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  • Canção-canções: o mesmo é outro

    Nicole Mioni Serni (Doutorado PPGLLP UNESP FCL Araraquara) Em minha pesquisa de mestrado, ao analisar o filme musical Across the Universe, entre as várias discussões geradas por meio do corpus, o conceito de cronotopo, conforme os estudos do Círculo de Bakhtin, entre outros, foi-me muito caro. O filme musical Across the Universe, que possui em sua trama apenas canções dos Beatles, constrói em seu interior performances das canções da banda britânica em suas cenas e também, por vezes, a “mesma canção” (as aspas logo serão justificadas), segue sendo interpretada em cenas diferentes, entoadas por personagens diferentes, em espaços e tempos específicos. A continuidade ou “repetição” da “mesma canção” compõe, a cada cena, sujeito, espaço e tempo, significados diferentes, pois, a cada enunciação única daquela dada canção, ainda que seja a “mesma”, não a é, porque seus significados são (re)formulados a cada novo sujeito, espaço, e tempo que a situa. Busco trazer aqui neste breve texto uma reflexão inspirada em minhas análises do mestrado, porém sem a delimitação de um filme musical apenas, mas sim de obras musicais diferentes, que se constroem a partir da “mesma canção”. A canção Seasons of Love faz parte do musical Rent, que, tendo estreado na Broadway em 1996, teve sua versão para o cinema lançada apenas em 2005. E é a partir da obra cinematográfica, inspirada na peça musical, que pretendo refletir aqui. Seasons of Love é a primeira canção interpretada no filme, na cena de abertura, em que aparecem ainda parte dos créditos do filme. O vídeo referente a esta cena pode ser vizualisado aqui. A letra da canção fala sobre como poderíamos “medir” um ano: em minutos, em dias, em risadas, em cafés, ou em amor? Ao ser entoada a letra em Rent, os significados produzidos são únicos e se relacionam com o contexto do filme, uma vez que temas como vida e amor serão discutidos ao longo da trama, que, para os que não conhecem o filme, discute o uso de drogas, o desemprego, a relação homoafetiva, a liberação sexual e a AIDS, por meio de um grupo de amigos em Nova Iorque. Uma das canções, também muito conhecida, do musical em questão repete o enunciado “No day but today”, o que reforça a temática de se aproveitar cada segundo da vida, tempo precioso quando visto por meio dos olhos das personagens com AIDS. A “mesma” canção de Rent pode ser encontrada em um outro musical, pois, Seasons of Love é a primeira canção a ser interpretada no epísodio The Quarterback, terceiro episódio da quinta temporada da série televisiva Glee. O vídeo se encontra aqui. A série se configura como musical, uma vez que todos os episódios possuem performances de canções, feitas pelas personagens, sendo parte composicional e essencial no interior da trama de cada episódio individualmente, assim como na construção da história da série como um todo. Na abertura do episódio em questão, as personagens aparecem cantando Seasons of Love todas vestindo preto, sua disposição no palco e a iluminação fazem referência à cena original de Rent, mas a canção, mesmo sendo aparentemente a mesma, cria sentidos muito diferentes da cena do filme musical. Na história da série, esse episódio se refere à morte de uma das personagens, Finn Hudson, que além de fazer parte do grupo de coral, jogava na posição “Quarterback” do time de futebol americano. O título do episódio já faz referência à personagem em questão e, ao longo do episodio, todas as canções serão relacionadas com sua morte. A personagem de Finn Hudson era interpretada pelo ator Cory Moteith, que faleceu em julho de 2013. A performance da canção Seasons of Love no interior desse episodio cria, desse modo, sentidos que se estendem para além da série: a canção se relaciona com a arte e também com a vida. A relação arte e vida, quando pensada a partir dos estudos do Círculo, encontra-se em constante diálogo, pois “A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico […] encontra resposta direta e intrínseca dentro dela.” (VOLOCHINOV, p.2). O autor do Círculo afirma também que, para analisar o discurso na arte, “precisamos antes analisar em detalhes certos aspectos dos enunciados verbais fora do campo da arte – enunciados da fala da vida e das ações cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística.” (idem, p.4). Para a compreensão do gênero canção, no caso da presente reflexão, no seriado Glee, o diálogo entre arte e vida é essencial para a análise, uma vez que essa relação intrínseca se dá pelos sentidos únicos a cada enunciação da canção Seasons of Love, em um dado espaço e tempo, por dados sujeitos. É o cronotopo que “ambienta” as diferentes performances da canção no filme e no seriado musical. Ao cantar sobre “como medir um ano”, as personagens de Rent colocam em questão a vida a ser vivida, em devir, enquanto os significados gerados a partir da performance das personagens de Glee se relacionam com a vida já passada, vivida, pela personagem da trama e também sujeito da vida, que falecera. A aparente “mesma” canção se mostra por meio de musicais diferentes e demonstra as construções de sentido específicas geradas a partir de cada uma das cenas, em cada enunciado, enquanto as referenciações à vida, ilustram o diálogo constante e ininterrupto entre a produção artística e o social, relações que nunca se encontram finalizadas, mas em processo de novas gera(ações) de respostas, em movimento.

  • Cultura popular vs. cultura oficial: embates ideológicos na criação do jazz

    Marcela Barchi Paglione É comum dentro das manifestações artístico-culturais o embate entre o que poderia ser considerado verdadeiramente arte e o que é, desse ponto de vista excludente, “massivo”, popular. Costuma-se opor a chamada cultura oficial, com C maiúsculo, da cultura popular, rebaixada em contraste com a elevada. Há um grupo social mais crítico que não aceita como válido o popular, preconceituosamente tido como menos rico, menos bem elaborado. O que ocorre é que o popular é próximo da esfera do cotidiano, está mais ligado ao inacabamento da vida, mas não é por isso que deve ser rebaixado à noção ideológica de manifestação cultural inferior. Este embate se deve à errônea divisão polarizada entre o popular e o oficial, ou entre o coloquial e o artístico, de forma que cada manifestação deve se enquadrar em uma divisão que se encontra em um local afastado, não-corrompido pelo outro. Na realidade, há uma inter-relação dialética entre a chamada cultura oficial e a popular. Devemos levar em conta que o que é elevado pode ser um dia levado à esfera das manifestações culturais populares, ou seja, “cair no gosto do povão”, incorporado pela “indústria cultural”, o que poderia ser considerado um rebaixamento de sua qualidade para os mais puristas, que logo encontram algo que não tenha sido ainda descoberto pela massa. Por outro lado, o que é popular, massivo, pode vir a ser oficial. No que tange a discussão sobre gêneros discursivos, os gêneros do cotidiano, primários, podem receber acabamento estético e maior posicionamento ideológico, tornando gêneros secundários. Tomamos como exemplo neste texto a música jazzística. O jazz é um exemplo de ter nascido em meio ao embate entre culturas, há dentro de sua constituição um embate ideológico: por um lado, o que seria a cultura musical oficial, que é aprendida em escolas, a chamada música “clássica”, teoricamente aprendida e registrada oficialmente em partituras; por outro, o “baixo”, popular, pois era parte da cultura negra, rebaixada no processo de colonização dos estados americanos do sul. Os negros trabalhavam nas lavouras e, a partir das chamadas work songs, canções que entoavam enquanto trabalhavam, combinadas com as músicas espirituais em que demonstravam sua fé, além do ritmo mais marcado, próprio às regiões tropicais e da frequente improvisação. Nascido do diálogo entre duas culturas aparentemente opostas, o jazz tem em sua constituição o embate entre o popular, negro e africano, e o clássico, branco e europeu. Criado nos anos 20, na cidade de Nova Orléans, Estados Unidos, cidade marcada pelo embate cultural único dos diversos povos que ali chegam pelos portos, como africanos, franceses entre outros, não poderia haver melhor berço para um estilo musical tipicamente dialógico. À medida que as múltiplas influências alienígenas se vão ligando nesse forno nativo que é Nova Orleans, ganha o negro novos elementos que acrescentar à sua música. Polcas e mazurcas europeias são executadas lado a lado com melodias folclóricas, ritmos afro-cubanos, danças espanholas canções calipso (…). Mas o fator negro – o mais orgânico – continua predominante. (MORAES, 1941, p. 82) Segundo Moraes, na Congo Square, no coração da cidade, era permitido para os negros o exercício de rituais de sua cultura em público, em meio a eles eles, havia sempre a música e a dança, ambiente raro em que se podia ver a coexistência cultural do que era oficial e não-oficial, uma verdadeira praça pública. Em um sentido um pouco mais metafórico, os bordéis de Nova Orléans, como em uma espécie de “praça pública”, eram os locais onde as culturas chamadas não-oficiais poderiam coexistir com a oficial, onde adquiriam mesmo status. Havia uma liberdade dos músicos para exprimirem sua cultura à sua maneira, sem precisar recorrer às formas fixas de partituras da música clássica. Havia na Congo Square e nos bordéis da cidade a festividade e os rituais populares, ambos pertencentes à esfera da vida cotidiana. Em meio a estes ambientes plenos de diferença um ambiente propício à formação deste estilo musical dançante, tão diferente do clássico europeu. Um ritmo marcado pela latinidade, pelo calor dos trópicos e pela alegria de um povo em um momento de liberdade, transparecida nos frequentes improvisos dentro das músicas. Faz-se presente o elemento corporal e coletivo nas músicas de forma que qualquer um que as ouvissem era impelido a se movimentar e participar da dança, além da relação deste estilo de música com a sensualidade do baixo ventre (já indicado pela proximidade da música com os subúrbios e os bordéis), inibido na música clássica e na cultura oficial em favor da racionalidade do alto extrato corpóreo, a cabeça. O jazz é uma música com raízes populares, nasce da festividade do povo afro-americano, como um momento de liberdade frente à opressão branca, mas também é influenciada pelas raízes europeias clássicas aprendidas primeiramente pelos músicos, pois aquela era o único estilo musical possível na época. As músicas jazzísticas trazem dentro de si costumes diversos e diferentes tradições musicais, de tal forma imbricadas uma na outra que não podemos separar e dizer, isto é influência da música de Bach etc. É por isto que este estilo é tão único e ao mesmo tempo dialógico. No entanto, apesar de ter sido constituído na e pela população negra, ou creole, principalmente de Nova Orléans, com a popularização do estilo, este acaba sendo incorporado pela cultura “branca”, saindo dos subúrbios e casas noturnas para gravadoras e casas de show, ou seja, torna-se oficial. Certamente estamos trazendo o problema de forma simplória, de forma a discutir a implicação de uma cultura em outra. Não há, portanto, uma segregação do que é popular, massivo interna ao objeto, este o é conforme os fios ideológicos diversos que nele perpassam, o embate ideológico entre o popular e o oficial, formando, assim, o juízo de valor, positivo ou negativo. Tanto o é que, hoje, jazz é considerado quase “cult”, destinado ao público de gosto “mais refinado”. Isto nos indica a trajetória ideológica desta manifestação cultural, em um primeiro momento de extrema popularidade, e, em outro, elevada a quase um “clássico” na tradição musical ocidental. A partir do exemplo do jazz é possível entendermos que há uma relação dialética entre o popular, presente na esfera do cotidiano, ou “massivo”, e o oficial, artístico-ideológico, de forma que ambos se constituem em diálogo, num constante inacabamento próprio à existência. É através desta relação que pensamos em um vir-a-ser permanente das posições ideológicas das manifestações culturais, já que o signo tem em si milhares de fios ideológicos conforme os grupos sociais que o utilizam. Assim, dentro do gênero canção, buscamos o exemplo do Jazz, que contem em si o embate ideológico das classes sociais. Referências BAKHTIN, M.M (1920-1974). Estética da Criação Verbal. Trad. (russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ___. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. MORAES, V de. Jazz & co. São Paulo: Companhia das letras, 1941.

  • Cultura popular vs. cultura oficial: embates ideológicos na criação do jazz

    Marcela Barchi Paglione É comum dentro das manifestações artístico-culturais o embate entre o que poderia ser considerado verdadeiramente arte e o que é, desse ponto de vista excludente, “massivo”, popular. Costuma-se opor a chamada cultura oficial, com C maiúsculo, da cultura popular, rebaixada em contraste com a elevada. Há um grupo social mais crítico que não aceita como válido o popular, preconceituosamente tido como menos rico, menos bem elaborado. O que ocorre é que o popular é próximo da esfera do cotidiano, está mais ligado ao inacabamento da vida, mas não é por isso que deve ser rebaixado à noção ideológica de manifestação cultural inferior. Este embate se deve à errônea divisão polarizada entre o popular e o oficial, ou entre o coloquial e o artístico, de forma que cada manifestação deve se enquadrar em uma divisão que se encontra em um local afastado, não-corrompido pelo outro. Na realidade, há uma inter-relação dialética entre a chamada cultura oficial e a popular. Devemos levar em conta que o que é elevado pode ser um dia levado à esfera das manifestações culturais populares, ou seja, “cair no gosto do povão”, incorporado pela “indústria cultural”, o que poderia ser considerado um rebaixamento de sua qualidade para os mais puristas, que logo encontram algo que não tenha sido ainda descoberto pela massa. Por outro lado, o que é popular, massivo, pode vir a ser oficial. No que tange a discussão sobre gêneros discursivos, os gêneros do cotidiano, primários, podem receber acabamento estético e maior posicionamento ideológico, tornando gêneros secundários. Tomamos como exemplo neste texto a música jazzística. O jazz é um exemplo de ter nascido em meio ao embate entre culturas, há dentro de sua constituição um embate ideológico: por um lado, o que seria a cultura musical oficial, que é aprendida em escolas, a chamada música “clássica”, teoricamente aprendida e registrada oficialmente em partituras; por outro, o “baixo”, popular, pois era parte da cultura negra, rebaixada no processo de colonização dos estados americanos do sul. Os negros trabalhavam nas lavouras e, a partir das chamadas work songs, canções que entoavam enquanto trabalhavam, combinadas com as músicas espirituais em que demonstravam sua fé, além do ritmo mais marcado, próprio às regiões tropicais e da frequente improvisação. Nascido do diálogo entre duas culturas aparentemente opostas, o jazz tem em sua constituição o embate entre o popular, negro e africano, e o clássico, branco e europeu. Criado nos anos 20, na cidade de Nova Orléans, Estados Unidos, cidade marcada pelo embate cultural único dos diversos povos que ali chegam pelos portos, como africanos, franceses entre outros, não poderia haver melhor berço para um estilo musical tipicamente dialógico. À medida que as múltiplas influências alienígenas se vão ligando nesse forno nativo que é Nova Orleans, ganha o negro novos elementos que acrescentar à sua música. Polcas e mazurcas europeias são executadas lado a lado com melodias folclóricas, ritmos afro-cubanos, danças espanholas canções calipso (…). Mas o fator negro – o mais orgânico – continua predominante. (MORAES, 1941, p. 82) Segundo Moraes, na Congo Square, no coração da cidade, era permitido para os negros o exercício de rituais de sua cultura em público, em meio a eles eles, havia sempre a música e a dança, ambiente raro em que se podia ver a coexistência cultural do que era oficial e não-oficial, uma verdadeira praça pública. Em um sentido um pouco mais metafórico, os bordéis de Nova Orléans, como em uma espécie de “praça pública”, eram os locais onde as culturas chamadas não-oficiais poderiam coexistir com a oficial, onde adquiriam mesmo status. Havia uma liberdade dos músicos para exprimirem sua cultura à sua maneira, sem precisar recorrer às formas fixas de partituras da música clássica. Havia na Congo Square e nos bordéis da cidade a festividade e os rituais populares, ambos pertencentes à esfera da vida cotidiana. Em meio a estes ambientes plenos de diferença um ambiente propício à formação deste estilo musical dançante, tão diferente do clássico europeu. Um ritmo marcado pela latinidade, pelo calor dos trópicos e pela alegria de um povo em um momento de liberdade, transparecida nos frequentes improvisos dentro das músicas. Faz-se presente o elemento corporal e coletivo nas músicas de forma que qualquer um que as ouvissem era impelido a se movimentar e participar da dança, além da relação deste estilo de música com a sensualidade do baixo ventre (já indicado pela proximidade da música com os subúrbios e os bordéis), inibido na música clássica e na cultura oficial em favor da racionalidade do alto extrato corpóreo, a cabeça. O jazz é uma música com raízes populares, nasce da festividade do povo afro-americano, como um momento de liberdade frente à opressão branca, mas também é influenciada pelas raízes europeias clássicas aprendidas primeiramente pelos músicos, pois aquela era o único estilo musical possível na época. As músicas jazzísticas trazem dentro de si costumes diversos e diferentes tradições musicais, de tal forma imbricadas uma na outra que não podemos separar e dizer, isto é influência da música de Bach etc. É por isto que este estilo é tão único e ao mesmo tempo dialógico. No entanto, apesar de ter sido constituído na e pela população negra, ou creole, principalmente de Nova Orléans, com a popularização do estilo, este acaba sendo incorporado pela cultura “branca”, saindo dos subúrbios e casas noturnas para gravadoras e casas de show, ou seja, torna-se oficial. Certamente estamos trazendo o problema de forma simplória, de forma a discutir a implicação de uma cultura em outra. Não há, portanto, uma segregação do que é popular, massivo interna ao objeto, este o é conforme os fios ideológicos diversos que nele perpassam, o embate ideológico entre o popular e o oficial, formando, assim, o juízo de valor, positivo ou negativo. Tanto o é que, hoje, jazz é considerado quase “cult”, destinado ao público de gosto “mais refinado”. Isto nos indica a trajetória ideológica desta manifestação cultural, em um primeiro momento de extrema popularidade, e, em outro, elevada a quase um “clássico” na tradição musical ocidental. A partir do exemplo do jazz é possível entendermos que há uma relação dialética entre o popular, presente na esfera do cotidiano, ou “massivo”, e o oficial, artístico-ideológico, de forma que ambos se constituem em diálogo, num constante inacabamento próprio à existência. É através desta relação que pensamos em um vir-a-ser permanente das posições ideológicas das manifestações culturais, já que o signo tem em si milhares de fios ideológicos conforme os grupos sociais que o utilizam. Assim, dentro do gênero canção, buscamos o exemplo do Jazz, que contem em si o embate ideológico das classes sociais. Referências BAKHTIN, M.M (1920-1974). Estética da Criação Verbal. Trad. (russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ___. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993. MORAES, V de. Jazz & co. São Paulo: Companhia das letras, 1941.

  • Sofia “Fome Come”

    Luciane de Paula “Gente eu tô ficando impaciente A minha fome é persistente” Para aqueles que estão perdidos com a corrente da “infomaré”, como cantaria Gil, perguntando-se “Como e o que faço com tanta informação?”, minha resposta é: Antropofagia! Devore! Mais uma (informação/reflexão) pra coleção, então. Essa, inspirada em Sofia, a sabedoria de 7 anos que, personificada, caminha, fala, canta e encanta a todos com suas perguntas e reflexões profundas, como as de Manoel de Barros. Sofia não convida, ela se atira e nos arranca de nossa inércia a habitar o seu mundo. Com esse ponto de vista, num prisma caótico de quem tenta captar as refrações iluminadas que antes não via, tento, a partir das reverberações de vozes que ouço e vejo, chamar a luz de fora da minha caverna tão confortável, sem me arriscar cegar, jamais olhando diretamente para a luz-realidade que, de fato, nem sei se existe, mas não me importo mais com isso, uma vez que é a produção da significação que me atrai e rouba a atenção, hipnoticamente. Lembrando-me de um tempo atrás, quando eu e Sofia, de “mãos dadas” e sem nos afastarmos muito (como diria Drummond), cantávamos e dançávamos, bem como tentávamos aprender a percussão com mãos e copos (a la Barbatuques), no ritmo cada vez mais acelerado da canção “Fome come” (de Sandra Peres e Paulo Tatit – isso mesmo, o irmão do Luiz que eu tanto cito), da Palavra Cantada, peguei-me sem pensar, fluida, como se quer esta escrita, automática, tentando angariar diálogos sem pensar em suas conexões racionais ou amparados pelo academicismo e, para a minha surpresa catártica, veio à minha mente: a antropofagia come come. Olhei para a Sofia e a vi me ensinando como é que a Fome come, com suas mãozinhas batucando e sua voz entoando a canção numa naturalidade que eu havia perdido. Ao observar, desconcentrei-me, fiquei perdida no tempo-espaço da canção performática. E pensei, tentando recobrar a razão de uma professora-pesquisadora que não se dá o respeito: É isso o que a academia faz com a gente. Desumaniza. A gente deixa de ter reflexos, de re-agir, não atua, só repete fórmulas de que não devemos repeti-las. Eh, estamos precisando da sabedoria de Sofias, de devorar a fome que come. Por isso, peço ajuda a ela para tentar me despregar de meu ostracismo costumeiro e dançar com as palavras aqui. Isso porque de nada adianta entoar que “Gente eu tô ficando impaciente A minha fome é persistente Come frio, come quente Come o que vê pela frente Come a língua, come o dente Qualquer coisa que alimente A fome come simplesmente Come tudo no ambiente Tudo que seja atraente É uma forma absorvente Come e nunca é suficiente Toda fome é tão carente Come o amor que a gente sente A fome come eternamente No passado e no presente A fome é sempre descontente” Nada adianta essa fome automática que nada alimenta. É preciso reaprender a comer. Sim, estou nessa fase. Sentir a cada mordida, mais, a cada toque da língua, o sabor do alimento. Feito recém-nascido, reaprender a ter sensações gustativas de vida. Sabor pela vida. Saborear o saber. Sofia, help me. Saber saborear requer operações cirúrgicas precisas. Isso mesmo. Não no corpo, mas na mente, no espírito, na língua. Transformar em ato cada mordida, pensada conscientemente, sem automatizar em ação para que o estômago não grite. Ser, toda, “Coração cabeça estômago” (Camilo Castelo Branco). Para tentar trazer ao corpo essa estratosfera solta, seguem quatro vídeos da Palavra Cantada. Versões da mesma canção – que, enunciada, não são a mesma, mas muitas: . o primeiro é de um show completo, chamado “Brincadeiras Musicais” – vejam a partir dos 19 minutos e 35 segundos a canção citada com uma outra, anterior…a brincadeira com o copo e as palmas é uma delícia…treino com a Sofia (E tem gente que pensa que isso virou moda nos Estados Unidos há pouco tempo e chegou aqui via “Caldeirão do Huck”, nada disso minha gente. A brincadeira é “véia” e boa); . o segundo só da canção “Fome come”, de um outro show, o Pé com Pé, só com Paulo e Sandra; . o terceiro só com os brincantes da trupe, num festival de canção “infantil” de Curitiba; e . o último, do clipe oficial da canção, cantada por Sofia e por mim – foi com esse que me perdi para, aqui, tentar, agora, encontrar-me, ainda em êxtase. A mim, os clipes lembram muito uma mistura de concretismo, Secos e Molhados e Hermeto Paschoal, em especial o último. Vejam se gostam. Melhor, antopofagiemo-nos com eles. Ou, como canta Adriana Calcanhoto (em “Vamos comer Caetano”): “Vamos comê-lo cru” (em diversos sentidos). Isso mesmo: “Pela frente / pelo verso / vamos lamber a língua”. Pelo verso, em especial. Afinal, já pregavam os modernistas de 1ª. geração (essencialmente, Tarsila, Oswald e Mário) e os concretistas retomaram (sobretudo, Augusto e Haroldo de Campos): o verso é multimodal, música e imagem da língua. “Verbo-voco-visual”, como denominou Décio Pignatari a potencialidade semiótica da poesia concreta – tal qual a palavra cantada de “Fome Come”. Concretamente enunciada. Enunciado enunciado que é enunciação. Ato em ação com a performance “brincadeira”. E como muda a cada enunciação (basta reparar cada realização entoada em cada vídeo). Ler a letra, escutar a canção e assistir ao vídeo são práticas completamente diferentes. A Tropicália (destaco Torquato Neto e Caetano) arrasa e Arnaldo Antunes (nem comentarei nada sobre essa minha paixão) explode na contemporaneidade com essa “Comida” titânica tão brasuca. Por que e como conseguimos esse feito enunciativo sincrético, mais, híbrido, tão típico da contemporaneidade e tão nosso? Somos assim, antropófagos. Devoramo-nos. Nos nós nus – ora apertos, ora amarras frouxas, mas sempre na nudez além da roupa e do famigerado corpo sígnico, pois a medula óssea se encontra no discurso que, por sua vez, instaura-se no não-dito, mais que explícito, implícito e subentendido, na pausa, no ritmo, na cadência, no molejo que come come gamers, antigos e clássicos da modernidade e da pós-modernidade. O estômago é o órgão da contemporaneidade. Será q é por isso q sofremos tantas gastrites, hérnias, úlceras e demais inflamações? Falta-nos mastigar e digerir melhor o mundo, gestar a vida e vomitar “estrelas de mil pontas” (além da hora da morte)? Temos sofrido de má digestão. Então, mastiguemos direito nossas leituras e matemos nossa fome sem sermos ruminantes ou sendo-os. Ruminar também é importante. Ruminar a ideia, deixa-la brotar de dentro, não engolir qualquer coisa, barrar o que faz mal, adverte-nos corpos saudáveis, tidos como des-ajustados des-ajuizados. E que fome é essa que temos, de tudo: informação, formação, ato-ação? De onde vem? “Se vem de fora ela devora, ela devora (qualquer coisa que alimente) Se for cultura ela tritura, ela tritura Se o que vem é uma cantiga ela mastiga, ela mastiga Ela então nunca discute só deglute, só deglute E se for conversa mole se for mole ela engole Se faz falta no abdomem fome come, fome come” Vem de dentro, de fora, dos lados, de todo lugar. Fome além da fome. Fome de alimento nutritivo além da comida literal (claro que essa também é essencial). Fome de todas as comidas. Fome de comer o outro: outra cultura, outro alimento, outro sujeito, outro enunciado, de todos os lados – frente, verso, avesso – em todos os tempos e lugares – “na rua, na chuva, na fazenda / ou numa casinha de sapé” (Hyldon), “no chão, no mar, na lua, na melodia” (Rita Lee e Roberto de Carvalho), em qualquer posição (o kama sutra da Palavra que nos aguarde no osso, no oco, espesso e fluido). Fome de não-pensar, não-correção, nada padrão. Fome de diversidade(s) e diferenças. Fome humana porque “somo inclassificáveis” (de novo, Arnaldo Antunes)! Fome antropofágica. A Sofia é quem sabe o que é antropofagia e palavra cantada. Mas, na dúvida, outro dia, resolvi perguntar e escutei ativamente que “Fome é quando dá aquela dor na barriga da gente e a gente tem que comer” e, entoando no ritmo que adora (do último vídeo), continuou sua resposta com a Palavra Cantada: “Come o que vê pela frente Come a língua, come o dente Qualquer coisa que alimente A fome come simplesmente Come tudo no ambiente (…) É uma forma absorvente (…) Come o amor que a gente sente A fome come eternamente (…) Fome come, fome come” E terminou com “Come come / come come” fazendo som de barulho de dente rangendo a gente pelo meio. Senti-me triturada, esmagada, deglutida, digerida. Aqueles dentinhos que, de leite, estão se tornando, pouco a pouco, permanentes, ainda são móveis (que bom!) e me mastigaram até por suas janelinhas. Senti-me passando por tudo: lábios, dentes, gengiva, palato, língua e, antes mesmo que eu pudesse esboçar reação, escorreguei pela laringe e me vi, como Dóris (de Procurando Nemo), tendo de arriscar “sofiês” para ser cuspida daquele estomagozinho tão efetivo! Que bom que vamos, juntas, conhecendo o cancioneiro brasileiro e ela me ensina a deglutir, mastigar bem e digerir tudo…ainda mais com suas janelas…Aproveitemos! Antropofagiemo-nUs todos, com sofias mil! Tem muita informação no mundo, de toda espécie e sobre tudo. Nós é q temos de aprender a direcionar, escolher e, acima de tudo, a partir disso, digerir bem, o bem, com alguém. Trocar. Gerar outra e mais in-formação. Lixo (do) luxo? Luxo (do) lixo? LU xô! Ok…tô indo…tô indo…cheia de fome. Acho que já tem comida suficiente por enquanto. “Fome come, fome come”. 😉 #antropofagia #canção

  • Sofia “Fome Come”

    Luciane de Paula “Gente eu tô ficando impaciente A minha fome é persistente” Para aqueles que estão perdidos com a corrente da “infomaré”, como cantaria Gil, perguntando-se “Como e o que faço com tanta informação?”, minha resposta é: Antropofagia! Devore! Mais uma (informação/reflexão) pra coleção, então. Essa, inspirada em Sofia, a sabedoria de 7 anos que, personificada, caminha, fala, canta e encanta a todos com suas perguntas e reflexões profundas, como as de Manoel de Barros. Sofia não convida, ela se atira e nos arranca de nossa inércia a habitar o seu mundo. Com esse ponto de vista, num prisma caótico de quem tenta captar as refrações iluminadas que antes não via, tento, a partir das reverberações de vozes que ouço e vejo, chamar a luz de fora da minha caverna tão confortável, sem me arriscar cegar, jamais olhando diretamente para a luz-realidade que, de fato, nem sei se existe, mas não me importo mais com isso, uma vez que é a produção da significação que me atrai e rouba a atenção, hipnoticamente. Lembrando-me de um tempo atrás, quando eu e Sofia, de “mãos dadas” e sem nos afastarmos muito (como diria Drummond), cantávamos e dançávamos, bem como tentávamos aprender a percussão com mãos e copos (a la Barbatuques), no ritmo cada vez mais acelerado da canção “Fome come” (de Sandra Peres e Paulo Tatit – isso mesmo, o irmão do Luiz que eu tanto cito), da Palavra Cantada, peguei-me sem pensar, fluida, como se quer esta escrita, automática, tentando angariar diálogos sem pensar em suas conexões racionais ou amparados pelo academicismo e, para a minha surpresa catártica, veio à minha mente: a antropofagia come come. Olhei para a Sofia e a vi me ensinando como é que a Fome come, com suas mãozinhas batucando e sua voz entoando a canção numa naturalidade que eu havia perdido. Ao observar, desconcentrei-me, fiquei perdida no tempo-espaço da canção performática. E pensei, tentando recobrar a razão de uma professora-pesquisadora que não se dá o respeito: É isso o que a academia faz com a gente. Desumaniza. A gente deixa de ter reflexos, de re-agir, não atua, só repete fórmulas de que não devemos repeti-las. Eh, estamos precisando da sabedoria de Sofias, de devorar a fome que come. Por isso, peço ajuda a ela para tentar me despregar de meu ostracismo costumeiro e dançar com as palavras aqui. Isso porque de nada adianta entoar que “Gente eu tô ficando impaciente A minha fome é persistente Come frio, come quente Come o que vê pela frente Come a língua, come o dente Qualquer coisa que alimente A fome come simplesmente Come tudo no ambiente Tudo que seja atraente É uma forma absorvente Come e nunca é suficiente Toda fome é tão carente Come o amor que a gente sente A fome come eternamente No passado e no presente A fome é sempre descontente” Nada adianta essa fome automática que nada alimenta. É preciso reaprender a comer. Sim, estou nessa fase. Sentir a cada mordida, mais, a cada toque da língua, o sabor do alimento. Feito recém-nascido, reaprender a ter sensações gustativas de vida. Sabor pela vida. Saborear o saber. Sofia, help me. Saber saborear requer operações cirúrgicas precisas. Isso mesmo. Não no corpo, mas na mente, no espírito, na língua. Transformar em ato cada mordida, pensada conscientemente, sem automatizar em ação para que o estômago não grite. Ser, toda, “Coração cabeça estômago” (Camilo Castelo Branco). Para tentar trazer ao corpo essa estratosfera solta, seguem quatro vídeos da Palavra Cantada. Versões da mesma canção – que, enunciada, não são a mesma, mas muitas: . o primeiro é de um show completo, chamado “Brincadeiras Musicais” – vejam a partir dos 19 minutos e 35 segundos a canção citada com uma outra, anterior…a brincadeira com o copo e as palmas é uma delícia…treino com a Sofia (E tem gente que pensa que isso virou moda nos Estados Unidos há pouco tempo e chegou aqui via “Caldeirão do Huck”, nada disso minha gente. A brincadeira é “véia” e boa); . o segundo só da canção “Fome come”, de um outro show, o Pé com Pé, só com Paulo e Sandra; . o terceiro só com os brincantes da trupe, num festival de canção “infantil” de Curitiba; e . o último, do clipe oficial da canção, cantada por Sofia e por mim – foi com esse que me perdi para, aqui, tentar, agora, encontrar-me, ainda em êxtase. A mim, os clipes lembram muito uma mistura de concretismo, Secos e Molhados e Hermeto Paschoal, em especial o último. Vejam se gostam. Melhor, antopofagiemo-nos com eles. Ou, como canta Adriana Calcanhoto (em “Vamos comer Caetano”): “Vamos comê-lo cru” (em diversos sentidos). Isso mesmo: “Pela frente / pelo verso / vamos lamber a língua”. Pelo verso, em especial. Afinal, já pregavam os modernistas de 1ª. geração (essencialmente, Tarsila, Oswald e Mário) e os concretistas retomaram (sobretudo, Augusto e Haroldo de Campos): o verso é multimodal, música e imagem da língua. “Verbo-voco-visual”, como denominou Décio Pignatari a potencialidade semiótica da poesia concreta – tal qual a palavra cantada de “Fome Come”. Concretamente enunciada. Enunciado enunciado que é enunciação. Ato em ação com a performance “brincadeira”. E como muda a cada enunciação (basta reparar cada realização entoada em cada vídeo). Ler a letra, escutar a canção e assistir ao vídeo são práticas completamente diferentes. A Tropicália (destaco Torquato Neto e Caetano) arrasa e Arnaldo Antunes (nem comentarei nada sobre essa minha paixão) explode na contemporaneidade com essa “Comida” titânica tão brasuca. Por que e como conseguimos esse feito enunciativo sincrético, mais, híbrido, tão típico da contemporaneidade e tão nosso? Somos assim, antropófagos. Devoramo-nos. Nos nós nus – ora apertos, ora amarras frouxas, mas sempre na nudez além da roupa e do famigerado corpo sígnico, pois a medula óssea se encontra no discurso que, por sua vez, instaura-se no não-dito, mais que explícito, implícito e subentendido, na pausa, no ritmo, na cadência, no molejo que come come gamers, antigos e clássicos da modernidade e da pós-modernidade. O estômago é o órgão da contemporaneidade. Será q é por isso q sofremos tantas gastrites, hérnias, úlceras e demais inflamações? Falta-nos mastigar e digerir melhor o mundo, gestar a vida e vomitar “estrelas de mil pontas” (além da hora da morte)? Temos sofrido de má digestão. Então, mastiguemos direito nossas leituras e matemos nossa fome sem sermos ruminantes ou sendo-os. Ruminar também é importante. Ruminar a ideia, deixa-la brotar de dentro, não engolir qualquer coisa, barrar o que faz mal, adverte-nos corpos saudáveis, tidos como des-ajustados des-ajuizados. E que fome é essa que temos, de tudo: informação, formação, ato-ação? De onde vem? “Se vem de fora ela devora, ela devora (qualquer coisa que alimente) Se for cultura ela tritura, ela tritura Se o que vem é uma cantiga ela mastiga, ela mastiga Ela então nunca discute só deglute, só deglute E se for conversa mole se for mole ela engole Se faz falta no abdomem fome come, fome come” Vem de dentro, de fora, dos lados, de todo lugar. Fome além da fome. Fome de alimento nutritivo além da comida literal (claro que essa também é essencial). Fome de todas as comidas. Fome de comer o outro: outra cultura, outro alimento, outro sujeito, outro enunciado, de todos os lados – frente, verso, avesso – em todos os tempos e lugares – “na rua, na chuva, na fazenda / ou numa casinha de sapé” (Hyldon), “no chão, no mar, na lua, na melodia” (Rita Lee e Roberto de Carvalho), em qualquer posição (o kama sutra da Palavra que nos aguarde no osso, no oco, espesso e fluido). Fome de não-pensar, não-correção, nada padrão. Fome de diversidade(s) e diferenças. Fome humana porque “somo inclassificáveis” (de novo, Arnaldo Antunes)! Fome antropofágica. A Sofia é quem sabe o que é antropofagia e palavra cantada. Mas, na dúvida, outro dia, resolvi perguntar e escutei ativamente que “Fome é quando dá aquela dor na barriga da gente e a gente tem que comer” e, entoando no ritmo que adora (do último vídeo), continuou sua resposta com a Palavra Cantada: “Come o que vê pela frente Come a língua, come o dente Qualquer coisa que alimente A fome come simplesmente Come tudo no ambiente (…) É uma forma absorvente (…) Come o amor que a gente sente A fome come eternamente (…) Fome come, fome come” E terminou com “Come come / come come” fazendo som de barulho de dente rangendo a gente pelo meio. Senti-me triturada, esmagada, deglutida, digerida. Aqueles dentinhos que, de leite, estão se tornando, pouco a pouco, permanentes, ainda são móveis (que bom!) e me mastigaram até por suas janelinhas. Senti-me passando por tudo: lábios, dentes, gengiva, palato, língua e, antes mesmo que eu pudesse esboçar reação, escorreguei pela laringe e me vi, como Dóris (de Procurando Nemo), tendo de arriscar “sofiês” para ser cuspida daquele estomagozinho tão efetivo! Que bom que vamos, juntas, conhecendo o cancioneiro brasileiro e ela me ensina a deglutir, mastigar bem e digerir tudo…ainda mais com suas janelas…Aproveitemos! Antropofagiemo-nUs todos, com sofias mil! Tem muita informação no mundo, de toda espécie e sobre tudo. Nós é q temos de aprender a direcionar, escolher e, acima de tudo, a partir disso, digerir bem, o bem, com alguém. Trocar. Gerar outra e mais in-formação. Lixo (do) luxo? Luxo (do) lixo? LU xô! Ok…tô indo…tô indo…cheia de fome. Acho que já tem comida suficiente por enquanto. “Fome come, fome come”. 😉 #antropofagia #canção

  • REFLEXÕES SOBRE UM CERTO SUJEITO DA COMPREENSÃO NO UNIVERSO DAS REDES SOCIAIS

    José Cezinaldo Rocha Bessa [1] Falta amor no mundo. Mas também falta interpretação de texto. (Leonardo Sakamoto) Este texto nasce de uma provocação, posta pela epígrafe reproduzida acima e por uma razão que mais adiante espero deixar claro. Por isso mesmo, a ideia é que ele se constitua também em uma provocação. Uma provocação a contrapalavras. Uma provocação a compreensões responsivas e reflexivas. Uma provocação a um debate que, nesse momento, apenas se insinua como um projeto de dizer inconcluso, cujo propósito é instigar, no embate de e entre ideias, uma compreensão mais profunda sobre um tema que me parece fundamental em um tempo em que a internet e, em particular redes sociais como Facebook, MySpace, Twiter, Instagram, WahtsApp, Linked, Sonico, Badoo, Google + , entre tantas outras [2], desempenha papel enorme e determinante na vida e nas relações de e entre pessoas em conexão em todo o mundo. O tema que me move, nesta reflexão, é o ato de compreensão, que será problematizado no contexto do fenômeno recente da produção, circulação e recepção de textos no universo das redes sociais, as quais, pelo que se tem visto, caracterizam um “mundo novo” dominado pelas novas tecnologias e que vive sob a forte influência do que se tem denominado de geração Z [3] . Parto da convicção de que, para além da interpretação, tem faltado, em diversas interações que se dão no universo das redes sociais, sobretudo no Facebook, o que proponho denominar de compreensão responsável. Quero, portanto, falar de compreensão de texto/enunciado/discurso como compreensão responsável [4]. À noção bakhtiniana de compreensão responsiva, corrente em diversos textos do Círculo de Bakhtin e de estudiosos do pensamento desse Círculo, eu proponho acrescentar o termo responsável, ainda que isso possa parecer ou ser redundante. Mesmo que da perspectiva bakhtiniana o ser responsivo seja ele também um sujeito responsável, eu proponho o termo compreensão responsável, para explicitar tanto a minha adesão à teoria do ato responsável formulada por Bakhtin [5] , como também para enfatizar a ideia corrente do termo responsável em nossa sociedade, retomada, aqui, conforme significações encontradas em dois dicionários online e reproduzidas logo a seguir: Responsabilidade s.f. Obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros. / Caráter ou estado do que é responsável. [6]. responsabilidade sf. 1 Qualidade de responsável. 2 Dir Dever jurídico de responder pelos próprios atos e os de outrem, sempre que estes atos violem os direitos de terceiros, protegidos por lei, e de reparar os danos causados. 3 O dever de dar conta de alguma coisa que se fez ou mandou fazer, por ordem pública ou particular. 4 Imposição legal ou moral de reparar ou satisfazer qualquer dano ou perda. [7] Tomando esses significados dicionarizados e o sentido filosófico do termo responsabilidade como proposto pelo pensamento bakhtiniano, quero pensar e propor um modo de apreensão do sujeito da compreensão no mundo contemporâneo, entendendo-o como sujeito responsável pelos discursos e sentidos que produz no espaço da internet, e em particular nas redes sociais. E ser responsável é, nos sentidos que lhes damos aqui, assumir e responder, ética e também juridicamente, por esses discursos e sentidos. Do lugar único que ocupo na existência e do filtro axiológico que orienta o meu dizer, defendo a ideia de uma compreensão responsável, porque, cada vez mais, tenho me incomodado com determinadas contrapalavras expressas por internautas/sujeitos [8], sobretudo na rede social Facebook, a comentários e a postagens de vídeos, textos e mensagens, etc. Quero pensar que o direito inaliável de expressão que cabe a todo sujeito (e não só ao internauta) não lhe concede o direito de dizer e de querer impor ao seu outro qualquer compreensão, seja onde for, o que inclui o espaço das redes sociais. Esse agir do sujeito/internauta nas redes sociais parece refletir, a meu ver, um certo modus operandi de compreensão no espaço virtual, o qual estou propondo entender como cultura de fragmentação da compreensão [9] . Quando falo de uma cultura de fragmentação da compreensão, estou considerando o modo como certos internautas/sujeitos se inscrevem nas cenas enunciativas do espaço virtual, em especial nas cenas engendradas na e pela rede social Facebook. Uso tal expressão para me referir, mais precisamente, ao modo como internautas/sujeitos se posicionam diante de determinados enunciados/discursos que são produzidos e que circulam nesse espaço. Minha atenção se volta para problematizar como, ao postarem, partilharem e comentarem determinados textos (mensagens e vídeos no Facebook), esses internautas/sujeitos deixam de considerar os diálogos que esses enunciados/discursos travam com outros enunciados/discursos anteriores e subsequentes na cadeia da comunicação discursiva, bem como os contextos em que eles se inserem, sem considerar, ao que me parece, que certas postagens e comentários colocam em circulação modos de compreensão que, não raras vezes, colaboram com a produção e reprodução de discursos com orientações valorativas as mais diversas e perversas possíveis: de agressão verbal, de ofensa, de intriga, de preconceito, de intolerância de todo tipo (cor, sexo, religião, filiação partidária, gostos e preferências, etc.), entre outras. Eu poderia não citar nenhum exemplo em particular acreditando que, ainda assim, o leitor deste texto não teria dificuldades de recuperar, a partir de suas próprias experiências de leitura de textos/enunciados que circulam e se produzem diariamente no Facebook, a que tipo de discurso eu estou me referindo, tendo em vista que os exemplos são muitos, já que eles surgem a cada fração de segundo, no ritmo desmedido, acelerado e sem controle do mundo da tecnologia da internet. De todo modo, eu vou explorar um exemplo que, nos últimos dias, me chamou bastante atenção e que se oferece perfeitamente aos propósitos dessa reflexão. O exemplo está implicado no contexto da disputa eleitoral para presidente da república em curso no Brasil. Não é necessariamente um discurso político, mas envolve políticos e tem sido usado com fins políticos, para satisfação dos interesses de determinados grupos (políticos) [10]. Eis o exemplo: Imagem disponível em: http://www.e-farsas.com/wp-content/uploads/marina_rindo_em_velorio.jpg Acesso em 20 ago. 2014 A cena que essa imagem (entendida como um enunciado, no caso um enunciado verbo-visual, como concebe Brait (2012)) representa poderia ser descrita como uma cena comum, como qualquer outra que cerca a situação de um velório: um caixão, com uma pessoa morta, em torno do qual se encontram várias pessoas, muito provavelmente parentes e amigos. Em uma situação dessas, o mais natural seria ver, no rosto das pessoas em volta do caixão, uma expressão de sofrimento, abatimento, desolação, tristeza, entre outros sentimentos, a menos que alguém estivesse interessado na morte do indivíduo que estava sendo velado. Só que a imagem não focaliza bem essas expressões. E foi justamente a forma como essas expressões foram compreendidas por alguns, fora de contexto e dos diálogos que se travam na e com a situação, que conduziram a todo tipo de estupidez e insensatez de muitos internautas/sujeitos, sob a forma de protestos e de indignação, como se ela (a cena) representasse uma certa satisfação da mulher que, debruçada sobre o caixão, ocupa o centro da cena. Da imagem que inicialmente foi divulgada em notícias por jornais, internautas/sujeitos passaram a fazer circular (e também curtir, compartilhar, comentar) uma outra, com o sugestivo acréscimo dos dizeres, em destaque com letras na cor verde e com três pontos de exclamação: “Marina Silva dá risada em cima do caixão de Eduardo Campos!!!”, como ilustrado acima. Ao fazerem isso, muitos desses internautas/sujeitos parecem querer sugerir e compactuar com a ideia de que a “risada” da candidata à vice-presidente do PSB, Marina Silva, expressaria um sentimento de contentamento com a morte do então candidato à presidente daquele partido, Eduardo Campos, sob a alegação de que isso a colocaria na condição “confortável” de ser escolhida para substituir o falecido candidato na corrida presidencial. Essa sintética contextualização não é para fazer análise do discurso, como já sugerido mais acima, mas para mostrar um exemplo concreto de uma situação em que o sujeito da compreensão tenta distorcer, manipular e fragmentar os sentidos, na busca desmedida por impor, (ir)responsavelmente, uma compreensão fragmentada e deturpada da cena, já que, como esclarecido, o riso de Marina, naquele contexto, tem outra motivação. Este exemplo constitui uma pequena amostra do fenômeno da proliferação de discursos que colaboram para provocar e disseminar intrigas, ofensas, preconceito e intolerância, entre outros, que é, conforme estou entendendo, resultado da incapacidade ou da má vontade dos internautas/sujeitos (em alguns casos, até mesmo da falta de consciência) de considerar e recuperar os fios dialógicos e os contextos nos quais se inserem os discursos em relação aos quais emitem posicionamentos na rede. Para esses sujeitos/internautas, Bakhtin/Volochínov (2010, p. 133-134) deveria ter enviado a seguinte mensagem: “Se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes.”. Embora eu compartilhe da ideia, presente também na teoria bakhtiniana, de que os sentidos são múltiplos e que a interpretação pode ser sempre outra – uma construção singular do sujeito –, quero alertar para os perigos das interpretações incompletas, fragmentadas, descontextualizas (também recontextualizadas), generalizantes, quando não mal intencionadas e autoritárias, que vão na contramão do estabelecimento e manutenção de um diálogo franco, aberto e respeitoso com o outro, como concebe o pensamento dialógico do Círculo de Bakhtin. O pensamento do Círculo, com o vigor e a atualidade surpreendentes que o caracterizam, oferece grandes contribuições a esse debate sob várias perspectivas com a formulação de sua concepção dialógica da linguagem. Uma dessas contribuições se apresenta sob a forma da teoria do enunciado concreto, que, fundada na noção de relações dialógicas, põe relevo na ideia de que um enunciado é sempre resposta a outros enunciados: Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta no sentido mais amplo): ele os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subtende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2003, p. 297, grifos do autor). Se na comunicação discursiva, em qualquer que seja a esfera da atividade humana, o sujeito está sempre recuperando o enunciado dito por outrem (seja confirmando-o, seja completando-o, seja dele discordando, etc.), é estranho que, em certos momentos, como ocorre em recorrentes postagens e comentários do Facebook, o internauta/sujeito não tome consciência do fato de que todo texto supõe uma rede de diálogos e que o sentido não se prende exclusivamente a um único texto, aquele que ele leu e sobre o qual expressou uma posição, ou seja, cortando o vínculo com a cadeia da comunicação discursiva e o inserindo em uma outra cadeia (ainda que isso seja um forma de diálogo possível) sem considerar, sobretudo, os elementos anteriores da situação. Sem querer negar aqui a possibilidade de construção do sentido encerrada em um dado texto (porque é possível, sim, construir sentidos para um texto tomado isoladamente, mesmo que essa construção possa ser mais limitada), quero enfatizar, seguindo o pensamento do Círculo de Bakhtin, a possibilidade de enriquecimento da compreensão quando o leitor se dispõe a recuperar outros textos e outros contextos, como apontam essas duas passagens: A questão dos limites do texto e do contexto. Cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento do texto com outros textos. (BAKHTIN, 2003, p. 400) A interpretação como correlacionamento com outros textos e reaparição em um novo contexto (no meu, no atual, no futuro) (BAKHTIN, 2003, p. 401, grifos do autor) Com essas palavras do autor, eu quero deixar claro, antes de mais nada, que a questão sobre a qual me volto não deve ser entendida como resultado de um problema de leitura, de interpretação ou de compreensão por parte do internauta/sujeito. É óbvio que, por vezes, o internauta/sujeito expressa posições que distorcem, total ou parcialmente, o sentido daquilo que ele leu por uma dificuldade de interpretação, porque há casos em que o problema é mesmo de interpretação equivocadas, como adverte Possenti (2001). É natural, portanto, que, por vezes, ele não consiga apreender os sentidos possíveis de um determinado enunciado, tampouco aquele dado pelo autor do texto/enunciado, mesmo quando se considera que a “compreensão poderosa e profunda” pode ser ativa e criadora, no sentido de ser melhor que aquela construída pelo próprio autor de um determinado texto/enunciado, como argumenta Bakhtin (2003). O problema que coloco aqui é quando o sujeito/internauta, intencionalmente, por ação deliberada, distorce os sentidos de um enunciado, orientando-os conforme seus interesses pessoais e particulares, sem o menor respeito e consideração do seu outro, seu interlocutor, com vistas ao estabelecimento de um diálogo que pode ser conflituoso, mas não impositivo, autoritário, sem concessão e sem abertura para a expressão da “verdade” do outro. De acordo com o pensamento bakhtiniano, isso se explica, embora não se justifique, quando se considera que todo dizer e toda compreensão do sujeito é sempre axiologicamente valorada, já que o sujeito da compreensão é, por natureza, um ser de ideologia e dela não pode ser concebido separadamente, como bem precisamente indica Freitas (2007, p.37): […] cada pessoa tem um determinado horizonte social orientador de sua compreensão, que lhe permite uma leitura dos acontecimentos e do outro, impregnada pelo lugar de onde fala. Deste lugar no qual se situa, é que dirige o seu olhar para a nova realidade. Olhar que se amplia na medida em que interage com o sujeito. No meu modo de ver, o problema da compreensão se configura mais grave ainda, quando se percebe que o internauta/sujeito tenta passar a ideia de que o seu posicionamento, entendido como sua compreensão responsiva, é a expressão de uma verdade única e absoluta, quando é mais salutar pensar, por exemplo, que existem “várias verdades mutuamente contraditórias […]”, como bem expressa Médviédev (2012, p. 63), ou que “a verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica […]” (BAKHTIN, 2010b, p.125). As citações reproduzidas acima dão bem uma ideia de que o caminho da compreensão pode ser outro: o da ampliação dos contextos, porque, afinal, o texto leva para além dos seus limites estreitos, configurando-se como interação de contextos, próximos e distantes, e de diálogos com outros sujeitos, fisicamente e virtualmente presentes. Dizer isso é um convite para se considerar, afinal, a construção da compreensão como um lugar de abertura para a escuta do outro, o que implica, muitas vezes, ter, até mesmo, que renunciar os pontos de vista e convicções próprias, considerando as possibilidades de alargamento da compreensão que resultam do encontro com os pensamentos alheios, como aponta Bakhtin (2003, p. 378): […] o sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento. […] As compreensões fragmentadas, isoladas, fechadas no pensamento do eu, que se expressam com base na crença de que existe um dono, senhor absoluto da verdade, recorrentes nas interações do espaço virtual, têm se revelado, como tenho observado, uma fonte geradora de relações conflituosas, de intrigas, de desentendimentos de toda ordem e, sobretudo, de falta de respeito com o outro, sinalizando que se vive hoje sob o signo de uma “civilização digital” que é muito mais afeita ao dizer que a qualquer disposição para se colocar no lugar da escuta. Isso é revelador do fato de que toda a complexidade que recobre as relações humanas no plano do “mundo real”, encontra, agora, no mundo das redes sociais, novo espaço e novas formas de se manifestar, que, não raras vezes, apontam para um distanciamento do verdadeiro sentido do existir humano, que é aquele fundado na relação de alteridade, como pensa Bakhtin (2003, p. 341): “o próprio ser do homem (tanto interno quanto externo) é o convívio mais profundo. Ser significa conviver.” Fica, portanto, o desafio de o sujeito/internauta, ao invés de assumir as compreensões que se fecham para o outro e que se distanciam da relação de alteridade constitutiva do ser, que refletem e refratam uma cultura da fragmentação da compreensão, colocar-se mais na condição de escuta e compreender, de forma engajada, comprometida e respeitosa com o outro como expressão de uma compreensão responsiva e responsável. Fica, por fim, o desafio de esse sujeito/internauta, do lugar único que ele ocupa na existência, assumir o compromisso de se posicionar mais amorosamente nas diversas interações que estabelece no espaço das redes sociais, sabendo respeitar o lugar imprescindível do outro no mundo da vida, como condição para a existência de uma sociedade mais humana e mais tolerante às diferenças e ao convívio com o pluralismo de ideias que favorece o diálogo produtivo e, por conseguinte, o entendimento nas interações humanas. [1] Doutorando pelo programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), FCLar. Professor Assistente IV da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus de Pau dos Ferros, RN. Membro do Grupo de Pesquisa em Produção e Ensino do Texto (GPET) e do SLOVO – Grupo de Estudos do Discurso. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: cezinaldobessa@uern.br [2] Para se ter uma ideia, uma matéria da revista Época, assinada por Danilo Venticinque e Júlia Korte, menciona a existência de, pelo menos, 50 redes sociais disponíveis no mundo,fora aquelas que se desconhece. Certamente, este número já é bem maior hoje, já que muitas outras devem ter surgido desde quando a matéria foi publicada, em 14 de março de 2014. O texto está disponível no seguinte endereço: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/03/bcansou-do-facebookb-50-outras-redes-sociais-que-estao-bombando.html. Acesso em 21 ago. 2014. [2]  De acordo com Kämpf (2011), a expressão geração Z refere-se aos “nativos digitais”, ou seja, a nova geração que, nascida a partir de meados dos anos 90, surge envolvida diretamente com as novas ferramentas digitais, como mídias sociais. [3] Embora reconhecendo as especificidades que as noções de texto, enunciado e discurso assumem em diferentes lugares teóricos, estou usando-os de forma interligada, sem estabelecer qualquer distinção, tendo em conta o vínculo indissociável que se estabelece entre eles no conjunto das reflexões do Círculo. [4] De acordo com essa teoria, presente mais fortemente no livro Para uma filosofia do ato responsável assinado por Bakhtin (2010a), o sujeito ocupa um lugar único na existência, um lugar que nenhum outro ser pode ocupar, o que o faz ser um sujeito sem álibe na existência, de modo que somente ele pode responder pelos seus atos. Desse ponto de vista, esse sujeito é, ao mesmo tempo, um ser responsivo e responsável. [5] Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2014. [6] Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2014. [7] Como esse sujeito da compreensão das redes sociais é o internauta, passo a usar, daqui em diante, os termos juntos, separados apenas por uma barra. [8] O termo fragmentação pode não ser ainda o mais adequado e preciso para expressar a ideia que defendo no texto, mas é o que melhor me ocorre nesse momento. Estou compreendendo que o internauta/sujeito deixa de construir uma compreensão de maneira responsável porque fragmenta – ação da compreensão, ou seja, ele separa, desmembra o enunciado, isolando-o do seu contexto e dos outros textos da cadeia da comunicação discursiva. [9] Uma evidência disso vem da notícia veiculada no jornal online Brasil 247, cuja manchete “Cenas de um velório: Lula chora, Marina sorri”, e mais duas fotos, logo abaixo da manchete, confrontando a expressão do sentimento de Lula e de Marina no velório de Eduardo Campos, dão bem uma ideia da manobra da informação com fins políticos. O texto está disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/pernambuco247/150408/Cenas-de-um-vel%C3%B3rio-Lula-chora-Marina-sorri.htm. Acesso em 22 ago. 2014. [10] Para ampliar o leque de compreensão da contextualização da cena que a imagem descreve, indico a leitura do texto de Kiko Nogueira, intitulado “O riso de Marina no velório de Eduardo Campos”, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/08/o-riso-de-marina-velorio-de-eduardo-campos.html. Acesso em 20 ago. 2014. Indico também o texto “Marina Silva deu risada em cima do caixão de Eduardo Campos?”, disponível em http://www.e-farsas.com/marina-silva-deu-risada-em-cima-caixao-de-eduardo-campos.html. Acesso em 21 ago. 2014. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010a. ______. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b. BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e Filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BRAIT, B. Construção coletiva da perspectiva dialógica: história e alcance teórico-metodológico. In: FIGARO, R. (Org.). Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2012, p. 79-98. FREITAS, M. T. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana na construção do conhecimento. In: FREITAS, M. T.; SOUZA, S. J.; KRAMER, S. Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 26-38. KÄMPF. C. A geração Z e o papel das tecnologias digitais na construção do pensamento – (Reportagem). ComCiência, n. 131, Campinas 2011. Disponível em: http://comciencia.scielo.br/pdf/cci/n131/a04n131.pdf. Acesso em 21 ago. 2014. MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. POSSENTI, S. Existe a leitura errada? – Entrevista. Presença pedagógica, v. 7 n. 40, p. 5-18, jul./ago. 2001.

  • REFLEXÕES SOBRE UM CERTO SUJEITO DA COMPREENSÃO NO UNIVERSO DAS REDES SOCIAIS

    José Cezinaldo Rocha Bessa [1] Falta amor no mundo. Mas também falta interpretação de texto. (Leonardo Sakamoto) Este texto nasce de uma provocação, posta pela epígrafe reproduzida acima e por uma razão que mais adiante espero deixar claro. Por isso mesmo, a ideia é que ele se constitua também em uma provocação. Uma provocação a contrapalavras. Uma provocação a compreensões responsivas e reflexivas. Uma provocação a um debate que, nesse momento, apenas se insinua como um projeto de dizer inconcluso, cujo propósito é instigar, no embate de e entre ideias, uma compreensão mais profunda sobre um tema que me parece fundamental em um tempo em que a internet e, em particular redes sociais como Facebook, MySpace, Twiter, Instagram, WahtsApp, Linked, Sonico, Badoo, Google + , entre tantas outras [2], desempenha papel enorme e determinante na vida e nas relações de e entre pessoas em conexão em todo o mundo. O tema que me move, nesta reflexão, é o ato de compreensão, que será problematizado no contexto do fenômeno recente da produção, circulação e recepção de textos no universo das redes sociais, as quais, pelo que se tem visto, caracterizam um “mundo novo” dominado pelas novas tecnologias e que vive sob a forte influência do que se tem denominado de geração Z [3] . Parto da convicção de que, para além da interpretação, tem faltado, em diversas interações que se dão no universo das redes sociais, sobretudo no Facebook, o que proponho denominar de compreensão responsável. Quero, portanto, falar de compreensão de texto/enunciado/discurso como compreensão responsável [4]. À noção bakhtiniana de compreensão responsiva, corrente em diversos textos do Círculo de Bakhtin e de estudiosos do pensamento desse Círculo, eu proponho acrescentar o termo responsável, ainda que isso possa parecer ou ser redundante. Mesmo que da perspectiva bakhtiniana o ser responsivo seja ele também um sujeito responsável, eu proponho o termo compreensão responsável, para explicitar tanto a minha adesão à teoria do ato responsável formulada por Bakhtin [5] , como também para enfatizar a ideia corrente do termo responsável em nossa sociedade, retomada, aqui, conforme significações encontradas em dois dicionários online e reproduzidas logo a seguir: Responsabilidade s.f. Obrigação de responder pelas ações próprias ou dos outros. / Caráter ou estado do que é responsável. [6]. responsabilidade sf. 1 Qualidade de responsável. 2 Dir Dever jurídico de responder pelos próprios atos e os de outrem, sempre que estes atos violem os direitos de terceiros, protegidos por lei, e de reparar os danos causados. 3 O dever de dar conta de alguma coisa que se fez ou mandou fazer, por ordem pública ou particular. 4 Imposição legal ou moral de reparar ou satisfazer qualquer dano ou perda. [7] Tomando esses significados dicionarizados e o sentido filosófico do termo responsabilidade como proposto pelo pensamento bakhtiniano, quero pensar e propor um modo de apreensão do sujeito da compreensão no mundo contemporâneo, entendendo-o como sujeito responsável pelos discursos e sentidos que produz no espaço da internet, e em particular nas redes sociais. E ser responsável é, nos sentidos que lhes damos aqui, assumir e responder, ética e também juridicamente, por esses discursos e sentidos. Do lugar único que ocupo na existência e do filtro axiológico que orienta o meu dizer, defendo a ideia de uma compreensão responsável, porque, cada vez mais, tenho me incomodado com determinadas contrapalavras expressas por internautas/sujeitos [8], sobretudo na rede social Facebook, a comentários e a postagens de vídeos, textos e mensagens, etc. Quero pensar que o direito inaliável de expressão que cabe a todo sujeito (e não só ao internauta) não lhe concede o direito de dizer e de querer impor ao seu outro qualquer compreensão, seja onde for, o que inclui o espaço das redes sociais. Esse agir do sujeito/internauta nas redes sociais parece refletir, a meu ver, um certo modus operandi de compreensão no espaço virtual, o qual estou propondo entender como cultura de fragmentação da compreensão [9] . Quando falo de uma cultura de fragmentação da compreensão, estou considerando o modo como certos internautas/sujeitos se inscrevem nas cenas enunciativas do espaço virtual, em especial nas cenas engendradas na e pela rede social Facebook. Uso tal expressão para me referir, mais precisamente, ao modo como internautas/sujeitos se posicionam diante de determinados enunciados/discursos que são produzidos e que circulam nesse espaço. Minha atenção se volta para problematizar como, ao postarem, partilharem e comentarem determinados textos (mensagens e vídeos no Facebook), esses internautas/sujeitos deixam de considerar os diálogos que esses enunciados/discursos travam com outros enunciados/discursos anteriores e subsequentes na cadeia da comunicação discursiva, bem como os contextos em que eles se inserem, sem considerar, ao que me parece, que certas postagens e comentários colocam em circulação modos de compreensão que, não raras vezes, colaboram com a produção e reprodução de discursos com orientações valorativas as mais diversas e perversas possíveis: de agressão verbal, de ofensa, de intriga, de preconceito, de intolerância de todo tipo (cor, sexo, religião, filiação partidária, gostos e preferências, etc.), entre outras. Eu poderia não citar nenhum exemplo em particular acreditando que, ainda assim, o leitor deste texto não teria dificuldades de recuperar, a partir de suas próprias experiências de leitura de textos/enunciados que circulam e se produzem diariamente no Facebook, a que tipo de discurso eu estou me referindo, tendo em vista que os exemplos são muitos, já que eles surgem a cada fração de segundo, no ritmo desmedido, acelerado e sem controle do mundo da tecnologia da internet. De todo modo, eu vou explorar um exemplo que, nos últimos dias, me chamou bastante atenção e que se oferece perfeitamente aos propósitos dessa reflexão. O exemplo está implicado no contexto da disputa eleitoral para presidente da república em curso no Brasil. Não é necessariamente um discurso político, mas envolve políticos e tem sido usado com fins políticos, para satisfação dos interesses de determinados grupos (políticos) [10]. Eis o exemplo: Imagem disponível em: http://www.e-farsas.com/wp-content/uploads/marina_rindo_em_velorio.jpg Acesso em 20 ago. 2014 A cena que essa imagem (entendida como um enunciado, no caso um enunciado verbo-visual, como concebe Brait (2012)) representa poderia ser descrita como uma cena comum, como qualquer outra que cerca a situação de um velório: um caixão, com uma pessoa morta, em torno do qual se encontram várias pessoas, muito provavelmente parentes e amigos. Em uma situação dessas, o mais natural seria ver, no rosto das pessoas em volta do caixão, uma expressão de sofrimento, abatimento, desolação, tristeza, entre outros sentimentos, a menos que alguém estivesse interessado na morte do indivíduo que estava sendo velado. Só que a imagem não focaliza bem essas expressões. E foi justamente a forma como essas expressões foram compreendidas por alguns, fora de contexto e dos diálogos que se travam na e com a situação, que conduziram a todo tipo de estupidez e insensatez de muitos internautas/sujeitos, sob a forma de protestos e de indignação, como se ela (a cena) representasse uma certa satisfação da mulher que, debruçada sobre o caixão, ocupa o centro da cena. Da imagem que inicialmente foi divulgada em notícias por jornais, internautas/sujeitos passaram a fazer circular (e também curtir, compartilhar, comentar) uma outra, com o sugestivo acréscimo dos dizeres, em destaque com letras na cor verde e com três pontos de exclamação: “Marina Silva dá risada em cima do caixão de Eduardo Campos!!!”, como ilustrado acima. Ao fazerem isso, muitos desses internautas/sujeitos parecem querer sugerir e compactuar com a ideia de que a “risada” da candidata à vice-presidente do PSB, Marina Silva, expressaria um sentimento de contentamento com a morte do então candidato à presidente daquele partido, Eduardo Campos, sob a alegação de que isso a colocaria na condição “confortável” de ser escolhida para substituir o falecido candidato na corrida presidencial. Essa sintética contextualização não é para fazer análise do discurso, como já sugerido mais acima, mas para mostrar um exemplo concreto de uma situação em que o sujeito da compreensão tenta distorcer, manipular e fragmentar os sentidos, na busca desmedida por impor, (ir)responsavelmente, uma compreensão fragmentada e deturpada da cena, já que, como esclarecido, o riso de Marina, naquele contexto, tem outra motivação. Este exemplo constitui uma pequena amostra do fenômeno da proliferação de discursos que colaboram para provocar e disseminar intrigas, ofensas, preconceito e intolerância, entre outros, que é, conforme estou entendendo, resultado da incapacidade ou da má vontade dos internautas/sujeitos (em alguns casos, até mesmo da falta de consciência) de considerar e recuperar os fios dialógicos e os contextos nos quais se inserem os discursos em relação aos quais emitem posicionamentos na rede. Para esses sujeitos/internautas, Bakhtin/Volochínov (2010, p. 133-134) deveria ter enviado a seguinte mensagem: “Se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes.”. Embora eu compartilhe da ideia, presente também na teoria bakhtiniana, de que os sentidos são múltiplos e que a interpretação pode ser sempre outra – uma construção singular do sujeito –, quero alertar para os perigos das interpretações incompletas, fragmentadas, descontextualizas (também recontextualizadas), generalizantes, quando não mal intencionadas e autoritárias, que vão na contramão do estabelecimento e manutenção de um diálogo franco, aberto e respeitoso com o outro, como concebe o pensamento dialógico do Círculo de Bakhtin. O pensamento do Círculo, com o vigor e a atualidade surpreendentes que o caracterizam, oferece grandes contribuições a esse debate sob várias perspectivas com a formulação de sua concepção dialógica da linguagem. Uma dessas contribuições se apresenta sob a forma da teoria do enunciado concreto, que, fundada na noção de relações dialógicas, põe relevo na ideia de que um enunciado é sempre resposta a outros enunciados: Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta no sentido mais amplo): ele os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subtende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2003, p. 297, grifos do autor). Se na comunicação discursiva, em qualquer que seja a esfera da atividade humana, o sujeito está sempre recuperando o enunciado dito por outrem (seja confirmando-o, seja completando-o, seja dele discordando, etc.), é estranho que, em certos momentos, como ocorre em recorrentes postagens e comentários do Facebook, o internauta/sujeito não tome consciência do fato de que todo texto supõe uma rede de diálogos e que o sentido não se prende exclusivamente a um único texto, aquele que ele leu e sobre o qual expressou uma posição, ou seja, cortando o vínculo com a cadeia da comunicação discursiva e o inserindo em uma outra cadeia (ainda que isso seja um forma de diálogo possível) sem considerar, sobretudo, os elementos anteriores da situação. Sem querer negar aqui a possibilidade de construção do sentido encerrada em um dado texto (porque é possível, sim, construir sentidos para um texto tomado isoladamente, mesmo que essa construção possa ser mais limitada), quero enfatizar, seguindo o pensamento do Círculo de Bakhtin, a possibilidade de enriquecimento da compreensão quando o leitor se dispõe a recuperar outros textos e outros contextos, como apontam essas duas passagens: A questão dos limites do texto e do contexto. Cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento do texto com outros textos. (BAKHTIN, 2003, p. 400) A interpretação como correlacionamento com outros textos e reaparição em um novo contexto (no meu, no atual, no futuro) (BAKHTIN, 2003, p. 401, grifos do autor) Com essas palavras do autor, eu quero deixar claro, antes de mais nada, que a questão sobre a qual me volto não deve ser entendida como resultado de um problema de leitura, de interpretação ou de compreensão por parte do internauta/sujeito. É óbvio que, por vezes, o internauta/sujeito expressa posições que distorcem, total ou parcialmente, o sentido daquilo que ele leu por uma dificuldade de interpretação, porque há casos em que o problema é mesmo de interpretação equivocadas, como adverte Possenti (2001). É natural, portanto, que, por vezes, ele não consiga apreender os sentidos possíveis de um determinado enunciado, tampouco aquele dado pelo autor do texto/enunciado, mesmo quando se considera que a “compreensão poderosa e profunda” pode ser ativa e criadora, no sentido de ser melhor que aquela construída pelo próprio autor de um determinado texto/enunciado, como argumenta Bakhtin (2003). O problema que coloco aqui é quando o sujeito/internauta, intencionalmente, por ação deliberada, distorce os sentidos de um enunciado, orientando-os conforme seus interesses pessoais e particulares, sem o menor respeito e consideração do seu outro, seu interlocutor, com vistas ao estabelecimento de um diálogo que pode ser conflituoso, mas não impositivo, autoritário, sem concessão e sem abertura para a expressão da “verdade” do outro. De acordo com o pensamento bakhtiniano, isso se explica, embora não se justifique, quando se considera que todo dizer e toda compreensão do sujeito é sempre axiologicamente valorada, já que o sujeito da compreensão é, por natureza, um ser de ideologia e dela não pode ser concebido separadamente, como bem precisamente indica Freitas (2007, p.37): […] cada pessoa tem um determinado horizonte social orientador de sua compreensão, que lhe permite uma leitura dos acontecimentos e do outro, impregnada pelo lugar de onde fala. Deste lugar no qual se situa, é que dirige o seu olhar para a nova realidade. Olhar que se amplia na medida em que interage com o sujeito. No meu modo de ver, o problema da compreensão se configura mais grave ainda, quando se percebe que o internauta/sujeito tenta passar a ideia de que o seu posicionamento, entendido como sua compreensão responsiva, é a expressão de uma verdade única e absoluta, quando é mais salutar pensar, por exemplo, que existem “várias verdades mutuamente contraditórias […]”, como bem expressa Médviédev (2012, p. 63), ou que “a verdade não nasce nem se encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens, que juntos a procuram no processo de sua comunicação dialógica […]” (BAKHTIN, 2010b, p.125). As citações reproduzidas acima dão bem uma ideia de que o caminho da compreensão pode ser outro: o da ampliação dos contextos, porque, afinal, o texto leva para além dos seus limites estreitos, configurando-se como interação de contextos, próximos e distantes, e de diálogos com outros sujeitos, fisicamente e virtualmente presentes. Dizer isso é um convite para se considerar, afinal, a construção da compreensão como um lugar de abertura para a escuta do outro, o que implica, muitas vezes, ter, até mesmo, que renunciar os pontos de vista e convicções próprias, considerando as possibilidades de alargamento da compreensão que resultam do encontro com os pensamentos alheios, como aponta Bakhtin (2003, p. 378): […] o sujeito da compreensão não pode excluir a possibilidade de mudança e até de renúncia aos seus pontos de vista e posições já prontos. No ato da compreensão desenvolve-se uma luta cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento. […] As compreensões fragmentadas, isoladas, fechadas no pensamento do eu, que se expressam com base na crença de que existe um dono, senhor absoluto da verdade, recorrentes nas interações do espaço virtual, têm se revelado, como tenho observado, uma fonte geradora de relações conflituosas, de intrigas, de desentendimentos de toda ordem e, sobretudo, de falta de respeito com o outro, sinalizando que se vive hoje sob o signo de uma “civilização digital” que é muito mais afeita ao dizer que a qualquer disposição para se colocar no lugar da escuta. Isso é revelador do fato de que toda a complexidade que recobre as relações humanas no plano do “mundo real”, encontra, agora, no mundo das redes sociais, novo espaço e novas formas de se manifestar, que, não raras vezes, apontam para um distanciamento do verdadeiro sentido do existir humano, que é aquele fundado na relação de alteridade, como pensa Bakhtin (2003, p. 341): “o próprio ser do homem (tanto interno quanto externo) é o convívio mais profundo. Ser significa conviver.” Fica, portanto, o desafio de o sujeito/internauta, ao invés de assumir as compreensões que se fecham para o outro e que se distanciam da relação de alteridade constitutiva do ser, que refletem e refratam uma cultura da fragmentação da compreensão, colocar-se mais na condição de escuta e compreender, de forma engajada, comprometida e respeitosa com o outro como expressão de uma compreensão responsiva e responsável. Fica, por fim, o desafio de esse sujeito/internauta, do lugar único que ele ocupa na existência, assumir o compromisso de se posicionar mais amorosamente nas diversas interações que estabelece no espaço das redes sociais, sabendo respeitar o lugar imprescindível do outro no mundo da vida, como condição para a existência de uma sociedade mais humana e mais tolerante às diferenças e ao convívio com o pluralismo de ideias que favorece o diálogo produtivo e, por conseguinte, o entendimento nas interações humanas. [1] Doutorando pelo programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), FCLar. Professor Assistente IV da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus de Pau dos Ferros, RN. Membro do Grupo de Pesquisa em Produção e Ensino do Texto (GPET) e do SLOVO – Grupo de Estudos do Discurso. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: cezinaldobessa@uern.br [2] Para se ter uma ideia, uma matéria da revista Época, assinada por Danilo Venticinque e Júlia Korte, menciona a existência de, pelo menos, 50 redes sociais disponíveis no mundo,fora aquelas que se desconhece. Certamente, este número já é bem maior hoje, já que muitas outras devem ter surgido desde quando a matéria foi publicada, em 14 de março de 2014. O texto está disponível no seguinte endereço: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/03/bcansou-do-facebookb-50-outras-redes-sociais-que-estao-bombando.html. Acesso em 21 ago. 2014. [2]  De acordo com Kämpf (2011), a expressão geração Z refere-se aos “nativos digitais”, ou seja, a nova geração que, nascida a partir de meados dos anos 90, surge envolvida diretamente com as novas ferramentas digitais, como mídias sociais. [3] Embora reconhecendo as especificidades que as noções de texto, enunciado e discurso assumem em diferentes lugares teóricos, estou usando-os de forma interligada, sem estabelecer qualquer distinção, tendo em conta o vínculo indissociável que se estabelece entre eles no conjunto das reflexões do Círculo. [4] De acordo com essa teoria, presente mais fortemente no livro Para uma filosofia do ato responsável assinado por Bakhtin (2010a), o sujeito ocupa um lugar único na existência, um lugar que nenhum outro ser pode ocupar, o que o faz ser um sujeito sem álibe na existência, de modo que somente ele pode responder pelos seus atos. Desse ponto de vista, esse sujeito é, ao mesmo tempo, um ser responsivo e responsável. [5] Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2014. [6] Disponível em: . Acesso em 18 ago. 2014. [7] Como esse sujeito da compreensão das redes sociais é o internauta, passo a usar, daqui em diante, os termos juntos, separados apenas por uma barra. [8] O termo fragmentação pode não ser ainda o mais adequado e preciso para expressar a ideia que defendo no texto, mas é o que melhor me ocorre nesse momento. Estou compreendendo que o internauta/sujeito deixa de construir uma compreensão de maneira responsável porque fragmenta – ação da compreensão, ou seja, ele separa, desmembra o enunciado, isolando-o do seu contexto e dos outros textos da cadeia da comunicação discursiva. [9] Uma evidência disso vem da notícia veiculada no jornal online Brasil 247, cuja manchete “Cenas de um velório: Lula chora, Marina sorri”, e mais duas fotos, logo abaixo da manchete, confrontando a expressão do sentimento de Lula e de Marina no velório de Eduardo Campos, dão bem uma ideia da manobra da informação com fins políticos. O texto está disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/pernambuco247/150408/Cenas-de-um-vel%C3%B3rio-Lula-chora-Marina-sorri.htm. Acesso em 22 ago. 2014. [10] Para ampliar o leque de compreensão da contextualização da cena que a imagem descreve, indico a leitura do texto de Kiko Nogueira, intitulado “O riso de Marina no velório de Eduardo Campos”, disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/08/o-riso-de-marina-velorio-de-eduardo-campos.html. Acesso em 20 ago. 2014. Indico também o texto “Marina Silva deu risada em cima do caixão de Eduardo Campos?”, disponível em http://www.e-farsas.com/marina-silva-deu-risada-em-cima-caixao-de-eduardo-campos.html. Acesso em 21 ago. 2014. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010a. ______. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b. BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e Filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BRAIT, B. Construção coletiva da perspectiva dialógica: história e alcance teórico-metodológico. In: FIGARO, R. (Org.). Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2012, p. 79-98. FREITAS, M. T. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana na construção do conhecimento. In: FREITAS, M. T.; SOUZA, S. J.; KRAMER, S. Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 26-38. KÄMPF. C. A geração Z e o papel das tecnologias digitais na construção do pensamento – (Reportagem). ComCiência, n. 131, Campinas 2011. Disponível em: http://comciencia.scielo.br/pdf/cci/n131/a04n131.pdf. Acesso em 21 ago. 2014. MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. POSSENTI, S. Existe a leitura errada? – Entrevista. Presença pedagógica, v. 7 n. 40, p. 5-18, jul./ago. 2001.

  • DIALOGANDO E DIVAGANDO PARA NÃO DESVAIR

    Camila Cristina de Oliveira Alves[1] (UNESP/CNPq) Ao aceitar o convite da querida professora Luciane de Paula e do grupo GED para escrever um texto para o blog a respeito das ideias bakhtinianas de discurso, parei para pensar que tipo de texto poderia eu escrever depois de ser informada de que poderia ser uma reflexão, um texto sem o formato padrão de artigo científico. Embora tenha me sentido mais relaxada em relação ao gênero (Bakhtin curtiu isso), demorei para escrever pois fiquei refletindo acerca do exercício da escrita e da linguagem, ao invés de escrever propriamente. Lembrei de Volochínov e parece que ele sussurrou no meu ouvido bem assim: “Antes de começar a refletir sobre a linguagem, tudo lhe parecia simples e linear. Mas nem bem começa a escrever […] essa linguagem se torna para o autor pesada, informe, com ela é muito difícil de construir uma frase bela, elegante e, sobretudo, que transmita aquilo que quer realmente expressar.” (2013, p.132). O linguista russo continua me alertando que a gente nem repara se usamos regras linguísticas severas ou obrigatórias quando estamos conversando animadamente com alguém. Segui minha reflexão sobre a linguagem, não antes de Volochínov ainda me mandar uma ideia, tipo assim: – Menina, ‘a linguagem é produto da atividade humana coletiva’, nem adianta esconder, ao enunciar perceberão seus valores ali intrínsecos à linguagem, mesmo ela sendo verbal. E num é mesmo?! Desse modo, me coloquei a escrever propondo privilegiar o aspecto mais importante considerado pelo Círculo de Bakhtin a Parei um pouquinho de escrever e fui pro Facebook… Quem nunca? Primeiro dialoguei ‘dialeticamente’ com alguns discursos machistas pensando “que vontade de chamar Simone de Beauvoir pra gente dá uns role por aí, aparecer na casa duns caras…”. Depois pensei que era melhor não. Depois vi discursos pseudo-intelectuais, vi bastante política (ou má política) e fiquei triste ao ver materializados na Dei um pouco de sol pro meu coração, como diria o mesmo poeta, e me voltei para o meu texto pensando que ele já estava perdido. Mostrei ao meu interlocutor já alguns valores e as ideologias circundantes aos mesmos. Logo, me tornei responsável por tudo o que disse e, assim, vão pensar que eu escrevi um texto de opinião, ou uma crônica mal escrita ou só fiquei procrastinando na internet mesmo. Não, péra! Num era exatamente isso que eu estava falando da linguagem entendida sob o viés bakhtiniano? Pois é, rapaiz! Nesse entrecruzar de vozes, fazia todo sentido lembrar-me de como a filosofia bakhtiniana pensou a linguagem e a vida. Na verdade, amigo que compartilha o tempo dialogando comigo e com as vozes que chamei aqui, este texto é uma reflexão mesmo. Um ‘ato responsável’, ‘único e singular’, não uma ‘ação’. É um diálogo que reflete e refrata a vida, pois assim é a linguagem. Não haveria de ser diferente agora. Ainda que construamos formas, ou quando tentamos estabilizar gêneros, a linguagem não deixa de ser viva, não deixa de dialogar com nosso cotidiano, com nosso contexto social. Do meu centro irradiador axiológico transmito aqui o discurso de um sujeito que entende a linguagem como comunicação contínua, construída socialmente, pautada na alteridade. Seja para afirmar ou para contradizer, sempre há diálogo! Não acha? Referências: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. STAM, R. Bakhtin da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992 VOLOCHÍNOV, V. N. A Construção da Enunciação e outros ensaios. Tradução de J. W. Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. [1] Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara e membro Slovo Grupo de Estudos do Discurso.

  • DIALOGANDO E DIVAGANDO PARA NÃO DESVAIR

    Camila Cristina de Oliveira Alves[1] (UNESP/CNPq) Ao aceitar o convite da querida professora Luciane de Paula e do grupo GED para escrever um texto para o blog a respeito das ideias bakhtinianas de discurso, parei para pensar que tipo de texto poderia eu escrever depois de ser informada de que poderia ser uma reflexão, um texto sem o formato padrão de artigo científico. Embora tenha me sentido mais relaxada em relação ao gênero (Bakhtin curtiu isso), demorei para escrever pois fiquei refletindo acerca do exercício da escrita e da linguagem, ao invés de escrever propriamente. Lembrei de Volochínov e parece que ele sussurrou no meu ouvido bem assim: “Antes de começar a refletir sobre a linguagem, tudo lhe parecia simples e linear. Mas nem bem começa a escrever […] essa linguagem se torna para o autor pesada, informe, com ela é muito difícil de construir uma frase bela, elegante e, sobretudo, que transmita aquilo que quer realmente expressar.” (2013, p.132). O linguista russo continua me alertando que a gente nem repara se usamos regras linguísticas severas ou obrigatórias quando estamos conversando animadamente com alguém. Segui minha reflexão sobre a linguagem, não antes de Volochínov ainda me mandar uma ideia, tipo assim: – Menina, ‘a linguagem é produto da atividade humana coletiva’, nem adianta esconder, ao enunciar perceberão seus valores ali intrínsecos à linguagem, mesmo ela sendo verbal. E num é mesmo?! Desse modo, me coloquei a escrever propondo privilegiar o aspecto mais importante considerado pelo Círculo de Bakhtin a Parei um pouquinho de escrever e fui pro Facebook… Quem nunca? Primeiro dialoguei ‘dialeticamente’ com alguns discursos machistas pensando “que vontade de chamar Simone de Beauvoir pra gente dá uns role por aí, aparecer na casa duns caras…”. Depois pensei que era melhor não. Depois vi discursos pseudo-intelectuais, vi bastante política (ou má política) e fiquei triste ao ver materializados na Dei um pouco de sol pro meu coração, como diria o mesmo poeta, e me voltei para o meu texto pensando que ele já estava perdido. Mostrei ao meu interlocutor já alguns valores e as ideologias circundantes aos mesmos. Logo, me tornei responsável por tudo o que disse e, assim, vão pensar que eu escrevi um texto de opinião, ou uma crônica mal escrita ou só fiquei procrastinando na internet mesmo. Não, péra! Num era exatamente isso que eu estava falando da linguagem entendida sob o viés bakhtiniano? Pois é, rapaiz! Nesse entrecruzar de vozes, fazia todo sentido lembrar-me de como a filosofia bakhtiniana pensou a linguagem e a vida. Na verdade, amigo que compartilha o tempo dialogando comigo e com as vozes que chamei aqui, este texto é uma reflexão mesmo. Um ‘ato responsável’, ‘único e singular’, não uma ‘ação’. É um diálogo que reflete e refrata a vida, pois assim é a linguagem. Não haveria de ser diferente agora. Ainda que construamos formas, ou quando tentamos estabilizar gêneros, a linguagem não deixa de ser viva, não deixa de dialogar com nosso cotidiano, com nosso contexto social. Do meu centro irradiador axiológico transmito aqui o discurso de um sujeito que entende a linguagem como comunicação contínua, construída socialmente, pautada na alteridade. Seja para afirmar ou para contradizer, sempre há diálogo! Não acha? Referências: BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. STAM, R. Bakhtin da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992 VOLOCHÍNOV, V. N. A Construção da Enunciação e outros ensaios. Tradução de J. W. Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. [1] Doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da UNESP, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara e membro Slovo Grupo de Estudos do Discurso.

  • Uma nota sobre a influência do pensamento bakhtiniano

    José Radamés Benevides de Melo[1] A linguística do século XX nos deixou como legado uma grande quantidade de máximas, proposições, construtos teóricos, disciplinas, campos de estudo, ciências, interdisciplinaridade e a abertura para a criação de inúmeros outros campos de investigação científica da natureza da linguagem humana, suas formas de apresentação, representação, seus valores simbólico-semióticos, sua relação com a construção de realidades e identidades, fundamentos para ciências diversas. Entretanto, uma de suas maiores contribuições – e, neste caso, por outro lado, da filosofia de Marx – talvez tenha sido a possibilidade de provocar o advento das teorias dialógicas propostas e apresentadas pelos estudiosos russos Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev e Valentin Volochínov como uma densa, complexa e revolucionária contrapalavra àquela da linguística, da filosofia da linguagem e da estilística de base marcadamente idealista. Depois deles, os estudos sobre a linguagem humana e sua abordagem científica mudaram significativamente de rumo sem, no entanto, anularem as outras possibilidades de investigação. Na verdade, essa contrapalavra ficou, por algumas décadas, esquecida e isolada ou sofreu a indiferença daqueles que enxergavam nela um espectro que rondava a linguística moderna centralizadora, aquela mesma que constrói uma “língua nacional como um todo monolítico, unificado e homogêneo” que define quem pertence ou não à nação, também concebida como um todo monolítico, unificado e homogêneo. Segundo Saussure (2006 [1916]), o objeto da ciência linguística seria, dentro da divisão língua/fala, a langue em detrimento da parole. Durante três ou quatro décadas, linguistas de renome como Martinet, Hjelmslev, Benveniste e outros entenderam que a função da linguística era, conforme preconizara o mestre genebrino, investigar os fatos da língua, e não da fala; dessa tarefa se ocuparam intensa e consistentemente. Assim, acreditava-se que, no estudo dessa instituição social, que é a língua, estavam as possibilidades de descrição e demonstração científicas do funcionamento e estrutura das línguas naturais. Mesmo que linguistas como Hjelmslev, Benveniste e Jakobson tenham atinado, respectivamente, para as questões da enunciação e da comunicação e tenham, inclusive, engendrado um corpus teórico bastante consistente, cujas ressonâncias estão presentes em teorias como as dos atos de fala, da pragmática, da interação verbal e da ação verbal; os estudos da linguagem permaneciam aprisionados ao nível da frase, da sentença/enunciado, a uma concepção sistêmica de língua(gem) fundamentada no mais puro objetivismo abstrato. Todavia, é com a abordagem dialógica dos estudos da linguagem feitos por Bakhtin, Medviédev e Volochínov, já nos idos da década de 1920, que o cenário da linguística do século XX começaria – antes mesmo da criação, na França, da Análise do Discurso –, potencialmente, a sofrer alterações que marcariam profundamente, num futuro muito próximo, as bases da ciência linguística. Ultrapassando os limites impostos pelo pensamento saussuriano, dos formalistas russos e de estruturalistas radicais, os teóricos do dialogismo firmaram fundamentos epistemológicos que, apropriados por disciplinas linguísticas, revolucionariam, e de fato revolucionaram, não só a abordagem científica e acadêmica das línguas, mas também sua abordagem na escola e as consequências e/ou efeitos decorrentes dela. As publicações bakhtinianas (e aqui se considerem todas as obras do chamado Círculo de Bakhtin) são tão reveladoras, que alteraram a própria maneira de os homens se relacionarem com a linguagem, com a realidade e consigo mesmos (pelo menos, aqueles que a conhecem). Isso pode ser comprovado com uma superficial passagem pelas obras das ciências humanas da segunda metade do século XX. Ciências como a psicologia, a história, a psicanálise, a antropologia, a sociologia, a geografia, o direito, a teoria literária e as aplicadas como a pedagogia não foram mais as mesmas depois de incorporarem preceitos e construtos da teoria dialógica da linguagem. Referimo-nos à segunda metade do século XX porque é desse período a divulgação das obras do Círculo no Ocidente. Evidentemente, ao lado da tradição linguística, há outra igualmente, ou até mais, antiga: a dos estudos literários. Quanto às investigações da obra literária, podemos dizer que houve quatro grandes tendências de estudo do texto literário na história das disciplinas que dele se ocuparam. A primeira delas é a filologia na Antiguidade e nos séculos XIX e XX; a segunda, poderíamos dizer, é a que orienta os estudos de cunho estilístico; a terceira seria o das correntes de vertente estruturalista; e a quarta seria formada pelas críticas de cunho marxista – neste caso, um marxismo vulgar e/ou mecanicista, que não se confunde com o de Gramsci, Benjamin, Lukács ou Goldman (KONDER, 2013). Essas quatro formas de abordagem do texto literário incorreram em equívocos, ou porque o consideravam como o documento de uma época, capaz de fornecer dados sobre a sociedade, o comportamento dos grupos sociais, ou porque o consideravam a expressão de uma consciência criadora, ou um objeto que produzia o sentido a partir de si mesmo, numa vertente imanentista, ou como um texto que serviria apenas para expressar a ideologia de uma classe social numa dada época, num processo mecânico e automático e representação (BAKHTIN, 2010 [1934-1935]); MEDVIÉDEV, 2012 [1928]; COMPAGNON, 2010; MAINGUENEAU, 2001 [1995], 2006; VOLOCHÍNOV, 2006 [1930], 2013 [1930]; ZILBERMAN, 1989). Mas é com o advento das teorias da enunciação, com o desenvolvimento da pragmática, com o surgimento da análise do discurso e com a divulgação dos trabalhos do “Círculo de Bakhtin”, que envolviam e envolvem temas como dialogismo, polifonia e carnavalização, que o texto literário passa a ser pensado não como documento, ou expressão de uma consciência criadora, ou como um sistema fechado em si mesmo ou um reflexo da ideologia de uma classe social numa dada época (MAINGUENEAU, 2001 [1995], 2006). É também a partir da divulgação dos estudos do “Círculo de Bakhtin”, através de trabalhos como os de Kristeva (1967, 1969, 1974)[2], de Todorov (1981)[3] e da publicação de obras do próprio círculo (BAKHTIN, 1970a, 1970b)[4], dos estudos de Genette (1979, 1982)[5] – no âmbito da Teoria da Literatura –, dos estudos de Authier-Revuz (1982)[6], que se constituiu, nas décadas de 1960 e 1970, um cenário intelectual e teórico que considerava as relações entre textos, a relação com o O/outro, o dialogismo, a heterogeneidade, inter-relações entre textos, história e sujeitos. O tratamento dicotômico dispensado à obra literária separava o texto de seu contexto, a obra de suas condições de produção. Esse modelo é superado quando se considera, numa perspectiva discursiva (MAINGUENEAU, 2001[1995]; MAINGUENEAU, 2006[2005]), que a obra não apenas representa o contexto em que é produzida, mas funda seu próprio contexto de enunciação dentro do campo literário, como parte integrante de um dispositivo comunicacional e institucional. Assim, conceitos como os de dialogismo, intertextualidade, gêneros do discurso, heterogeneidade constitutiva e enunciativa se tornaram frequentes tanto nos estudos literários (teoria e crítica) quanto nos textuais e discursivos (Linguística Textual, Análise do Discurso francesa, estudos bakhtinianos, Semiótica Discursiva) especialmente no Brasil. Aqui, encontramos o nó que amarra este texto ao anterior que publicamos neste blog, ou seja, a intertextualidade como fenômeno que interessa tanto aos estudiosos do primeiro grupo quanto aos do segundo. Retomando nosso texto anterior, sugerimos, entre outras coisas, no seu parágrafo final, “um percurso de investigação que problematizasse as relações entre intertextualidade e dialogismo ao longo da história de seus usos”. Claro está que esse é um empreendimento que não se faz num texto dessa natureza, mas também está claro que podemos levantar discussões neste espaço. Por ora, continuamos a que foi iniciada no texto publicado em maio deste ano. Coerentes com isso, dedicar-nos-emos ao tratamento dado por Koch (1998), Koch e Travaglia (2008 [1990]) e Bentes (2005 [2000]) à intertextualidade. Koch (1998), em O texto e a construção dos sentidos, tenta mostrar as diferenças entre os conceitos de intertextualidade e polifonia; segundo ela, bastante presentes na literatura linguística das últimas décadas. Sendo assim, a autora procede a um levantamento das concepções de intertextualidade em diversos autores como Barthes, Beaugrande e Dressler e outros. Entretanto, ela volta a uma distinção feita num trabalho de 1986 em que discute a intertextualidade em sentido amplo e a intertextualidade em sentido restrito. A primeira diz respeito à intertextualidade como condição para a existência do próprio discurso e/ou de práticas discursivas. É como se cada discurso estivesse entremeado, mesclado e/ou misturado a outros discursos. Essa concepção, para ela, advinda da Análise do Discurso, é talvez a mais aceita por aqueles que trabalham com a intertextualidade. Em outras palavras, o conceito de intertextualidade em sentido amplo se confunde, segundo Koch (1998), com o de interdiscursividade, como assinalado por Authier-Revuz (1982), é como se ele fosse gerado de discursos e textos previamente existentes; desse modo, ele surge como uma resposta, uma contestação, uma síntese dos já ditos, uma vez que discurso algum surgirá do nada. Nas palavras de Maingueneau (1976, p. 39 apud Koch, 1998, p. 47) “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição”. Já a intertextualidade em sentido restrito consiste na relação de um texto com outros existentes. Ela se dá, geralmente, pela presença material de outros textos com fragmentos, citações, pedaços de frase, sentenças etc. Além disso, está classificada em quatro tipos, a saber: a) de conteúdo x de forma/conteúdo; b) explícita x implícita; c) das semelhanças x da diferenças e d) com intertexto alheio, com intertexto próprio ou com intertexto atribuído a um enunciado genérico. Integrariam, pois, esse rol a paráfrase, a paródia, a tradução entre outros. Koch (1998) se fundamenta em autores como Authier, Maingueneau, Pêcheux, Verón (ponto de vista sócio-semiológica), Van Dijk e Kristeva. Disso, depreendemos que, se, por um lado, seria muito difícil ou, praticamente, impossível apresentar-se uma concepção teoricamente “pura” de intertextualidade como hoje a entendemos, ou seja, sem considerar resquício algum das constituições epistemológicas conseguidas através da história de sua formação enquanto categoria, por outro, algo muito semelhante se dá quando a tratamos como fenômeno essencialmente textual, aquela intertextualidade em sentido amplo, que está presente em todas as práticas discursivo-sociais. Quanto à diferenciação entre intertextualidade e polifonia, a autora conclui que há uma diferença básica entre os dois conceitos. Enquanto a polifonia é mais ampla, a intertextualidade seria um tipo de polifonia. Assim, a partir da postulação feita por Ducrot, Koch (1998) considera que toda prática intertextual é também polifônica, mas nem toda polifonia é intertextual. Convém ressaltar, ainda, que, embora busquem uma abordagem de cunho mais linguístico, os estudos de intertextualidade apresentados por Koch (1998) deixam muito claro que sua fonte de pesquisa é também o ensaio A estratégia da forma, de Laurent Jenny (1979), teórico da literatura francês. Koch e Travaglia (2008 [1990]) apresentam a intertextualidade como mais um fator de contextualização ao lado da intencionalidade e da aceitabilidade. Classificam-na em intertextualidade de forma e intertextualidade de conteúdo. A primeira ocorre quando o produtor de um texto usa expressões, fragmentos, trechos, enunciados, o estilo de algum autor ou de determinados discursos. A segunda é constante e diz respeito ao diálogo que há entre textos de uma mesma época, de um mesmo campo do conhecimento, de uma mesma cultura etc. Ela pode, ainda, ser explícita ou implícita: será explícita quando a fonte estiver indicada; e implícita, quando não. Os autores lembram a distinção feita por Afonso Romano de Sant’Anna (1999) entre intertextualidade das semelhanças e intertextualidade das diferenças. Além disso, eles fornecem exemplos ilustrativos de cada uma delas. Nessa obra, os autores apresentam a intertextualidade como um dos fatores determinantes da coerência textual. Em Lingüística textual, publicado no livro Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, Bentes (2005 [2000]), assim como Koch (1998) e Koch e Travaglia (2008 [1990]), coloca a intertextualidade como mais um fator de textualidade usado, geralmente, no processamento textual, seja na produção ou na compreensão. A autora é partidária das concepções apresentadas em obras de Linguística Textual. Dessa forma, seu artigo faz referências às classificações apresentadas por Koch (1998) e Koch e Travaglia (2008 [1990]). Assim como esses autores, ela faz alusão à intertextualidade das diferenças, à intertextualidade explícita, implícita etc. Como vemos, no âmbito da Linguística Textual, há uma “apropriação” peculiar da noção de intertextualidade, tratada, ressaltemos, como uma teoria. As abordagens que fundamentam as reflexões de Koch (1998), Koch e Travaglia (2008 [1990]) e Bentes (2005 [2000]) advêm das mais distintas perspectivas epistemológicas: Kristeva, Barthes, Maingueneau, Pêcheux, Verón, Ducrot, Jenny, Van Dijk, Bakhtin (entenda-se Bakhtin, Medviédev e Volochínov). Aí temos misturados filosofia da linguagem de base marxista, estruturalismo francês de base saussuriana, análise do discurso francesa (em, pelo menos, três perspectivas), pragmática linguística, sócio-semiologia. Cada uma dessas tendências teóricas com suas concepções de sujeito, língua(gem), signo, texto, discurso, comunicação, história, conhecimento, objeto de investigação científica. De fato, desde que Kristeva, na década de 1960, cunhou o termo e a concepção de intertextualidade a partir das reflexões bakhtinianas, tanto o termo quanto o conceito/a concepção passaram por alterações diversas, várias recepções e “apropriações” também várias e peculiares. É, por exemplo, o que depreendemos da Linguística Textual, pelo menos, aqui no Brasil. De um fenômeno constitutivo do texto, a intertextualidade é (re)construída e tratada como um fator de textualidade, mais especificamente “como fator dos mais relevantes na construção da coerência textual” (KOCH, 1998, p. 50), agora associado à cognição, ao sociocognitivismo, a estratégias sociointeracionais e sociocognitivas de produção e de compreensão de textos. Quando relacionada à polifonia, é posta na malha conceitual e terminológica da pragmática linguística de Ducrot, especialmente seus trabalhos dos fins da década de 1970 e inícios da de 1980. Com isso, não estamos defendendo que o conceito foi “deturpado” e que as alterações e apropriações foram negativas; estamos apenas apontando os diferentes modos de concepção e de trabalho com a intertextualidade, neste caso, na Linguística Textual. Evidentemente, o que temos dito até aqui ainda tem caráter especulativo e superficial; afinal, embora Koch (1998), Koch e Travaglia (2008 [1990]) e Bentes (2005 [2000]) sejam expressões significativas da Linguística Textual no Brasil, falta-nos a constituição de corpora que possibilitem uma observação mais panorâmica e profunda da apropriação de intertextualidade como fator da coerência textual. Por ora, contentamo-nos em apresentar, mesmo que brevemente, uma das muitas influências ou alterações possibilitadas em vários campos do conhecimento pelo pensamento bakhtiniano. Se aqui esboçamos essa influência nos estudos linguístico-textuais dos processos de produção e de compreensão de textos de base sociointeracionista e sociocognitivista, nossa próxima publicação versará sobre essas influências e alterações nos estudos literários. Referências BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução do russo de Aurora Bernardini et al. 6 ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2010. AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une approche de l’autre dans le discours, DRLAV, nº 26. Paris, 1982. BENTES, A. C. Lingüística textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005. V. 2. COMPAGNON, A. O demônio da teoria. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. JENNY, L. et al. Intertextualidades – Poétique nº27. 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[6] AUTHIER-REVUZ, J. “Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une approche de l’autre dans Le discours”, DRLAV, 26. Paris, 1982.

  • Tribos sociais: uma reflexão dos jovens rappers no espaço urbano

    Nátalie Ferreira Carvalho Silva Introdução Neste artigo, apresentamos, em parte, a continuidade de um raciocínio formulado em minha pesquisa de iniciação científica, numa oportunidade de reflexão que contribuem com as particularidades que envolvem este campo de estudo. Para tal, trazemos à nossa discussão um apanhado referente às tribos urbanas, em especial, a dos jovens participantes do movimento hip hop que, de acordo com Paula, visa “dar voz aos sujeitos excluídos tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil composto por canção (rap e funk), dança (break), pintura (grafite) e poesia (as letras das canções, assim chamadas pelos sujeitos do movimento)”. (2007, p. 19) Diversos autores se debruçaram sobre o tema aqui proposto, no qual expuseram importantes esclarecimentos sobre as condutas das tribos no espaço urbano tal como suas manifestações, a história de seu nascimento, características estéticas e psicológicas, bem como, o discurso e outras peculiaridades que compõem estes grupos. A partir dessas questões já levantadas, delimitamos nosso trabalho em estudar o jovem como sujeito social em exemplos daqueles que se dedicam à construção dos raps brasileiros. Apesar de trazermos algumas características do gênero cancioneiro escolhido, esta discussão não se direciona a sua constituição em si mesmo, mas a um olhar sobre os que participam e produzem tais composições em objetivo de “compreendê-los como sujeitos sociais que, como tais, constroem um determinado modo de ser jovem” (DAYRELL, 2003, p. 40). O jovem e sua contribuição social Em primeira instância, a expressão “tribo urbana” foi cunhada pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, em alguns de seus artigos. Posteriormente, sua obra “O Tempo das Tribos: declínio do individualismo nas sociedades de massa” (1987) popularizou o termo que, segundo o autor, assinala determinadas maneiras de organização dos jovens no contexto pós-moderno. Encontradas nos grandes centros urbanos, as tribos se agrupam por anseio de se diferenciarem da sociedade em questão, mas também pela identificação com pessoas que compartilham os mesmos valores (relativos ao comportamento político), elementos estéticos (maneiras de se vestir e performance), gosto musical e lazer (áreas de sua circulação e compreensão do espaço urbano como fonte de cultura). Nessa lógica, uma tribo pode ser identificada, basicamente, por três aspectos coexistentes:a imagem estética, as práticas de lazer e o estilo musical (ANTONI; RODRÍGUEZ; SOUSA. 2014). Em posição que ultrapassa as linhas do entretenimento, da fruição, do prazer e da distração, as tribos criam uma ideologia alternativa à ordem social, bem como organizam metas e propostas acerca dessa transformação. No Brasil, por exemplo, a tribo constituinte do movimento hip hop não se desvincula dessas características sediciosas tendo, no rap, um veículo de comunicação que verbaliza a resistência e os direitos dos afros-descendentes. Calcadas na ordem social vigente, as letras das canções descrevem os grupos em si, os quais afirmam sua identidade, características e ideais assumidos – muitas vezes geradas por uma insatisfação social. Tal auto-imagem possibilita conhecimento mais aprofundado acerca da entoação autoral do sujeito compositor, do intérprete, das personagens da canção e institui o ethos cantado/narrado, expresso no contexto de uma sociedade cada vez mais globalizada. Um exemplo aparece na canção “Negro Drama”(2002), do grupo Racionais Mc’s: “Desde o início / Por ouro e prata / Olha quem morre / Então veja você quem mata / Recebe o mérito, a farda que pratica o mal / Me ver pobre, preso ou morto / Já é cultural.”. Aqui, o enunciador-locutor fala sobre si e seu grupo (marcado pela pobreza, igualada à bandidagem – e é exatamente sobre esse núcleo temático que a crítica se foca), institui a voz de determinados sujeitos e suas realidades socioculturais vividas (seu ethos), em embate com uma outra voz, com a qual não se identifica (os verdadeiros bandidos, aqueles que roubam e matam por ganância e poder – econômico: “por ouro e prata”; e bélico: “a farda” da polícia militar). Em caráter narrativo e tom de revolta, a letra surge como instrumento de denuncia e desabafo ao preconceito racial – muitas vezes, justificado pelo processo histórico do país, no qual constrói um julgamento sobre alguns valores então instalados no período da colonização: “Desde o início” mata-se por “ouro e prata”, o que evidencia a morte alegada pelo capital onde havia, segundo Zeni, literalmente, sede de riqueza quando as colônias “descobriram o ouro nas Minas Gerais, no final do século XVII, mas também antes, durante o ciclo da cana-de-açúcar, e depois, nas lavouras de café, como atualmente na periferia das grandes cidades, segundo dizem os Racionais”. Ao utilizar um discurso direto e imperativo (“veja você quem mata”), o narrador chama a camada social alta brasileira para algumas questões políticas e ideológicas do país. Na segunda parte da canção, o embate social torna-se ainda mais latente e o enunciador-locutor chega, até mesmo, a se vangloriar pelo fato dos jovens ditos “playboys” gostarem do rap: Inacreditável, mas seu filho me imita / No meio de vocês / Ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria / Gíria não, dialeto / Esse não é mais seu, / Hó, / Subiu / Entrei pelo seu rádio / Tomei / Cê nem viu, / Nós é isso ou aquilo / O que? / Cê não dizia? Seu filho quer ser preto / Rááá…/ Que ironia. Outra prática das tribos é reproduzir, de forma estética, uma consciência do lugar ocupado por eles. Em exemplo é a canção “Negro Drama”, que expõe as conquistas dos sujeitos cantados pelos Racionais Mc’s: antes, “sangue”; agora, “a própria navalha” – em alusão novamente a aspectos históricos brasileiros. Sob esse prisma, a letra versa com dois tons, pois, ao mesmo tempo em que se apresenta forte e agressiva, mostra um lado lírico no/do rap, típico do processo estilístico dos autores-criadores, que ganham a “consciência da passagem do tempo e reflexão sobre a posição social do grupo que, se não é absolutamente inédita nas composições dos Racionais, ainda não havia aparecido de forma tão evidente e tocante”. (ZENI, 2004). A referência à polícia é frequente na tribo hip hop, principalmente no discurso materializado no rap e, no caso da canção por nós aqui analisada, essa crítica aparece transposta pela palavra “farda”, anteposta a “pratica o mal”, em alusão ao abuso de puder da “PM” na periferia. Esse recorte do meio participa como componente da construção do ethos das tribos. Esses elementos marcam a denúncia e a crítica, pois, por meio deles, outras imagens de grupos diversos, compostos por alteridades negadas se tornam presentes na canção. Também é comum os participantes dos grupos se auto afirmarem pela ocupação de um determinado espaço – com o auxilio de marcas características, tal como: pichação, dança, bailes, vestimentas, entre outras. (MADRID, 2001). Buscadas, em sua maioria, pelos “marcadores imaginários” (CASTRO, 1998), as tribos possuem um cuidado com a autoimagem, ou seja, o jeito que se portam traduz o empenho e a relevância aos outros participantes. Essa imagem inclui roupas, performance, cabelo, tatuagem, acessórios, língua, entre outras particularidades que compõem a imagem dos sujeitos. Com os rappers, por exemplo, a forma como entoam a letra é parte essencial da estética de suas canções, visto que utilizam a fonética e o léxico (expressões típicas das periferias) na construção do texto, bem como uma sintaxe própria da oralidade de um registro específico, contra a gramática normativa – exemplos da letra “Negro Drama”: “Cê”, “Tá pensando”, “Pra”, “Mó cota”, “Mano”, “Mina”, “Num guenta” “Seus carro é bonito” “Os carro loco”, “Eu não sei fazê”. A maneira como os rappers se apresentam também marca a sua imagem e seu ethos no jeito de se cumprimentar e de se apresentar nos palcos – de forma mais largada, costas para frente em um estilo mais despojado; de mostrar o punho; de se movimentar, entre outras características; o que confere a participação em uma tribo específica e tipicamente marcada, de certa forma, ao mesmo tempo, de maneira “universal” (todo rapper possui marcas típicas comuns) e peculiar (cada qual tenta construir a sua imagem, dentro da tribo, mas também típica de sua voz, seu ser). Apesar de constantemente aparecerem críticas ao consumismo desenfreado nas letras do rap, pudemos perceber que, nos membros do hip hop, bem como em outras tribos urbanas, o consumo faz parte da formação da identidade nessa faixa etária, pois os objetos de consumo, “não só agregam valor social aos seus portadores, como também os identificam em qualquer lugar, situação ou momento da vida” (COSTA, 2004), mas essa é uma temática que demanda uma outra reflexão mais cuidadosa (que, por conta do espaço, não abordaremos aqui). Considerações Finais Seja “tribos urbanas” seja, como também são conhecidas, “subculturas”[1]; o que se percebe é que tais jovens,  sujeitos ativos em seu campo de atuação, assumem, por meio de seus códigos culturais, uma posição periférica e central na cultura contemporânea (PAULA; PAULA; FIGUEIREDO, 2007). Como um importante terreno de produção – seja pela participação política, seja pela cultural ou até pela econômica; as tribos enxergam e criticam, nos grandes centros urbanos, algumas questões veladas ou ignoradas pela sociedade; sugerem um novo cenário para as metrópoles do país – em que a pluralidade da arte juvenil transforma-se em enfrentamento das marcas deixadas por fraturas sociais profundas. Nesse locus, as tribos denunciam fatos ainda latentes na sociedade contemporânea. O rap, por exemplo, assume em suas em suas letras e melodias a responsabilidade pelos passados não ditos, não representados, que ainda assombram o presente histórico. (BHABHA, 2007) Esse debate social produzido no discurso das tribos não se transfigura como estável. Os participantes produzem e recebem réplicas, vistas como um “outro”, também ativo, em que se transformam os discursos-respostas, sempre pensando no “outro” que os vê ou, como diria Keske (2004), “Trata-se do permanente diálogo entre um “eu” que, por sua vez, não é solitário, mas solidário com todos os “outros” que com ele interage; e com todos os demais que ainda estão por vir”. Referências bibliográficas ANTONI, C. de; RODRÍGUEZ, Susana Núnez; SOUSA, Diogo Araújo de. “Relacionamentos de Amizade, Grupos de Pares e Tribos Urbanas na Adolescência”. In: HABIGZANG, L. F.; DINIZ, E.; KOLLER, S. H. (Org.). Trabalhando com Adolescente. Porto Alegre: Artmed, 2014. BAKHTIN, M. M. (MEDVEDEV). (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BHABHA, H. k. O local da cultura. Belo horizonte: UFMG, 1998. CASTRO, L. R. (1998). “Estetização do corpo: identificação e pertencimento na contemporaneidade”. Em L. R. Castro (Org.), Infância e adolescência na cultura do consumo. Rio de Janeiro: Nau. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPeA, 2002. KESKE, H. I. Dos sujeitos enunciadores e seus contextos dialógicos: Bakhtin e seu outro. Porto Alegre: UFRGS, 2004. MADRID, C. M. Tribus urbanas em Santiago de Chile: entre ritos y consumos. In: S. D. Burak. Adolescencia y juventud en América Latina. Cartago: L.U.R, 2001. MAFFESOLI, M. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitaria, 1987. PAULA, L. de. O SLA Funk de Fernanda Abreu. Tese. Araraquara: UNESP, 2007. Disponível em http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/teses/luciane_de_paula.pdf RACIONAIS MC’s. “Nego Drama”. Nada como um Dia após o Outro Dia.  Cosa Nostra, 2002. ZENI, B. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. São Paulo, 2004. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000100020 [1] Preferimos o termo “tribo urbana” por posicionamento axiológico. Não acreditamos ser a cultura hip hop e, em especial, o rap, uma “subcultura”. Tal termo (“subcultura”) hierarquiza as manifestações culturais e classifica, sem grande critério, as culturas como “superiores” e “inferiores” – isso pode ser notado pelo prefixo “sub” e nos perguntamos: “sub” com relação a quem/quem? Se pensarmos no mainstream, podemos falar em cultura (ainda) excluída, “marginal” e “invisível” aos olhos do senso comum, central(izado) e enaltecido pela mídia global, como assinala Paula (no prelo), mas se pensarmos na papel sociocultural produtivo e reflexivo do movimento, o hip hop nada tem de “sub”.

  • Tribos sociais: uma reflexão dos jovens rappers no espaço urbano

    Nátalie Ferreira Carvalho Silva Introdução Neste artigo, apresentamos, em parte, a continuidade de um raciocínio formulado em minha pesquisa de iniciação científica, numa oportunidade de reflexão que contribuem com as particularidades que envolvem este campo de estudo. Para tal, trazemos à nossa discussão um apanhado referente às tribos urbanas, em especial, a dos jovens participantes do movimento hip hop que, de acordo com Paula, visa “dar voz aos sujeitos excluídos tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil composto por canção (rap e funk), dança (break), pintura (grafite) e poesia (as letras das canções, assim chamadas pelos sujeitos do movimento)”. (2007, p. 19) Diversos autores se debruçaram sobre o tema aqui proposto, no qual expuseram importantes esclarecimentos sobre as condutas das tribos no espaço urbano tal como suas manifestações, a história de seu nascimento, características estéticas e psicológicas, bem como, o discurso e outras peculiaridades que compõem estes grupos. A partir dessas questões já levantadas, delimitamos nosso trabalho em estudar o jovem como sujeito social em exemplos daqueles que se dedicam à construção dos raps brasileiros. Apesar de trazermos algumas características do gênero cancioneiro escolhido, esta discussão não se direciona a sua constituição em si mesmo, mas a um olhar sobre os que participam e produzem tais composições em objetivo de “compreendê-los como sujeitos sociais que, como tais, constroem um determinado modo de ser jovem” (DAYRELL, 2003, p. 40). O jovem e sua contribuição social Em primeira instância, a expressão “tribo urbana” foi cunhada pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, em alguns de seus artigos. Posteriormente, sua obra “O Tempo das Tribos: declínio do individualismo nas sociedades de massa” (1987) popularizou o termo que, segundo o autor, assinala determinadas maneiras de organização dos jovens no contexto pós-moderno. Encontradas nos grandes centros urbanos, as tribos se agrupam por anseio de se diferenciarem da sociedade em questão, mas também pela identificação com pessoas que compartilham os mesmos valores (relativos ao comportamento político), elementos estéticos (maneiras de se vestir e performance), gosto musical e lazer (áreas de sua circulação e compreensão do espaço urbano como fonte de cultura). Nessa lógica, uma tribo pode ser identificada, basicamente, por três aspectos coexistentes:a imagem estética, as práticas de lazer e o estilo musical (ANTONI; RODRÍGUEZ; SOUSA. 2014). Em posição que ultrapassa as linhas do entretenimento, da fruição, do prazer e da distração, as tribos criam uma ideologia alternativa à ordem social, bem como organizam metas e propostas acerca dessa transformação. No Brasil, por exemplo, a tribo constituinte do movimento hip hop não se desvincula dessas características sediciosas tendo, no rap, um veículo de comunicação que verbaliza a resistência e os direitos dos afros-descendentes. Calcadas na ordem social vigente, as letras das canções descrevem os grupos em si, os quais afirmam sua identidade, características e ideais assumidos – muitas vezes geradas por uma insatisfação social. Tal auto-imagem possibilita conhecimento mais aprofundado acerca da entoação autoral do sujeito compositor, do intérprete, das personagens da canção e institui o ethos cantado/narrado, expresso no contexto de uma sociedade cada vez mais globalizada. Um exemplo aparece na canção “Negro Drama”(2002), do grupo Racionais Mc’s: “Desde o início / Por ouro e prata / Olha quem morre / Então veja você quem mata / Recebe o mérito, a farda que pratica o mal / Me ver pobre, preso ou morto / Já é cultural.”. Aqui, o enunciador-locutor fala sobre si e seu grupo (marcado pela pobreza, igualada à bandidagem – e é exatamente sobre esse núcleo temático que a crítica se foca), institui a voz de determinados sujeitos e suas realidades socioculturais vividas (seu ethos), em embate com uma outra voz, com a qual não se identifica (os verdadeiros bandidos, aqueles que roubam e matam por ganância e poder – econômico: “por ouro e prata”; e bélico: “a farda” da polícia militar). Em caráter narrativo e tom de revolta, a letra surge como instrumento de denuncia e desabafo ao preconceito racial – muitas vezes, justificado pelo processo histórico do país, no qual constrói um julgamento sobre alguns valores então instalados no período da colonização: “Desde o início” mata-se por “ouro e prata”, o que evidencia a morte alegada pelo capital onde havia, segundo Zeni, literalmente, sede de riqueza quando as colônias “descobriram o ouro nas Minas Gerais, no final do século XVII, mas também antes, durante o ciclo da cana-de-açúcar, e depois, nas lavouras de café, como atualmente na periferia das grandes cidades, segundo dizem os Racionais”. Ao utilizar um discurso direto e imperativo (“veja você quem mata”), o narrador chama a camada social alta brasileira para algumas questões políticas e ideológicas do país. Na segunda parte da canção, o embate social torna-se ainda mais latente e o enunciador-locutor chega, até mesmo, a se vangloriar pelo fato dos jovens ditos “playboys” gostarem do rap: Inacreditável, mas seu filho me imita / No meio de vocês / Ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria / Gíria não, dialeto / Esse não é mais seu, / Hó, / Subiu / Entrei pelo seu rádio / Tomei / Cê nem viu, / Nós é isso ou aquilo / O que? / Cê não dizia? Seu filho quer ser preto / Rááá…/ Que ironia. Outra prática das tribos é reproduzir, de forma estética, uma consciência do lugar ocupado por eles. Em exemplo é a canção “Negro Drama”, que expõe as conquistas dos sujeitos cantados pelos Racionais Mc’s: antes, “sangue”; agora, “a própria navalha” – em alusão novamente a aspectos históricos brasileiros. Sob esse prisma, a letra versa com dois tons, pois, ao mesmo tempo em que se apresenta forte e agressiva, mostra um lado lírico no/do rap, típico do processo estilístico dos autores-criadores, que ganham a “consciência da passagem do tempo e reflexão sobre a posição social do grupo que, se não é absolutamente inédita nas composições dos Racionais, ainda não havia aparecido de forma tão evidente e tocante”. (ZENI, 2004). A referência à polícia é frequente na tribo hip hop, principalmente no discurso materializado no rap e, no caso da canção por nós aqui analisada, essa crítica aparece transposta pela palavra “farda”, anteposta a “pratica o mal”, em alusão ao abuso de puder da “PM” na periferia. Esse recorte do meio participa como componente da construção do ethos das tribos. Esses elementos marcam a denúncia e a crítica, pois, por meio deles, outras imagens de grupos diversos, compostos por alteridades negadas se tornam presentes na canção. Também é comum os participantes dos grupos se auto afirmarem pela ocupação de um determinado espaço – com o auxilio de marcas características, tal como: pichação, dança, bailes, vestimentas, entre outras. (MADRID, 2001). Buscadas, em sua maioria, pelos “marcadores imaginários” (CASTRO, 1998), as tribos possuem um cuidado com a autoimagem, ou seja, o jeito que se portam traduz o empenho e a relevância aos outros participantes. Essa imagem inclui roupas, performance, cabelo, tatuagem, acessórios, língua, entre outras particularidades que compõem a imagem dos sujeitos. Com os rappers, por exemplo, a forma como entoam a letra é parte essencial da estética de suas canções, visto que utilizam a fonética e o léxico (expressões típicas das periferias) na construção do texto, bem como uma sintaxe própria da oralidade de um registro específico, contra a gramática normativa – exemplos da letra “Negro Drama”: “Cê”, “Tá pensando”, “Pra”, “Mó cota”, “Mano”, “Mina”, “Num guenta” “Seus carro é bonito” “Os carro loco”, “Eu não sei fazê”. A maneira como os rappers se apresentam também marca a sua imagem e seu ethos no jeito de se cumprimentar e de se apresentar nos palcos – de forma mais largada, costas para frente em um estilo mais despojado; de mostrar o punho; de se movimentar, entre outras características; o que confere a participação em uma tribo específica e tipicamente marcada, de certa forma, ao mesmo tempo, de maneira “universal” (todo rapper possui marcas típicas comuns) e peculiar (cada qual tenta construir a sua imagem, dentro da tribo, mas também típica de sua voz, seu ser). Apesar de constantemente aparecerem críticas ao consumismo desenfreado nas letras do rap, pudemos perceber que, nos membros do hip hop, bem como em outras tribos urbanas, o consumo faz parte da formação da identidade nessa faixa etária, pois os objetos de consumo, “não só agregam valor social aos seus portadores, como também os identificam em qualquer lugar, situação ou momento da vida” (COSTA, 2004), mas essa é uma temática que demanda uma outra reflexão mais cuidadosa (que, por conta do espaço, não abordaremos aqui). Considerações Finais Seja “tribos urbanas” seja, como também são conhecidas, “subculturas”[1]; o que se percebe é que tais jovens,  sujeitos ativos em seu campo de atuação, assumem, por meio de seus códigos culturais, uma posição periférica e central na cultura contemporânea (PAULA; PAULA; FIGUEIREDO, 2007). Como um importante terreno de produção – seja pela participação política, seja pela cultural ou até pela econômica; as tribos enxergam e criticam, nos grandes centros urbanos, algumas questões veladas ou ignoradas pela sociedade; sugerem um novo cenário para as metrópoles do país – em que a pluralidade da arte juvenil transforma-se em enfrentamento das marcas deixadas por fraturas sociais profundas. Nesse locus, as tribos denunciam fatos ainda latentes na sociedade contemporânea. O rap, por exemplo, assume em suas em suas letras e melodias a responsabilidade pelos passados não ditos, não representados, que ainda assombram o presente histórico. (BHABHA, 2007) Esse debate social produzido no discurso das tribos não se transfigura como estável. Os participantes produzem e recebem réplicas, vistas como um “outro”, também ativo, em que se transformam os discursos-respostas, sempre pensando no “outro” que os vê ou, como diria Keske (2004), “Trata-se do permanente diálogo entre um “eu” que, por sua vez, não é solitário, mas solidário com todos os “outros” que com ele interage; e com todos os demais que ainda estão por vir”. Referências bibliográficas ANTONI, C. de; RODRÍGUEZ, Susana Núnez; SOUSA, Diogo Araújo de. “Relacionamentos de Amizade, Grupos de Pares e Tribos Urbanas na Adolescência”. In: HABIGZANG, L. F.; DINIZ, E.; KOLLER, S. H. (Org.). Trabalhando com Adolescente. Porto Alegre: Artmed, 2014. BAKHTIN, M. M. (MEDVEDEV). (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BHABHA, H. k. O local da cultura. Belo horizonte: UFMG, 1998. CASTRO, L. R. (1998). “Estetização do corpo: identificação e pertencimento na contemporaneidade”. Em L. R. Castro (Org.), Infância e adolescência na cultura do consumo. Rio de Janeiro: Nau. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPeA, 2002. KESKE, H. I. Dos sujeitos enunciadores e seus contextos dialógicos: Bakhtin e seu outro. Porto Alegre: UFRGS, 2004. MADRID, C. M. Tribus urbanas em Santiago de Chile: entre ritos y consumos. In: S. D. Burak. Adolescencia y juventud en América Latina. Cartago: L.U.R, 2001. MAFFESOLI, M. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitaria, 1987. PAULA, L. de. O SLA Funk de Fernanda Abreu. Tese. Araraquara: UNESP, 2007. Disponível em http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/teses/luciane_de_paula.pdf RACIONAIS MC’s. “Nego Drama”. Nada como um Dia após o Outro Dia.  Cosa Nostra, 2002. ZENI, B. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. São Paulo, 2004. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000100020 [1] Preferimos o termo “tribo urbana” por posicionamento axiológico. Não acreditamos ser a cultura hip hop e, em especial, o rap, uma “subcultura”. Tal termo (“subcultura”) hierarquiza as manifestações culturais e classifica, sem grande critério, as culturas como “superiores” e “inferiores” – isso pode ser notado pelo prefixo “sub” e nos perguntamos: “sub” com relação a quem/quem? Se pensarmos no mainstream, podemos falar em cultura (ainda) excluída, “marginal” e “invisível” aos olhos do senso comum, central(izado) e enaltecido pela mídia global, como assinala Paula (no prelo), mas se pensarmos na papel sociocultural produtivo e reflexivo do movimento, o hip hop nada tem de “sub”.

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