o editor de um periódico ou o organizador de um livro; o interlocutor presumido (seja de um evento, de um periódico ou de uma coletânea); a grande temporalidade, de que fala o Círculo de Bakhtin. Ainda que essa rede de diálogos nem sempre seja possível ou ainda que o seu produtor não tenha um retorno visível e concreto de um outro (falando aqui de uma resposta sob a forma de correções, apontamentos, sugestões, encaminhamentos, etc.), é fundamental que o pesquisador, especialmente aquele iniciante, pratique o exercício constante da escrita do texto científico, porque há sempre, nessa prática, uma possibilidade de diálogo, de encontro com um outro (pode-se pensar aí os diálogos do tipo 01 e 07 suscitados acima), de interagir, o que não deixa de ser sempre um momento de rico aprendizado. Não se pode deixar de pensar o exercício da escrita de textos científicos também como um lugar de descobertas e de produção de conhecimentos, como postula Amorim [3], ao tratar da escrita do texto de pesquisa. Mais interessante mesmo é vislumbrar ser escutado/lido, porque acredito que, como consequência da intensidade com que se valoriza e se pratica a rede de diálogos apresentada acima, tem-se um alargamento cada vez maior da consciência do pesquisador, amplia-se a profundidade de sua compreensão – porque implicada aí uma luta entre pontos de vistas, entre posições de sujeitos, cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento [4] –, numa espécie de diálogo inconcluso, como bem retratado no poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto: Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. Diálogo como cruzamento de vozes, de ideias que se tecem a partir de ideias e que sugerem ideias, que são tomadas de empréstimo, “repetidas”, reacentuadas, que produzem sentidos… Profusão de diálogos, velados e explícitos (sem usar de más condutas), que marcam o dizer do pesquisador, (des)estabiliza-lhes e enriquecem seu dizer, ampliando, assim, as possibilidades de conquistar e assegurar uma maior interlocução no universo da academia, e, portanto, de se fazer escutar por outros tantos sujeitos. Afinal, como nos ensina Graciliano Ramos, em seu poema “As lavadeiras”, “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”. Que ousemos cada vez mais dizer e dizer sempre mais, ainda que o que se diz possa parecer coisa trivial para alguns, como condição de aprendizado e de paulatina inserção na esfera acadêmica, até porque, não se nasce pesquisador, tampouco sabendo escrever textos (científicos e não científicos) com maestria. O desafio da escrita é o mesmo de aprender falar e andar. E o desafio de se alcançar uma certa condição de excelência na escrita de textos científicos implica ao pesquisador (iniciante e também o já “adestrado”), a disposição para fazer e refazer quantas vezes forem necessárias, bem como a sabedoria para acolher elogios e receber críticas e (re)agir… Esse é um processo que se constrói a vida toda: a cada escrita, a cada texto corrigido, a cada parecer recebido, a cada texto recusado, a cada trabalho apresentado, a cada texto publicado, a cada reencontro com o papel em branco, a cada “(a)manhã”… Isso representa um modo de ser e de vivenciar, no mundo e na academia, a dimensão dialógica expressa pelo pensamento bakhtiniano, posto que, nessas condições, o escrever passa a ser lugar de compreensão, de exercício de reflexão, de descobertas, de aprendizado… enfim, lugar de escuta e, ao mesmo tempo, de fazer ouvir a “própria voz”, de se constituir como sujeito de linguagem, sujeito responsável e responsivo, em pleno embate de ideias. Ideias em jogo e movimento, dentro e fora de nós, em nó. [1] Registro aqui um agradecimento a Luciane de Paula pela leitura atenta da primeira versão deste texto e pela inter-ação estabelecida. Os valiosos apontamentos e pertinentes sugestões resultantes dessa inter-ação estão refletidos e refratados na versão aqui apresentada. [2] BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 90. [3] AMORIM, Marília. Freud e a escrita de pesquisa: uma leitura bakhtiniana. Eutomia: revista online de literatura e linguística, ano 2, n. 2 , dez. 2009. [4] BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 378. #bakhtin #diálogo #respondibilidade #sujeito
- Do lugar e relevância do escrever e publicar na formação do sujeito-pesquisador
José Cezinaldo Rocha Bessa (UNESP/UERN) [1] “Olha, eu trabalhava e tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecido ninguém ainda. Me ocorriam idéias e eu sempre me dizia: “Tá bem. Amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. Enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel branco. E a idéia? Não tinha mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo que me ocorria.” (Clarice Lispector, grifos meus) Das diversas práticas que me movem no universo da academia, seja como pesquisador, seja como professor, seja como aluno, a produção escrita é, decididamente, aquela com a qual eu tenho estabelecido uma relação mais amorosa. Não porque sempre fui um sujeito dado a escrever ou porque tenha aprendido a escrever com alguma “maestria”. Pelo contrário, foi justamente num contexto de tomada de consciência de minha dificuldade de escrever (atestada por ocasião da produção da temida “redação de vestibular”), que eu passaria a olhar para a escrita com mais entusiasmo, se assim posso dizer. Já durante a minha formação no curso de Licenciatura em Letras, eu viria a me interrogar sobre como um sujeito como eu, que apresentando tanta dificuldade de escrita, poderia estar justamente ali, num curso de Letras (onde já se imagina alguém que sabe “ler e escrever bem”, que escreve com clareza, com objetividade, sem “erros” de regência ou concordância… alguém que escreve com “perfeição”). Mais, como a partir de minha experiência e de minha formação poderia colaborar com essa tarefa árdua (inclusive de formação) de tantos outros sujeitos em condições parecidas com aquela em que eu me encontrava quando comecei meu curso. Uma coisa estava clara, para mim, naquele momento: eu não sabia escrever. E mais, eu sempre fazia questão de dizer: escrever é um grande “martírio”. O meu encontro com a escrita, com aquele papel em branco, era também, ressignificando e/ou reacentuando aqui as palavras de Clarice Lispector, um momento de desespero, de angústia. Gosto de ser honesto comigo mesmo. De pensar que escrever não é uma dessas atividades que mais me desperta prazer, ainda que eu a pratique diariamente, de pensar também que é uma atividade que eu gostaria de adiar, talvez, para um amanhã, um depois de amanhã… ou, quem sabe, indefinidamente. Mas sou chamado à realidade e a reconhecer o lugar essencial e decisivo que a escrita de textos desempenha na minha formação e, certamente, na vida de cada um que me ler. Entendi que escrever é preciso e é exercício essencial na busca incessante por respostas às questões que me cercam e me constituem como pesquisador, como professor, como aluno, como filho, como irmão, como amigo… como sujeito, como ser de linguagem. Não por acaso, até hoje me interesso por pesquisar a produção escrita. Não por acaso, até hoje me coloco na escuta dos discursos que emanam da escrita produzida no espaço de sala de aula. Quero pensar que os escutar não é tão somente uma atividade de pesquisador, mas que os escutar é também uma forma prazerosa de compreender como me constituo como produtor de textos e como posso contribuir com a escrita do outro, desse outro que me constitui, também, em sua escrita (ainda que não apenas por meio dela). No meu percurso de encontro com essa temática e com leituras sobre ela até o momento, aprendi também que, se para alguns, escrever é um exercício fácil e prazeroso, para outros não passa de uma atividade torturante, algo que se poderia adiar, como desejam diversas vezes muitos de nossos alunos, quando lhes é solicitado escrever, por exemplo, um artigo científico para uma disciplina, ou para um evento científico ou para um periódico. Estou convicto de que muitos alunos (inclusive formandos e até já graduados em Letras, e em outras áreas, certamente) compartilham até mesmo de um sentimento de aversão ao escrever, em especial quando se trata de escrever textos científicos. Para o aluno (o aluno de iniciação científica, o aluno que está começando o mestrado, por exemplo), que se encontra em um estágio inicial de formação como pesquisador, escrever um texto científico trata-se, muitas vezes, de uma atividade aterrorizante. Confrontados com a necessidade de obedecer a convenções específicas (até então desconhecidas) estabelecidas pela comunidade acadêmica, cujo domínio, via de regra, demanda tempo e realização de atividades sistemáticas, muitos alunos se sentem desencorajados a escrever qualquer texto. Na contramão desse quadro, tenho pensado e insistido em problematizar a relevância do exercício constante da produção de textos científicos e de publicação desses textos como pilares essenciais da formação do pesquisador, sobretudo do pesquisador iniciante. Se falo pilares, no plural mesmo, não quer dizer que eu tome o escrever e o publicar de forma estanque, separada. Minha ideia é não dissociar. Também não é pensar que se deva escrever textos científicos por obrigação (para cumprir, por exemplo, as exigências de uma disciplina, como expresso acima) ou para ceder às pressões do que se convencionou chamar de “produtivismo acadêmico”. É pensar que se escreve, acima de tudo, para se socializar uma leitura, uma compreensão, para interagir. É certo que, de início, logo nos primeiros escritos, é difícil esperar que o pesquisador iniciante consiga produzir um texto científico publicável. Se no começo é um texto com ideias mal articuladas ou mesmo com “cópias” de trechos, aos poucos, com trabalho de orientação, com incentivo constante e um pouco de persistência, se chega a um texto de mais qualidade. As idas e vindas, as rasuras, fazem parte do processo de aprendizado. E elas contribuem para que o pesquisador iniciante se aproprie das habilidades de escrita científica e se familiarize com as convenções próprias do fazer científico. Para aqueles que se situam no campo das ciências humanas, nos quais se inserem os estudiosos da linguagem, isso não pode ser visto como algo menos importante e significativo do que uma contribuição relevante apresentada por um pesquisador experiente. Afinal, não se pode esquecer que cada escrita tem um significado único, singular na vida de cada sujeito-pesquisador e no seu processo de formação. Quando insisto em não dissociar o escrever do publicar é porque penso também que o leque de possibilidades de diálogos que a publicação científica pode possibilitar contribui significativamente para o desenvolvimento pleno da capacidade de escrita de textos científicos. Penso que a escrita de textos dessa natureza é lugar para se explorar o diálogo com o-(s) outro-(s), a resposta de um outro como lugar de compreensão, cujos reflexos podem ser bastante proveitosos, já que, como nos ensina o pensamento bakhtiniano [2], “a compreensão amadurece apenas na resposta”. Penso aqui em várias possibilidades de diálogo, com: o outro que se é e que se altera a cada espaço-tempo da escrita; os autores, estudiosos e pesquisadores que se ler; o professor e/ou seu orientador de pesquisa; o seu colega, quando o texto que se produz é um trabalho coletivo; o avaliador do texto de um evento ou de um periódico o editor de um periódico ou o organizador de um livro; o interlocutor presumido (seja de um evento, de um periódico ou de uma coletânea); a grande temporalidade, de que fala o Círculo de Bakhtin. Ainda que essa rede de diálogos nem sempre seja possível ou ainda que o seu produtor não tenha um retorno visível e concreto de um outro (falando aqui de uma resposta sob a forma de correções, apontamentos, sugestões, encaminhamentos, etc.), é fundamental que o pesquisador, especialmente aquele iniciante, pratique o exercício constante da escrita do texto científico, porque há sempre, nessa prática, uma possibilidade de diálogo, de encontro com um outro (pode-se pensar aí os diálogos do tipo 01 e 07 suscitados acima), de interagir, o que não deixa de ser sempre um momento de rico aprendizado. Não se pode deixar de pensar o exercício da escrita de textos científicos também como um lugar de descobertas e de produção de conhecimentos, como postula Amorim [3], ao tratar da escrita do texto de pesquisa. Mais interessante mesmo é vislumbrar ser escutado/lido, porque acredito que, como consequência da intensidade com que se valoriza e se pratica a rede de diálogos apresentada acima, tem-se um alargamento cada vez maior da consciência do pesquisador, amplia-se a profundidade de sua compreensão – porque implicada aí uma luta entre pontos de vistas, entre posições de sujeitos, cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento [4] –, numa espécie de diálogo inconcluso, como bem retratado no poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto: Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. Diálogo como cruzamento de vozes, de ideias que se tecem a partir de ideias e que sugerem ideias, que são tomadas de empréstimo, “repetidas”, reacentuadas, que produzem sentidos… Profusão de diálogos, velados e explícitos (sem usar de más condutas), que marcam o dizer do pesquisador, (des)estabiliza-lhes e enriquecem seu dizer, ampliando, assim, as possibilidades de conquistar e assegurar uma maior interlocução no universo da academia, e, portanto, de se fazer escutar por outros tantos sujeitos. Afinal, como nos ensina Graciliano Ramos, em seu poema “As lavadeiras”, “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”. Que ousemos cada vez mais dizer e dizer sempre mais, ainda que o que se diz possa parecer coisa trivial para alguns, como condição de aprendizado e de paulatina inserção na esfera acadêmica, até porque, não se nasce pesquisador, tampouco sabendo escrever textos (científicos e não científicos) com maestria. O desafio da escrita é o mesmo de aprender falar e andar. E o desafio de se alcançar uma certa condição de excelência na escrita de textos científicos implica ao pesquisador (iniciante e também o já “adestrado”), a disposição para fazer e refazer quantas vezes forem necessárias, bem como a sabedoria para acolher elogios e receber críticas e (re)agir… Esse é um processo que se constrói a vida toda: a cada escrita, a cada texto corrigido, a cada parecer recebido, a cada texto recusado, a cada trabalho apresentado, a cada texto publicado, a cada reencontro com o papel em branco, a cada “(a)manhã”… Isso representa um modo de ser e de vivenciar, no mundo e na academia, a dimensão dialógica expressa pelo pensamento bakhtiniano, posto que, nessas condições, o escrever passa a ser lugar de compreensão, de exercício de reflexão, de descobertas, de aprendizado… enfim, lugar de escuta e, ao mesmo tempo, de fazer ouvir a “própria voz”, de se constituir como sujeito de linguagem, sujeito responsável e responsivo, em pleno embate de ideias. Ideias em jogo e movimento, dentro e fora de nós, em nó. [1] Registro aqui um agradecimento a Luciane de Paula pela leitura atenta da primeira versão deste texto e pela inter-ação estabelecida. Os valiosos apontamentos e pertinentes sugestões resultantes dessa inter-ação estão refletidos e refratados na versão aqui apresentada. [2] BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 90. [3] AMORIM, Marília. Freud e a escrita de pesquisa: uma leitura bakhtiniana. Eutomia: revista online de literatura e linguística, ano 2, n. 2 , dez. 2009. [4] BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 378. #bakhtin #diálogo #respondibilidade #sujeito
- A rebeldia de studium e as polêmicas daquilo que punge: pensando em capas de álbuns de rock
Glaucia Vaz Núbia Mical Colaboração: Luciane de Paula Para além de pensar sua origem que, pela própria mescla de gêneros musicais, pôs-se rebelde porque questionou valores, pensar em rock deveria ser ponto de partida para rever o conceito, historicamente marcado, de rebeldia: de que lugar, afinal, tal postura rebelde pode ser construída? Se, em sua invenção, a qual remonta às décadas de 40 e 50 do século XX, o rock (e toda uma subdivisão de gênero musical no qual foi ramificado) se constituiu lugar de contestações (musicais, comportamentais, culturais e sociais), seria possível pensá-lo, hoje, ainda atrelado a essa configuração discursiva de rebeldia de seu nascimento? Partindo de uma leitura discursiva de algumas capas de disco, cogitamos se chegaremos a temas especificamente de uma “cultura/postura rock”. Que batimentos discursivos possibilitaram determinados dizeres sobre uma noção de rebeldia? Pensemos, por exemplo, a polêmica gerada quando do lançamento de alguns álbuns nas décadas de 60/70/80: capas proibidas, censuradas, trocadas e, agora, relíquias para colecionadores: os casos de Virgin Killer (1976), dos Escorpions; Unfinished Music N°. 1: Two Virgins (1968), de John Lennon e Yoko Ono; Yesterday and Today (1966), dos Beatles; e Electric Ladyland (1968), de Jimi Hendrix. As capas desses álbuns trazem enunciados que funcionam dentro de uma regularidade que os configura, em especial, porque a nudez, nelas, pode ser tomada como enunciado específico. Longe de negar todo um sentido mercadológico, perguntamo-nos como é possível essa rebeldia ser objeto de Mercado. Além disso, diante desse itinerário [há um disco, há uma loja e há uma subversão escondida ali], resta na análise desse discurso, pensar a rebeldia como a procura por brechas no imaginário dos que possam ser afetados pelas capas dos discos, dando a si (como banda e como afirmadores de opinião), uma maneira de se comportar bem própria, frente às suas discordâncias existenciais. Porém, se colocarmos uma filosofia de imagem aqui (assim como tem a filosofia do comportamento, do mercado, da religião, da linguagem), somos impelidos a pensar a imagem do rock a formulações discursivas, projetando as consequências de colocá-lo dentro do modo de vivenciar nossas particularidades, recortadas em nosso cotidiano, em especial a necessidade das gravadoras e lojas de vender esses discos. A máxima de que uma imagem fala mais do que mil palavras prevalece no caso das capas e dos discos também, complementando letras subversivas e acordes alucinados. Assim, uma análise dessas imagens indica que o rock pode estar imerso numa possibilidade de manifestação, a qual se vincula a uma atitude. Virgin killer (1976) é a remissão a enunciados sobre a pureza da infância, para um conceito próprio de infância em que existe uma relação entre criança e adulto, bem como a não sexualidade se choca com a atualização do nu. Esse mesmo aspecto é enunciado numa configuração contrária ao que, hoje, poderia ser considerado crime (até remetendo à pedofilia). A memória discursiva, que choca distintas formações discursivas, é uma operadora de rebeldia quando se pensa na rachadura que aparece exatamente sobre o sexo da menina que está sentada de maneira sensualmente explícita, olhando fixamente para o spectator barthesiano, esse mesmo de A câmara clara, incomodando-o. Trata-se do studium e do punctum, um pé que escapa ao projeto geral da fotografia, mas que nos segura em sua forma e tamanho. Que lugar é esse em que o nu é sinal de rebeldia? O lugar em que o nu é um tabu e a criança não é sexualizada. O local em que nudez e sexualidade são elementos implicantes entre si. Para lá de pensar a história que aparece na imagem, podemos perguntar acerca da imagem que constitui o histórico e dele é constituído: a imagem que nos mostra “não, uma criança não pode ser objeto de sexualidade” ou “não, a nudez não pode estar assim exposta”. Não é a história que explica essa imagem, mas é da história e nela mesma que o studium é construído. O rock, não só o rock, desse lugar de contestação, se põe a chocar. Ainda assim, quando a fotografia é substituída, no Brasil, pela imagem do corpo (nu) de uma mulher com um escorpião, a nudez se faz ali uma necessidade – duas, em última instância: estratégia mercadológica e afirmação de uma identidade rebelde, o rock. Daí nos lembramos de Blind Faith (1969), homônima da banda, que traz esta mesma regularidade entre nudez-infância-sexualidade. Dispositivos no funcionamento de uma ordem dos dizeres. Eis o corpo como suporte de discursos. Unfinished Music N°.1: Two Virgins (1968) também é capa polêmica e proibida por conter dois adultos com os seus sexos expostos. A pose do casal é comum, típica de quem está diante de uma lente e espera ser capturado. Não se pode dizer que haja qualquer sensualidade na foto e a sexualidade não está em outro lugar senão na exposição dos corpos de Lennon e sua esposa. A capa trata de sexo? Definitivamente não, mas é com a nudez que o studium questiona essa construção do nu como expressão da sexualidade. É o sexo do ex-Beatle que aponta para nosso contrato social com o fotógrafo. E ficamos ali, abandonados nos e como os objetos que se encontram atrás dos corpos nus, vendo (e escutando) os ecos e reverberações dessa “ música inacabada”, como sugere o título do álbum. Por que não pensar também em Electric Ladyland (1968), de Jimi Hendrix? Ali, a rebeldia é construída nesses enunciados-olhos-que-nos-encaram: os seios das várias moças que, aglomeradas, são a formulação (sua imagem é a formulação) dos dizeres sobre a liberdade do corpo. Estamos na década de sessenta e o corpo precisa ser libertado. Mais que isso: o corpo, o sexo e a mulher – momento de grandes revoluções, como a sexual e a feminista, estão escancaradas nesses olhos que nos encaram. O rock se apresenta como o portador dessa reivindicação de liberdade, de deslocamentos elétricos, psicodélicos, embalados por LSD (refresco elétrico) e movimentos contraculturais massivos que cultuavam “paz e amor”. Yesterday and Today (1966) é o grotesco dos corpos de bonecos mutilados e pedações de carne, bonecos-bebês, sorrisos dos garotos de Liverpool, tudo isso que vem nos pungir e nos afetar em nosso posicionamento discursivo. Dois enunciados muito distintos na fragilidade desses sujeitos e a reação alegre dos sorrisos digladia com os pedaços dos corpos que carregam harmonicamente felizes. Um interdiscurso com o tempo e os sujeitos formado pelo grotesco. Um incômodo causado por uma (ir)regularidade. Sofremos e as poses-risos nos ferem em algum lugar que nos escapa. Esse studium que se dá no fluxo de ideias ao se deparar com imagens chocantes é ininterrupto. No entanto, o caminho atravessado de percepções, químicas, vivências e afetos do spectator está além do previsto. E é nesse punctum que nos deixamos para as roupas brancas dos boy rock band. Jalecos de açougueiros-médicos-professores. Limpos. Sem uma gota de sangue. Ao mesmo tempo, quase que insuportáveis no contato com os pedaços de carne com os quais brincam. Yesterday and Today (1966), The Beatles Nessa produção do incômodo é que a rebeldia do rock se constrói. Muito mais do que canções, vestuário e postura nos palcos, é no todo do conjunto que engloba também as capas de álbuns, os encartes, os shows, entrevistas e o estilo de vida (elementos aqui não abordados) que podemos ver funcionar lugares da história, posicionamentos que assumimos e a reatualização de sentidos já formulados outrora. A nossa contemporaneidade, influenciada pelo pensamento capitalista, procura trazer de novo à frente esse espírito adaptado. Até mesmo para os rebeldes, marginais, subversivos há um limite, um código moral no qual criança e sexualidade, por exemplo, não podem ser associados e muito menos colocados como análogos. Contudo, há uma necessidade real de agradar ao público dessas bandas: opta-se, então, por ficar no limite do aceitável (uma venda nos ombros de Yoko e de Lennon; um corpo feminino com um escorpião; ou ainda uma cruz cravejada de caveiras). O recurso à imagem, ao visual, torna-se imprescindível para o escapismo do estranho familiar que nos habita. O rock, como vanguarda artística, também esteve à mercê da vendagem, do que o mercado (e o mundo pós-guerra) poderia absorver em tempos difíceis (guerra fria, ditadura militar no Brasil, diversos movimentos socioculturais pelo mundo). Nada de santa ceia sangrenta nem coisas de terror. O mercado à procura de consumo engole as vivências e as ideologias pelas quais os jovens se projetam como pessoas ora contrapondo ora afirmando-se. Seja como for: “I want you”. #discurso #rock #capaspolêmicas #rebeldia #Barthes #imagem
- A rebeldia de studium e as polêmicas daquilo que punge: pensando em capas de álbuns de rock
Glaucia Vaz Núbia Mical Colaboração: Luciane de Paula Para além de pensar sua origem que, pela própria mescla de gêneros musicais, pôs-se rebelde porque questionou valores, pensar em rock deveria ser ponto de partida para rever o conceito, historicamente marcado, de rebeldia: de que lugar, afinal, tal postura rebelde pode ser construída? Se, em sua invenção, a qual remonta às décadas de 40 e 50 do século XX, o rock (e toda uma subdivisão de gênero musical no qual foi ramificado) se constituiu lugar de contestações (musicais, comportamentais, culturais e sociais), seria possível pensá-lo, hoje, ainda atrelado a essa configuração discursiva de rebeldia de seu nascimento? Partindo de uma leitura discursiva de algumas capas de disco, cogitamos se chegaremos a temas especificamente de uma “cultura/postura rock”. Que batimentos discursivos possibilitaram determinados dizeres sobre uma noção de rebeldia? Pensemos, por exemplo, a polêmica gerada quando do lançamento de alguns álbuns nas décadas de 60/70/80: capas proibidas, censuradas, trocadas e, agora, relíquias para colecionadores: os casos de Virgin Killer (1976), dos Escorpions; Unfinished Music N°. 1: Two Virgins (1968), de John Lennon e Yoko Ono; Yesterday and Today (1966), dos Beatles; e Electric Ladyland (1968), de Jimi Hendrix. As capas desses álbuns trazem enunciados que funcionam dentro de uma regularidade que os configura, em especial, porque a nudez, nelas, pode ser tomada como enunciado específico. Longe de negar todo um sentido mercadológico, perguntamo-nos como é possível essa rebeldia ser objeto de Mercado. Além disso, diante desse itinerário [há um disco, há uma loja e há uma subversão escondida ali], resta na análise desse discurso, pensar a rebeldia como a procura por brechas no imaginário dos que possam ser afetados pelas capas dos discos, dando a si (como banda e como afirmadores de opinião), uma maneira de se comportar bem própria, frente às suas discordâncias existenciais. Porém, se colocarmos uma filosofia de imagem aqui (assim como tem a filosofia do comportamento, do mercado, da religião, da linguagem), somos impelidos a pensar a imagem do rock a formulações discursivas, projetando as consequências de colocá-lo dentro do modo de vivenciar nossas particularidades, recortadas em nosso cotidiano, em especial a necessidade das gravadoras e lojas de vender esses discos. A máxima de que uma imagem fala mais do que mil palavras prevalece no caso das capas e dos discos também, complementando letras subversivas e acordes alucinados. Assim, uma análise dessas imagens indica que o rock pode estar imerso numa possibilidade de manifestação, a qual se vincula a uma atitude. Virgin killer (1976) é a remissão a enunciados sobre a pureza da infância, para um conceito próprio de infância em que existe uma relação entre criança e adulto, bem como a não sexualidade se choca com a atualização do nu. Esse mesmo aspecto é enunciado numa configuração contrária ao que, hoje, poderia ser considerado crime (até remetendo à pedofilia). A memória discursiva, que choca distintas formações discursivas, é uma operadora de rebeldia quando se pensa na rachadura que aparece exatamente sobre o sexo da menina que está sentada de maneira sensualmente explícita, olhando fixamente para o spectator barthesiano, esse mesmo de A câmara clara, incomodando-o. Trata-se do studium e do punctum, um pé que escapa ao projeto geral da fotografia, mas que nos segura em sua forma e tamanho. Que lugar é esse em que o nu é sinal de rebeldia? O lugar em que o nu é um tabu e a criança não é sexualizada. O local em que nudez e sexualidade são elementos implicantes entre si. Para lá de pensar a história que aparece na imagem, podemos perguntar acerca da imagem que constitui o histórico e dele é constituído: a imagem que nos mostra “não, uma criança não pode ser objeto de sexualidade” ou “não, a nudez não pode estar assim exposta”. Não é a história que explica essa imagem, mas é da história e nela mesma que o studium é construído. O rock, não só o rock, desse lugar de contestação, se põe a chocar. Ainda assim, quando a fotografia é substituída, no Brasil, pela imagem do corpo (nu) de uma mulher com um escorpião, a nudez se faz ali uma necessidade – duas, em última instância: estratégia mercadológica e afirmação de uma identidade rebelde, o rock. Daí nos lembramos de Blind Faith (1969), homônima da banda, que traz esta mesma regularidade entre nudez-infância-sexualidade. Dispositivos no funcionamento de uma ordem dos dizeres. Eis o corpo como suporte de discursos. Unfinished Music N°.1: Two Virgins (1968) também é capa polêmica e proibida por conter dois adultos com os seus sexos expostos. A pose do casal é comum, típica de quem está diante de uma lente e espera ser capturado. Não se pode dizer que haja qualquer sensualidade na foto e a sexualidade não está em outro lugar senão na exposição dos corpos de Lennon e sua esposa. A capa trata de sexo? Definitivamente não, mas é com a nudez que o studium questiona essa construção do nu como expressão da sexualidade. É o sexo do ex-Beatle que aponta para nosso contrato social com o fotógrafo. E ficamos ali, abandonados nos e como os objetos que se encontram atrás dos corpos nus, vendo (e escutando) os ecos e reverberações dessa “ música inacabada”, como sugere o título do álbum. Por que não pensar também em Electric Ladyland (1968), de Jimi Hendrix? Ali, a rebeldia é construída nesses enunciados-olhos-que-nos-encaram: os seios das várias moças que, aglomeradas, são a formulação (sua imagem é a formulação) dos dizeres sobre a liberdade do corpo. Estamos na década de sessenta e o corpo precisa ser libertado. Mais que isso: o corpo, o sexo e a mulher – momento de grandes revoluções, como a sexual e a feminista, estão escancaradas nesses olhos que nos encaram. O rock se apresenta como o portador dessa reivindicação de liberdade, de deslocamentos elétricos, psicodélicos, embalados por LSD (refresco elétrico) e movimentos contraculturais massivos que cultuavam “paz e amor”. Yesterday and Today (1966) é o grotesco dos corpos de bonecos mutilados e pedações de carne, bonecos-bebês, sorrisos dos garotos de Liverpool, tudo isso que vem nos pungir e nos afetar em nosso posicionamento discursivo. Dois enunciados muito distintos na fragilidade desses sujeitos e a reação alegre dos sorrisos digladia com os pedaços dos corpos que carregam harmonicamente felizes. Um interdiscurso com o tempo e os sujeitos formado pelo grotesco. Um incômodo causado por uma (ir)regularidade. Sofremos e as poses-risos nos ferem em algum lugar que nos escapa. Esse studium que se dá no fluxo de ideias ao se deparar com imagens chocantes é ininterrupto. No entanto, o caminho atravessado de percepções, químicas, vivências e afetos do spectator está além do previsto. E é nesse punctum que nos deixamos para as roupas brancas dos boy rock band. Jalecos de açougueiros-médicos-professores. Limpos. Sem uma gota de sangue. Ao mesmo tempo, quase que insuportáveis no contato com os pedaços de carne com os quais brincam. Yesterday and Today (1966), The Beatles Nessa produção do incômodo é que a rebeldia do rock se constrói. Muito mais do que canções, vestuário e postura nos palcos, é no todo do conjunto que engloba também as capas de álbuns, os encartes, os shows, entrevistas e o estilo de vida (elementos aqui não abordados) que podemos ver funcionar lugares da história, posicionamentos que assumimos e a reatualização de sentidos já formulados outrora. A nossa contemporaneidade, influenciada pelo pensamento capitalista, procura trazer de novo à frente esse espírito adaptado. Até mesmo para os rebeldes, marginais, subversivos há um limite, um código moral no qual criança e sexualidade, por exemplo, não podem ser associados e muito menos colocados como análogos. Contudo, há uma necessidade real de agradar ao público dessas bandas: opta-se, então, por ficar no limite do aceitável (uma venda nos ombros de Yoko e de Lennon; um corpo feminino com um escorpião; ou ainda uma cruz cravejada de caveiras). O recurso à imagem, ao visual, torna-se imprescindível para o escapismo do estranho familiar que nos habita. O rock, como vanguarda artística, também esteve à mercê da vendagem, do que o mercado (e o mundo pós-guerra) poderia absorver em tempos difíceis (guerra fria, ditadura militar no Brasil, diversos movimentos socioculturais pelo mundo). Nada de santa ceia sangrenta nem coisas de terror. O mercado à procura de consumo engole as vivências e as ideologias pelas quais os jovens se projetam como pessoas ora contrapondo ora afirmando-se. Seja como for: “I want you”. #discurso #rock #capaspolêmicas #rebeldia #Barthes #imagem
- A razão humana
Éderson Luis da Silveira A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente suas possibilidades. (Kant) Já se falou tanto em reticências, em olhares que se estendem ao infinito, em lugares incompletos, inalcançáveis, obscuros. Já se falou em complexidade, mencionaram-se solos plenos de estabilidade, lugares firmes para pisar, caminhar e se situar. Já se falou em planetas e em linguagem animal, já se falou e se desmitificou os rituais das abelhas e Benveniste a nos sussurrar do túmulo que não há língua(gem) sem homem que a utilize… Descobriu-se que nem tudo era estável no terreno da significação. Descobriu-se que nem sempre aquilo que digo é exatamente como eu vejo e que nossas visadas estão suscetíveis a posicionamentos. Depois disso, ou não necessariamente nesta ordem, Durkheim complicou mais ainda as evidências mencionando que o homem é um animal preso a uma teia de significados que ele mesmo teceu. E Darwin vem nos tirar a divindade e mostrar alguns ancestrais que não vieram de lendas e sopros divinos, tirou-nos do barro, não sem por isso ter sido penalizado pela loucura. Galileu e Copérnico tiraram-nos da órbita do universo. A psicanálise tirou-nos a primazia da razão. E as ciências cognitivas foram aos poucos estudando as maiores complexidades inerentes aos processos de significação. Processos, no plural… e assim as áreas foram alinhavando seus pontos de vista sobre a linguagem. Há até hoje quem acredite num modelo formal de comunicação em que uma pessoa diz algo que passa por um canal de comunicação e chega intacto tal qual foi mencionado. Também há quem veja nuances maiores e palavras por trás de palavras. Coisas ditas por trás do silêncio e até um deus de duas faces é acolhido como exemplo de cada verbo que traz seu oposto. Aqueles que leram parte do Gênesis, se não estiverem muito distraídos talvez percebam a importância da palavra, do signo, que cria mundos, que desconstrói, que destoa e imagina concretudes, tão abstratas quanto as visões daqueles que as imaginam. E então: quantas maçãs é preciso que eu tenha na minha frente para saber explicar o que é uma maçã? As concredutes podem beirar a abstração as significações podem ocorrer in absentia. E os valores que atribuímos às coisas: elas existem porque a elas fazemos referência ou fazemos referência porque elas existem (e lá vêm os gregos…). E então, entramos num terreno de perguntas e indecisões: como estudar o sentido (esta coisa sempre em movimento que nos escapa quando o tentamos engaiolar em certezas)? Qual o sentido que pode emergir de palavras ditas, ou desditas? E quanto à ironia (algo que se diz – na tentativa de – significar o oposto)? E quando houver intervalos que extrapolam as intenções do falante? As lacunas vão desregrando mundos inteiros, palavras que vão ampliando horizontes de significação e desestabilizando. Entramos no terreno das reticências. Quanto daquilo que escrevo é realmente meu? Existe algo que seja meu de fato? Conseguirei eu manter impregnadas àquilo que escrevo marcas de autoria suficientes que me tornem possível o reconhecimento dos leitores daquele que escreve? Percorrer caminhos de significação é descobrir limites, ampliar expectativas, relutar em perceber intervalos de significado e constituição de saberes além-dito, além sentido, além-evocado, além-interpretado…além-mar. E nesta multidão de hifenizações vou aos poucos me descobrindo tal qual identidade múltipla que pode vir a ser outra coisa a cada instante, tal qual fluidez que vai caracterizando aquilo que digo e sou. E manter o pé no chão… por tanto tempo foi o que se quis alcançar. Mas por baixo do solo se #discurso #linguagem #sujeito
- A razão humana
Éderson Luis da Silveira A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente suas possibilidades. (Kant) Já se falou tanto em reticências, em olhares que se estendem ao infinito, em lugares incompletos, inalcançáveis, obscuros. Já se falou em complexidade, mencionaram-se solos plenos de estabilidade, lugares firmes para pisar, caminhar e se situar. Já se falou em planetas e em linguagem animal, já se falou e se desmitificou os rituais das abelhas e Benveniste a nos sussurrar do túmulo que não há língua(gem) sem homem que a utilize… Descobriu-se que nem tudo era estável no terreno da significação. Descobriu-se que nem sempre aquilo que digo é exatamente como eu vejo e que nossas visadas estão suscetíveis a posicionamentos. Depois disso, ou não necessariamente nesta ordem, Durkheim complicou mais ainda as evidências mencionando que o homem é um animal preso a uma teia de significados que ele mesmo teceu. E Darwin vem nos tirar a divindade e mostrar alguns ancestrais que não vieram de lendas e sopros divinos, tirou-nos do barro, não sem por isso ter sido penalizado pela loucura. Galileu e Copérnico tiraram-nos da órbita do universo. A psicanálise tirou-nos a primazia da razão. E as ciências cognitivas foram aos poucos estudando as maiores complexidades inerentes aos processos de significação. Processos, no plural… e assim as áreas foram alinhavando seus pontos de vista sobre a linguagem. Há até hoje quem acredite num modelo formal de comunicação em que uma pessoa diz algo que passa por um canal de comunicação e chega intacto tal qual foi mencionado. Também há quem veja nuances maiores e palavras por trás de palavras. Coisas ditas por trás do silêncio e até um deus de duas faces é acolhido como exemplo de cada verbo que traz seu oposto. Aqueles que leram parte do Gênesis, se não estiverem muito distraídos talvez percebam a importância da palavra, do signo, que cria mundos, que desconstrói, que destoa e imagina concretudes, tão abstratas quanto as visões daqueles que as imaginam. E então: quantas maçãs é preciso que eu tenha na minha frente para saber explicar o que é uma maçã? As concredutes podem beirar a abstração as significações podem ocorrer in absentia. E os valores que atribuímos às coisas: elas existem porque a elas fazemos referência ou fazemos referência porque elas existem (e lá vêm os gregos…). E então, entramos num terreno de perguntas e indecisões: como estudar o sentido (esta coisa sempre em movimento que nos escapa quando o tentamos engaiolar em certezas)? Qual o sentido que pode emergir de palavras ditas, ou desditas? E quanto à ironia (algo que se diz – na tentativa de – significar o oposto)? E quando houver intervalos que extrapolam as intenções do falante? As lacunas vão desregrando mundos inteiros, palavras que vão ampliando horizontes de significação e desestabilizando. Entramos no terreno das reticências. Quanto daquilo que escrevo é realmente meu? Existe algo que seja meu de fato? Conseguirei eu manter impregnadas àquilo que escrevo marcas de autoria suficientes que me tornem possível o reconhecimento dos leitores daquele que escreve? Percorrer caminhos de significação é descobrir limites, ampliar expectativas, relutar em perceber intervalos de significado e constituição de saberes além-dito, além sentido, além-evocado, além-interpretado…além-mar. E nesta multidão de hifenizações vou aos poucos me descobrindo tal qual identidade múltipla que pode vir a ser outra coisa a cada instante, tal qual fluidez que vai caracterizando aquilo que digo e sou. E manter o pé no chão… por tanto tempo foi o que se quis alcançar. Mas por baixo do solo se #discurso #linguagem #sujeito
- O título ainda vai ser tecido
Danyllo Ferreira Leite Basso Co-labor-ação: Luciane de Paula Ano ultimo. Último ano. Ano de despedida. Despedida de anos. Emoções desimpedidas são rompidas. E tantas rupturas e cisões comedidas. Ah, outras são impedidas. Entre as mais pedidas: as desentendidas. Como entender as idas e as vindas, voltas e re-voltas pelas quais passa o universitário sujeito em seu uni-verso solitário!? O itinerário vai do árido ao hilário. Tudo tão bizarro! Atam-se nós, desatam-se nós, articulam-se novos e antigos nós, amarrados até as entranhas. Nós cegos e também os frouxos que estrangulam-se uns aos outros. E assim se vão tecendo todos nós. Nós todos, tecidos nós. A sós, muito embora pareça-nos que o só sempre é, pelos menos, três nós: os nós de ontem, os nós de hoje e os nós de amanhã. Nunca os mesmos. Nós que se atam e desatam em nós, continuamente descontínuos. Passado, presente e futuro num só tempo: o tempo da mente, que mente e sente verdadeira-mente. Cria passado e futuro a partir do presente. Presente ente. Entes ados e urros: presente inexistente, pois liame histórico entre passados e futuros perpétuos e em constante construção. Memória criativa. Recriativa. Recreativa. Que cativa e ativa o que bem entende a partir dos moldes do ente e de sua história. Figurativa, representativa. Re(a)presenta e faz o passado voltar à ativa. Tudo de novo, novo. Renovo. E nesse renovo há o ovo pra nascitura da tessitura futura. Tecido em fios. Filigranas de nós. Nossos novos nós. Então, talvez, o passado e o futuro, até mesmo presente, são inexistentes. Não. São existentes na mente, no coração e no estômago do ente. Ora doente, ora carente, ora paciente, ora agente. A gente re-a-gente. Gente. Ficção. Fixação no homem. Fixação do homem. Dos homens. Assim, o tempo é ficção a-temporal. Parecia que ia durar. Ia. Não foi. Nem é. Para sempre que sempre acaba. Mas, independente do tempo que dura, ele perdura e perfura as paredes da memória. Sempre transitória. Em trânsito. Em movimento. Em curso! Dis-curso! Assim, segue esse meu eu, não só meu, mas também teu, que busca, na parede da lembrança, a esperança para a futura dança. Dança que traz, em sua elegância, a superação dessa ânsia. Busco em cada canto, e em cada encanto, o canto, o riso e o sorriso da minha memória despedaçada. A todos jogada. Refratada. Cada um, com sua parte dela, que é também minha e exatamente o que a faz mais bela nessa tela. Ao mesmo tempo que do presente olho o que já se desenhou, encorajo-me e, pela janela, olho o futuro que, por vezes, parece-me duro, mas está decidido. Cindido. Tido dito e não-dito. Mal-dito. Bem-dito. Qualquer coisa, depois me curo. Vou correr os riscos. Vou lançar ao mundo meus novos riscos. Vou desenhar ao passo que me desenho. Vou escrever como sou escrito. Estou, nessa vida, inscrito. Não pedirei aos céus as contas. Aos poucos, seguro as pontas. Amarro todas elas e malho novo tecido. Tecido de pano. Tecido de carne. Tecido de alma. Enfeite. Rede. Pra deitar e descansar. Tecido protetor. Pra /fazer–crer/. Tecido estendido aos que jamais serão esquecidos. Bandeira branca e negra, a mim e a quem mais as merecer. Eu-outro nós! #diálogo #eu #outro
- O título ainda vai ser tecido
Danyllo Ferreira Leite Basso Co-labor-ação: Luciane de Paula Ano ultimo. Último ano. Ano de despedida. Despedida de anos. Emoções desimpedidas são rompidas. E tantas rupturas e cisões comedidas. Ah, outras são impedidas. Entre as mais pedidas: as desentendidas. Como entender as idas e as vindas, voltas e re-voltas pelas quais passa o universitário sujeito em seu uni-verso solitário!? O itinerário vai do árido ao hilário. Tudo tão bizarro! Atam-se nós, desatam-se nós, articulam-se novos e antigos nós, amarrados até as entranhas. Nós cegos e também os frouxos que estrangulam-se uns aos outros. E assim se vão tecendo todos nós. Nós todos, tecidos nós. A sós, muito embora pareça-nos que o só sempre é, pelos menos, três nós: os nós de ontem, os nós de hoje e os nós de amanhã. Nunca os mesmos. Nós que se atam e desatam em nós, continuamente descontínuos. Passado, presente e futuro num só tempo: o tempo da mente, que mente e sente verdadeira-mente. Cria passado e futuro a partir do presente. Presente ente. Entes ados e urros: presente inexistente, pois liame histórico entre passados e futuros perpétuos e em constante construção. Memória criativa. Recriativa. Recreativa. Que cativa e ativa o que bem entende a partir dos moldes do ente e de sua história. Figurativa, representativa. Re(a)presenta e faz o passado voltar à ativa. Tudo de novo, novo. Renovo. E nesse renovo há o ovo pra nascitura da tessitura futura. Tecido em fios. Filigranas de nós. Nossos novos nós. Então, talvez, o passado e o futuro, até mesmo presente, são inexistentes. Não. São existentes na mente, no coração e no estômago do ente. Ora doente, ora carente, ora paciente, ora agente. A gente re-a-gente. Gente. Ficção. Fixação no homem. Fixação do homem. Dos homens. Assim, o tempo é ficção a-temporal. Parecia que ia durar. Ia. Não foi. Nem é. Para sempre que sempre acaba. Mas, independente do tempo que dura, ele perdura e perfura as paredes da memória. Sempre transitória. Em trânsito. Em movimento. Em curso! Dis-curso! Assim, segue esse meu eu, não só meu, mas também teu, que busca, na parede da lembrança, a esperança para a futura dança. Dança que traz, em sua elegância, a superação dessa ânsia. Busco em cada canto, e em cada encanto, o canto, o riso e o sorriso da minha memória despedaçada. A todos jogada. Refratada. Cada um, com sua parte dela, que é também minha e exatamente o que a faz mais bela nessa tela. Ao mesmo tempo que do presente olho o que já se desenhou, encorajo-me e, pela janela, olho o futuro que, por vezes, parece-me duro, mas está decidido. Cindido. Tido dito e não-dito. Mal-dito. Bem-dito. Qualquer coisa, depois me curo. Vou correr os riscos. Vou lançar ao mundo meus novos riscos. Vou desenhar ao passo que me desenho. Vou escrever como sou escrito. Estou, nessa vida, inscrito. Não pedirei aos céus as contas. Aos poucos, seguro as pontas. Amarro todas elas e malho novo tecido. Tecido de pano. Tecido de carne. Tecido de alma. Enfeite. Rede. Pra deitar e descansar. Tecido protetor. Pra /fazer–crer/. Tecido estendido aos que jamais serão esquecidos. Bandeira branca e negra, a mim e a quem mais as merecer. Eu-outro nós! #diálogo #eu #outro
- Com licença a palavra poética
Bruna de Souza Silva “Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, mas quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras… O fluxo eterno das coisas, é a própria essência do mundo”. (Heráclito de Éfeso, Filósofo Grego, Séc. V a. C) A palavra vive. Saltita, vibra, seduz, envolve, agita, age, branda, adocica, amarga, atinge, tinge, molda, transforma, soma, posiciona, assume, de dentro ou por fora, o fato é que, de certa maneira, a palavra que se fez torna-se, em qualquer modalidade, necessariamente ativa. Sentido este que a considera tecida por meio de um processo, não limitada em si como uma estrutura linguístico-gramatical distanciada da realidade da vida, mas sim, em confronto e diálogo, com valores ideológicos, históricos e sociais. O circulo russo de Bakhtin não possuiu especificidades relativas propriamente à poesia, entretanto, suas discussões vinculadas à linguagem são tão abrangentes que satisfazê-las somente com a prosa seria limitá-las e não compreender as interdependências nas relações conceituais – impossíveis de serem dissociadas, pertencentes a um projeto filosófico dimensionado, em principal, entre diálogo, cultura e vida. Poética, nesse prisma, aborda toda linguagem ou discurso poético, de maneira ampla e influenciada – notoriamente – pela prosaica, em realce, de sua relação com a semântica. Conforme o teórico Cristovão Tezza ressalta (2006, p. 216), “para Bakhtin, o poético é a expressão completa de um olhar sobre o mundo que chama a si a responsabilidade total de suas palavras”. A palavra poética de Arnaldo Antunes, como exemplar dessas considerações, será aqui proposta a uma breve reflexão, diante das variações de sentidos ocasionados, em prioritário, por sua maneira própria (estilística) de se relacionar e expressar as palavras. Nesse caso, por meio do poema “Rio: o ir” (1997, p. 45), um trabalho específico entre sentido, palavra e imagem. Nesse ato artístico há um posicionamento particular do poeta com a linguagem, muito usual no percorrer de suas obras. Com camadas múltiplas de significação, a procura de clareza expressiva atrelada à “coerência de esquemas lógicos”, André Gardel (2006) salienta que “No ato de desentranhar poético do não-poético, Arnaldo Antunes negocia com métodos, vocábulos e composições das ciências naturais, principalmente a física e a biologia”. Na construção artística mencionada, salienta-se a estrutura poética formada por base da dupla apresentação: o poema visual é exibido a partir da palavra rio, disposta de forma circular para, infere-se, aludir ao caráter cíclico e contínuo das águas, em metáfora à vida, ao qual os rios levam ao mar (como um ralo natural) que é, simultaneamente, ponto de partida e de chegada; sucessivo e sequente. O verso–titulo que compõe o poema, por sua vez, esta posicionado em uma espécie de equação onde a palavra rio esta exposta compatível à sua constituição inversa (o ir), de modo a sugerir a ênfase aos movimentos de ida e volta em representação à confluência natural e contínua do rio. Portanto, em complementação ou completude a outra parte do poema – que pode ser lido do interior ao exterior ou do exterior ao interior. Percepções plausíveis a partir do todo discursivo que tende a apresentar liames com outros discursos ou uma cadeia verbal constituída de enunciações, ao qual, um enunciado provoca outro. Nas palavras de Bakhtin/Volochínov, a enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites (2012, p. 129); afinal, a enunciação é de natureza social (2012, p. 113) e a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. (2012, p. 117). É conveniente ressalvar, contudo, entre as inúmeras relações entre enunciados de momentos históricos distintos associados à obra em análise, dentre variadas experimentações estéticas e parcerias, em conscientização, é claro, de que os diálogos existentes em um dado enunciado são inesgotáveis, a conveniente ligação com a canção “O rio” (2006), composta por Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown e Seu Jorge. Ouve o barulho do rio, meu filho Deixa esse som te embalar As folhas que caem no rio, meu filho Terminam nas águas do mar Quando amanhã por acaso faltar Uma alegria no seu coração Lembra do som dessas águas de lá Faz desse rio a sua oração Lembra, meu filho, passou, passará Essa certeza, a ciência nos dá Que vai chover quando o sol se cansar Para que flores não faltem Para que flores não faltem jamais (http://www.marisamonte.com.br/pt/musica/infinito-particular/cifras/infinito-particular-o-rio. Segue link da canção para ser lida/ouvida, uma vez que o gênero é composto de, no mínimo, letra e música e, nesse caso, tratar de um enunciado construído a partir de um outro, anteriormente existente. Processo típico em AA, já iniciado quando ele se encontrava nos Titãs. Exemplo: Poema e canção “O que”, em análise por Luciane de Paula) Por meio da letra aludida, nota-se que o sujeito da canção revela um apelo ao outro (ouve o barulho do rio, meu filho) sugestionado por inúmeras metáforas. O sujeito lírico apresenta, ao percorrer a canção, a atenção ao som típico do rio (como uma canção de acalanto – Deixa esse som te embalar) destinado a se deixar levar pelo curso da vida, por uma espécie de “destino”, marcado, aqui, pela natureza e, especificamente, pelo rio às ondas do mar. O rio é outra vez citado por seu caráter sequente em menção a elementos físicos e lógicos, em paralelo, neste plano de sentido, com a simbologia à passagem “indispensável” do tempo (lembra, meu filho, passou, passará). O rio, em suma, é equiparado a uma oração por transmitir serenidade sonora e prosseguir em um processo natural imprescindível para vida (Que vai chover quando o sol se cansar / Para que flores não faltem / Jamais). O acontecimento poético, mesmo em gêneros diferentes, é, portanto, ocasionada por uma re-significação semântica atrelada à forma de expressão, ao trabalho com a palavra, ao agir na linguagem e como ou quem atribui-lhe sentidos – a compreensão com a promoção de diálogos específicos inexauríveis que se complementam entre si e, solicitam, em seu todo, a harmonização de sentidos. Em essência de texto, por fim, se alude ao poeta Paes (1996) que, por sua vez, remete à máxima filosófica de Heráclito, aqui exposta como epígrafe inspiradora desta breve reflexão, pois a palavra poética nunca se gasta por completo: “quanto mais se brinca com elas, mais novas ficam / como a água do rio que é água sempre nova / como cada dia que é sempre um novo dia / Vamos brincar de poesia?” Referências bibliográficas principais: Antunes, Arnaldo. Dois ou mais corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997. Bakhtin, M. M. (MEDVEDEV). (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003. Bakhtin, M. M. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. PAES, José Paulo. Quem, eu? São Paulo: Atual, 1996. http://www.arnaldoantunes.com.br/ http://www.marisamonte.com.br/pt #poética #palavra #arnaldoantunes #bakhtin #marisamonte #diálogo
- Com licença a palavra poética
Bruna de Souza Silva “Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, mas quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras… O fluxo eterno das coisas, é a própria essência do mundo”. (Heráclito de Éfeso, Filósofo Grego, Séc. V a. C) A palavra vive. Saltita, vibra, seduz, envolve, agita, age, branda, adocica, amarga, atinge, tinge, molda, transforma, soma, posiciona, assume, de dentro ou por fora, o fato é que, de certa maneira, a palavra que se fez torna-se, em qualquer modalidade, necessariamente ativa. Sentido este que a considera tecida por meio de um processo, não limitada em si como uma estrutura linguístico-gramatical distanciada da realidade da vida, mas sim, em confronto e diálogo, com valores ideológicos, históricos e sociais. O circulo russo de Bakhtin não possuiu especificidades relativas propriamente à poesia, entretanto, suas discussões vinculadas à linguagem são tão abrangentes que satisfazê-las somente com a prosa seria limitá-las e não compreender as interdependências nas relações conceituais – impossíveis de serem dissociadas, pertencentes a um projeto filosófico dimensionado, em principal, entre diálogo, cultura e vida. Poética, nesse prisma, aborda toda linguagem ou discurso poético, de maneira ampla e influenciada – notoriamente – pela prosaica, em realce, de sua relação com a semântica. Conforme o teórico Cristovão Tezza ressalta (2006, p. 216), “para Bakhtin, o poético é a expressão completa de um olhar sobre o mundo que chama a si a responsabilidade total de suas palavras”. A palavra poética de Arnaldo Antunes, como exemplar dessas considerações, será aqui proposta a uma breve reflexão, diante das variações de sentidos ocasionados, em prioritário, por sua maneira própria (estilística) de se relacionar e expressar as palavras. Nesse caso, por meio do poema “Rio: o ir” (1997, p. 45), um trabalho específico entre sentido, palavra e imagem. Nesse ato artístico há um posicionamento particular do poeta com a linguagem, muito usual no percorrer de suas obras. Com camadas múltiplas de significação, a procura de clareza expressiva atrelada à “coerência de esquemas lógicos”, André Gardel (2006) salienta que “No ato de desentranhar poético do não-poético, Arnaldo Antunes negocia com métodos, vocábulos e composições das ciências naturais, principalmente a física e a biologia”. Na construção artística mencionada, salienta-se a estrutura poética formada por base da dupla apresentação: o poema visual é exibido a partir da palavra rio, disposta de forma circular para, infere-se, aludir ao caráter cíclico e contínuo das águas, em metáfora à vida, ao qual os rios levam ao mar (como um ralo natural) que é, simultaneamente, ponto de partida e de chegada; sucessivo e sequente. O verso–titulo que compõe o poema, por sua vez, esta posicionado em uma espécie de equação onde a palavra rio esta exposta compatível à sua constituição inversa (o ir), de modo a sugerir a ênfase aos movimentos de ida e volta em representação à confluência natural e contínua do rio. Portanto, em complementação ou completude a outra parte do poema – que pode ser lido do interior ao exterior ou do exterior ao interior. Percepções plausíveis a partir do todo discursivo que tende a apresentar liames com outros discursos ou uma cadeia verbal constituída de enunciações, ao qual, um enunciado provoca outro. Nas palavras de Bakhtin/Volochínov, a enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites (2012, p. 129); afinal, a enunciação é de natureza social (2012, p. 113) e a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. (2012, p. 117). É conveniente ressalvar, contudo, entre as inúmeras relações entre enunciados de momentos históricos distintos associados à obra em análise, dentre variadas experimentações estéticas e parcerias, em conscientização, é claro, de que os diálogos existentes em um dado enunciado são inesgotáveis, a conveniente ligação com a canção “O rio” (2006), composta por Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown e Seu Jorge. Ouve o barulho do rio, meu filho Deixa esse som te embalar As folhas que caem no rio, meu filho Terminam nas águas do mar Quando amanhã por acaso faltar Uma alegria no seu coração Lembra do som dessas águas de lá Faz desse rio a sua oração Lembra, meu filho, passou, passará Essa certeza, a ciência nos dá Que vai chover quando o sol se cansar Para que flores não faltem Para que flores não faltem jamais (http://www.marisamonte.com.br/pt/musica/infinito-particular/cifras/infinito-particular-o-rio. Segue link da canção para ser lida/ouvida, uma vez que o gênero é composto de, no mínimo, letra e música e, nesse caso, tratar de um enunciado construído a partir de um outro, anteriormente existente. Processo típico em AA, já iniciado quando ele se encontrava nos Titãs. Exemplo: Poema e canção “O que”, em análise por Luciane de Paula) Por meio da letra aludida, nota-se que o sujeito da canção revela um apelo ao outro (ouve o barulho do rio, meu filho) sugestionado por inúmeras metáforas. O sujeito lírico apresenta, ao percorrer a canção, a atenção ao som típico do rio (como uma canção de acalanto – Deixa esse som te embalar) destinado a se deixar levar pelo curso da vida, por uma espécie de “destino”, marcado, aqui, pela natureza e, especificamente, pelo rio às ondas do mar. O rio é outra vez citado por seu caráter sequente em menção a elementos físicos e lógicos, em paralelo, neste plano de sentido, com a simbologia à passagem “indispensável” do tempo (lembra, meu filho, passou, passará). O rio, em suma, é equiparado a uma oração por transmitir serenidade sonora e prosseguir em um processo natural imprescindível para vida (Que vai chover quando o sol se cansar / Para que flores não faltem / Jamais). O acontecimento poético, mesmo em gêneros diferentes, é, portanto, ocasionada por uma re-significação semântica atrelada à forma de expressão, ao trabalho com a palavra, ao agir na linguagem e como ou quem atribui-lhe sentidos – a compreensão com a promoção de diálogos específicos inexauríveis que se complementam entre si e, solicitam, em seu todo, a harmonização de sentidos. Em essência de texto, por fim, se alude ao poeta Paes (1996) que, por sua vez, remete à máxima filosófica de Heráclito, aqui exposta como epígrafe inspiradora desta breve reflexão, pois a palavra poética nunca se gasta por completo: “quanto mais se brinca com elas, mais novas ficam / como a água do rio que é água sempre nova / como cada dia que é sempre um novo dia / Vamos brincar de poesia?” Referências bibliográficas principais: Antunes, Arnaldo. Dois ou mais corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997. Bakhtin, M. M. (MEDVEDEV). (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003. Bakhtin, M. M. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. PAES, José Paulo. Quem, eu? São Paulo: Atual, 1996. http://www.arnaldoantunes.com.br/ http://www.marisamonte.com.br/pt #poética #palavra #arnaldoantunes #bakhtin #marisamonte #diálogo






