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- CADA VOZ, UM TOM; CADA VEZ, UM SOM: TULIPA, FILIPE E A PLATEIA NUM DIÁLOGO BOM
Schneider Pereira Caixeta ♪ “Tire sua fala da garganta e deixa ela passar por sua goela, e transbordar da boca” Numa primeira lida, esta primeira linha da canção “Cada Voz”[1], de Tulipa Ruiz, soa como uma ordem, de alguém que quer ouvir a um outro alguém que não quer/não pode falar. Pode-se inferir que se alguém urge para que a fala seja tirada da garganta, é porque há certa dificuldade em se falar. Sendo a garganta a porta por onde a fala sai e vai percorrer o mundo, é compreensível que seja ela também o lugar em que as palavras tendem a gostar de se entalar. De qualquer maneira, não é fácil tirar a fala lá entalada, pois sabemos que, ao fazê-lo, teremos consequências, as quais tememos enfrentar. Daí, entramos no impasse: falo e enfrento/assumo as consequências ou me calo? Caso falemos, podemos até escolher não enfrentar as consequências e tentarmos nos esconder delas, mas não poderemos, no entanto, afastarmo-nos da responsabilidade sobre elas. Nossa “fala que passa pela goela” não é um simples transbordar de palavras. Bakhtin (2011) afirma que somos responsáveis pelo que dizemos. Temos (que ter) uma atitude de respondibilidade (responsabilidade + responsividade), o que quer dizer que somos responsáveis pelos nossos próprios atos, enquanto respondemos a alguém/algo. Diz-nos o filósofo russo que “O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da responsabilidade”.[2] Além disso, falar não é um simples “tirar da goela”, porque dizemos de um determinado lugar e nosso dizer é moldado pelo outro. A maneira como eu tiro minha fala da minha garganta é determinada pelo outro. E sou justamente eu que defino o outro. Sou eu por causa dele, que é ele mesmo por causa de mim (eu). Em uma recente apresentação da canção “Cada Voz”, Tulipa Ruiz parece demonstrar na prática o que canta nos versos que compôs. Ao perceber na plateia o também cantor Filipe Catto, a cantora resolve dividir com ele os vocais da canção. No começo do vídeo, temos Tulipa dando a Filipe a oportunidade de cantar. Assim, a frase “tire sua fala da garganta”, se concretiza como ordem, uma vez que, diferentemente de duetos previamente combinados e ensaiados, em que o artista convidado é anunciado e sobe ao palco, o que se pode assistir no vídeo é a cantora se dirigindo a Felipe na plateia e colocando o microfone em sua boca para que este cante. Ao se considerar que o show é de Tulipa e que Filipe encontra-se ali na condição de expectador, essa é uma oportunidade relativamente grande que o cantor/expectador tem de fazer soar a sua própria voz. É preferível referir-se à condição de Filipe Catto, no momento, como cantor/expectador, pois, mesmo que esteja ele entre o público que foi ao show para assistir à apresentação de Tulipa, em nenhum momento ele perde seu status de novo talento da MPB, título partilhado também com a cantora em cartaz. Interessante notar que é Tulipa quem segura o microfone – aqui, claramente um instrumento de poder, que eleva quem o porta à posição de detentor da voz e do direito de falar – no momento em que Filipe canta e o inverso também é verdadeiro, sendo Filipe quem segura o microfone quando Tulipa canta seu solo, o que enfatiza esse caráter de diálogo que se instaura nesse dueto não planejado. Para Bakhtin e Voloshinov (2006), O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.[3] E o diálogo prevalece no decorrer de todo o vídeo até o final, não somente entre os dois cantores, mas entre eles e a plateia também, que, ou cantando a canção em acompanhamento ou gritando elogios, dialoga com os outros participantes do dueto, que já não é mais dueto, mas um diálogo entre vozes incontáveis. ♪ “Deixa solto no ar, toda essa voz que tá aí dentro, deixa ela falar” Tudo o que falamos está repleto de discursos anteriores e também reverbera em discursos posteriores. Pode-se dizer que, de certa forma, fica “solto no ar”. Ora, ao se concordar com a afirmação de Bakhtin (2011), quando diz que todo enunciado tem um princípio e um fim absoluto: “antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros”[4], há de se acreditar que um enunciado nunca é proferido e morre, mas, muito pelo contrário, está sempre numa relação inegável com outros discursos. Filipe Catto só pôde cantar sua parte na canção por já tê-la ouvido antes daquele momento. Ele já havia ouvido discursos outros de Tulipa e isso é notável na maneira como ele canta a canção, que é, na maior parte, idêntica à forma gravada pela cantora em seu disco. Por isso, Filipe já havia sido influenciado pela maneira como Tulipa já havia cantado a canção, assim como Tulipa também ficaria marcada pela maneira como Filipe a cantou naquele dia. ♪ “Você pode dar um berro, quem sabe não pinta um eco pra te acompanhar” Nossa fala não é verdade absoluta e tudo o que dizemos pode ser e é questionado. Nossa verdade pode não ser a do outro e, preparamo-nos, pois, na maioria das vezes, nossa “verdade” é só nossa mesmo. O que dizemos não será conclusivo e indiscutível, pelo contrário, será questionável e será apenas o início de outros questionamentos à espera de novas réplicas. No vídeo, Tulipa acompanha Filipe, que também a acompanha, e são acompanhados pelo público, que também canta. Além disso, estão presentes ali as vozes dos que não falam, por falta de vontade, ou de oportunidade, ou de direito, bem como as vozes dos que berram em busca de serem ouvidos. Essas vozes todas, numa orquestração dialógica, acompanham-se umas às outras numa canção que, mesmo sendo a mesma, pode ser diferente a cada vez em que é entoada. ♪ “Cada voz tem um tom. Cada vez tem um som” Brait e Melo (2012), ao tratarem do enunciado na perspectiva bakhtiniana, explicam que “Uma mesma frase realiza-se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a ‘frase’ ganhará sentido diferente nessas diferentes realizações ‘enunciativas’”.[5] Isso significa que o momento gravado e visualizado no vídeo é único e peculiar. Mesmo podendo assistir ao vídeo repetidas vezes, cada vez será diferente de outra porque os sujeitos que o veem serão outros, modificados a cada leitura do texto/discurso da obra e isso torna o enunciado não repetível. O enunciado de Tulipa, de Filipe, do público, a situação composta daquela maneira é única e não se repet(e)(irá), mesmo que esses enunciados sejam evocados futuramente em contextos que possam ser semelhantes ao que assistimos. ♪ “A orquestra já tocou e o maestro até se despediu. Todos querem ver você cantar” Todo discurso tem uma resposta, mesmo que esta seja o silêncio. Ainda que a “compreensão ativamente responsiva” ao que foi ouvido não se explicite imediatamente após o enunciado, ela existe como processo. Na performance contemplada no vídeo, há uma resposta instantânea, uma vez que, no decorrer de toda a performance da canção e, mais acentuadamente, com o retornar da cantora ao palco, é audível a participação da plateia na canção, como que atendendo ao chamado de Tulipa para cantarem e tirarem da goela a voz. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (BAKHTIN, 2011, p. 271).[6] E é essa “transformação” do ouvinte em falante, característica tão marcante do diálogo, o auge do vídeo em análise aqui. É nítido e muito forte o processo de interação dialógica existente na performance, não mais somente de Tulipa, mas também de Filipe e de todo o público. Processo esse que Bakhtin (2011) descreve como a situação em que “o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva”.[7] Muitos dos presentes no show ouviram a ordem de Tulipa e tiraram a voz da garganta, cantando juntamente com os cantores e se tornando, eles próprios, cantores. Muitos também talvez não o tenham feito, apesar de terem, sim, respondido, mesmo que em silêncio, aos vários discursos proferidos na ocasião. Porém, aquela canção provavelmente ecoou em suas cabeças no período que se seguiu ao show, pois o discurso resultante desse encontro musical não morre: ele pede bis. [1] RUIZ, T. Tudo Tanto. Independente, 2012. [2] BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. XXIII. [3] BAKHTIN. M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 125. [4] BAKHTIN, M.. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 275. [5] BRAIT, B.; MELO, R. de. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2012. p. 63. [6] BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 271. [7] Idem, p. 275.
- O olhar do outro: compondo sujeitos
Tatiele Novais Silva Neste texto, propomos pensar como o sujeito se enxerga como tal por meio da visão do outro, mediante uma relação dialógica em que as trocas de diferentes perspectivas sobre a descrição física de um sujeito revelam os valores sociais e individuais neste presente, assim como o faz se perceber da maneira como é fisicamente sem o criticismo presente na visão que tem de si mesmo. O sujeito é visto como sócio-histórico e constituído em parte pelo olhar do outro, sobre a constituição do sujeito diz Sobral que A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua constituição como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infeso à inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do sentido como um sujeito assujeitado. A proposta é de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido. Só me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o outro do outro: eis o acabamento constitutivo do ser, tão rico de ressonâncias filosóficas discursivas e outras. (2005 p.22). Como parte de um grupo social, o sujeito utiliza signos para a comunicação. Ele é imerso aos valores ideológicos pertencentes ao seu grupo. Para pensar a constituição do sujeito e dos valores ideológicos que o integram, abordamos o vídeo da campanha publicitária “Dove Retratos da Real Beleza (Versão Estendida)”[1]. O vídeo da campanha publicitária apresenta um artista forense que faz retratos-falados das mulheres com base na auto-descrição feita pela retratada. Após esse processo, é feito um novo desenho retratando a mulher sob a visão de outra pessoa. O autor-criador não vê as mulheres retratas, seus desenhos são feitos a partir da visão do outro. A noção de sujeito implica pensar o contexto em que se age e o princípio dialógico permite pensar os elementos sociais e históricos que constituem o sujeito como ideológico inserido em uma esfera e em um sistema organizado que influenciam a sua individualidade. Ao final do vídeo, as mulheres encaram os dois desenhos e nota-se o impacto que causam as diferentes representações do sujeito mediante diferentes visões, como podemos ver nos exemplos que seguem. Fig.1 Diferentes retratos de Kela Fig.2 Diferentes retratos de Florence As figuras 1 e 2 são alguns dos desenhos que aparecem no vídeo, de duas das participantes da peça publicitária. As figuras da esquerda caracterizam a representação feita sob a perspectiva das mulheres desenhadas e as da direita, os desenhos feitos a partir da visão de outras pessoas sob as mesmas mulheres. Podemos notar que essas mulheres apresentam, em sua auto-descrição, uma visão crítica em reação à sua aparência. Visão até mesmo distorcida (mais gordas, mais velhas, mais tristes ou amargas. Focam-se em seus “defeitos” mínimos: sardas, pés-de-galinha, rugas, tamanho do nariz, do queixo e das bochechas etc). Ao encararem as diferentes visões de si, elas percebem o quão críticas são em relação à aparência. Esse criticismo pode ser uma resposta aos valores que permeiam a esfera social à qual estão inseridas, à exigência de corpo perfeito imposta à mulher (mais do que ao homem) e o estado psíquico que se altera mediante determinada configuração física, o que revela a gravidade acerca da importância dada ao corpo nas mais diversas sociedades, na contemporaneidade (mas, não só. Afinal, trata-se de um processo histórico). O vídeo é importante porque suscita muitas questões em torno da composição do sujeito, mediante a sua ralação com outro; e permite compreender como os valores sociais estão intrínsecos à forma como o sujeito se vê. Esses valores afetam a forma como esse sujeito se idealiza, tendo em vista modelos pré-concebidos como “belos” e “perfeitos”, a partir de determinada construção imagética de si e do outro, socialmente constituída, como podemos perceber por meio dos desenhos, nas diferentes visões sobre o físico, que revelam a constituição de uma imagem, por vezes, fictícia e deturpada de si, construída e idealizada no âmbito dos valores ideológicos. Por meio do vídeo é possível perceber o quão a ação de descrever a sua aparência ao outro revela parte do sujeito composto por suas individualidades (sempre dialógicas e responsivas), assim como composto socialmente na relação com o outro, permeado por valores e signos ideológicos. As reflexões que esse vídeo suscita permitem entender as formas de representação dos valores ideológicos constituintes dos discursos que envolvem a representação física do sujeito mediante uma visão crítica em relação à aparência, influência de padrões e parâmetros sócio-culturais e, principalmente, como afetam a visão que os sujeitos têm de si e do outro. O sujeito é entendido como incompleto, sendo a relação com a alteridade que lhe dá existência. As duas representações do sujeito por meio do desenho revelam sua visão sobre si e a visão do outro sobre ele. A compreensão do sujeito se dá em ambos os retratos que, mesmo quando diferem a forma física, refletem e refratam a ideologia presente nos sujeitos envolvidos e podemos perceber nitidamente por meio do vídeo o quanto os valores aparentemente íntimos dos sujeitos, sua autoimagem, são também sócio-culturais. O outro infere acabamentos múltiplos no espaço e no tempo ao sujeito. As relações entre sujeitos e como eles interagem e se re-velam mutuamente permite compreender os valores presentes não apenas no sujeito, mas também o que está incutido socialmente nele, incorporado inconscientemente. O que fica é: o quanto somos “contaminados” pelos valores sociais e isso nos constitui, inclusive, causando doenças de distorção total de imagens (o que é muito claro em processos de anorexia e bulimia, dada a ditadura da magreza, vista como saúde e beleza). Referências BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. GERALDI, J.W. “Sobre a questão do sujeito”. PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010, p.279-292. SOBRAL, A. “Ato/atividade e evento”. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin – conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p.11-36. [1] http://www.youtube.com/watch?v=Il0nz0LHbcM Site da campanha publicitária –http://retratosdarealbeleza.dove.com.br/
- O olhar do outro: compondo sujeitos
Tatiele Novais Silva Neste texto, propomos pensar como o sujeito se enxerga como tal por meio da visão do outro, mediante uma relação dialógica em que as trocas de diferentes perspectivas sobre a descrição física de um sujeito revelam os valores sociais e individuais neste presente, assim como o faz se perceber da maneira como é fisicamente sem o criticismo presente na visão que tem de si mesmo. O sujeito é visto como sócio-histórico e constituído em parte pelo olhar do outro, sobre a constituição do sujeito diz Sobral que A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua constituição como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infeso à inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do sentido como um sujeito assujeitado. A proposta é de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido. Só me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o outro do outro: eis o acabamento constitutivo do ser, tão rico de ressonâncias filosóficas discursivas e outras. (2005 p.22). Como parte de um grupo social, o sujeito utiliza signos para a comunicação. Ele é imerso aos valores ideológicos pertencentes ao seu grupo. Para pensar a constituição do sujeito e dos valores ideológicos que o integram, abordamos o vídeo da campanha publicitária “Dove Retratos da Real Beleza (Versão Estendida)”[1]. O vídeo da campanha publicitária apresenta um artista forense que faz retratos-falados das mulheres com base na auto-descrição feita pela retratada. Após esse processo, é feito um novo desenho retratando a mulher sob a visão de outra pessoa. O autor-criador não vê as mulheres retratas, seus desenhos são feitos a partir da visão do outro. A noção de sujeito implica pensar o contexto em que se age e o princípio dialógico permite pensar os elementos sociais e históricos que constituem o sujeito como ideológico inserido em uma esfera e em um sistema organizado que influenciam a sua individualidade. Ao final do vídeo, as mulheres encaram os dois desenhos e nota-se o impacto que causam as diferentes representações do sujeito mediante diferentes visões, como podemos ver nos exemplos que seguem. Fig.1 Diferentes retratos de Kela Fig.2 Diferentes retratos de Florence As figuras 1 e 2 são alguns dos desenhos que aparecem no vídeo, de duas das participantes da peça publicitária. As figuras da esquerda caracterizam a representação feita sob a perspectiva das mulheres desenhadas e as da direita, os desenhos feitos a partir da visão de outras pessoas sob as mesmas mulheres. Podemos notar que essas mulheres apresentam, em sua auto-descrição, uma visão crítica em reação à sua aparência. Visão até mesmo distorcida (mais gordas, mais velhas, mais tristes ou amargas. Focam-se em seus “defeitos” mínimos: sardas, pés-de-galinha, rugas, tamanho do nariz, do queixo e das bochechas etc). Ao encararem as diferentes visões de si, elas percebem o quão críticas são em relação à aparência. Esse criticismo pode ser uma resposta aos valores que permeiam a esfera social à qual estão inseridas, à exigência de corpo perfeito imposta à mulher (mais do que ao homem) e o estado psíquico que se altera mediante determinada configuração física, o que revela a gravidade acerca da importância dada ao corpo nas mais diversas sociedades, na contemporaneidade (mas, não só. Afinal, trata-se de um processo histórico). O vídeo é importante porque suscita muitas questões em torno da composição do sujeito, mediante a sua ralação com outro; e permite compreender como os valores sociais estão intrínsecos à forma como o sujeito se vê. Esses valores afetam a forma como esse sujeito se idealiza, tendo em vista modelos pré-concebidos como “belos” e “perfeitos”, a partir de determinada construção imagética de si e do outro, socialmente constituída, como podemos perceber por meio dos desenhos, nas diferentes visões sobre o físico, que revelam a constituição de uma imagem, por vezes, fictícia e deturpada de si, construída e idealizada no âmbito dos valores ideológicos. Por meio do vídeo é possível perceber o quão a ação de descrever a sua aparência ao outro revela parte do sujeito composto por suas individualidades (sempre dialógicas e responsivas), assim como composto socialmente na relação com o outro, permeado por valores e signos ideológicos. As reflexões que esse vídeo suscita permitem entender as formas de representação dos valores ideológicos constituintes dos discursos que envolvem a representação física do sujeito mediante uma visão crítica em relação à aparência, influência de padrões e parâmetros sócio-culturais e, principalmente, como afetam a visão que os sujeitos têm de si e do outro. O sujeito é entendido como incompleto, sendo a relação com a alteridade que lhe dá existência. As duas representações do sujeito por meio do desenho revelam sua visão sobre si e a visão do outro sobre ele. A compreensão do sujeito se dá em ambos os retratos que, mesmo quando diferem a forma física, refletem e refratam a ideologia presente nos sujeitos envolvidos e podemos perceber nitidamente por meio do vídeo o quanto os valores aparentemente íntimos dos sujeitos, sua autoimagem, são também sócio-culturais. O outro infere acabamentos múltiplos no espaço e no tempo ao sujeito. As relações entre sujeitos e como eles interagem e se re-velam mutuamente permite compreender os valores presentes não apenas no sujeito, mas também o que está incutido socialmente nele, incorporado inconscientemente. O que fica é: o quanto somos “contaminados” pelos valores sociais e isso nos constitui, inclusive, causando doenças de distorção total de imagens (o que é muito claro em processos de anorexia e bulimia, dada a ditadura da magreza, vista como saúde e beleza). Referências BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. GERALDI, J.W. “Sobre a questão do sujeito”. PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010, p.279-292. SOBRAL, A. “Ato/atividade e evento”. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin – conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p.11-36. [1] http://www.youtube.com/watch?v=Il0nz0LHbcM Site da campanha publicitária –http://retratosdarealbeleza.dove.com.br/
- O universo escolar e suas táticas disciplinares
Mirian Valéria Gomes Sabeh[1] Ao pensarmos sobre as relações de poder disciplinares pertinentes ao universo escolar, no âmbito de espaço institucional, desde as pequenas atitudes que representam e acabam por dar forma e materialidade as relações de poder, esse estudo se assenta às teorias de Foucault, que em sua obra Vigiar e Punir, objetiva o entendimento da dinâmica do poder, por meio de sua militância em diversas prisões de vários países. Ademais, evidencia o que sai de foco e desconstrói diversas ideias que são impostas como corretas, únicas , instituídas há muito tempo na sociedade. Para entendermos essas ideias impostas Foucault traz à luz estudos sobre as relações de poder e as formas como o mesmo é constituído e exercido. Dessa forma, com base nas reflexões sobre como se firmam o poder, a disciplina, revolta, resistência, liberdade, obediência, analisaremos como se revelam comportamentos, discursos e sentimentos no universo escolar. Antes de chegarmos a uma análise, é de extrema necessidade que compreendamos os estudos de Foucault com relação às instituições. No caso em estudo, a instituição escolar especificamente. O autor trata das diversas instituições, fábricas, prisões, hospitais psiquiátricos, quarteis e escolas como “instituições de sequestro”, perpassando pela sociedade disciplinar. As instituições, conduzidas por políticas que visam controlar de forma hierárquica a partir da prescrição de comportamentos humanos homogêneos e já estabelecidos, mas Foucault não centraliza o exercício de poder especificamente na política ou no governo (como a concepção marxista), mas pontua que o poder está em todos os lugares e que atinge todas as pessoas. O autor ressalta que não há um poder único, mas práticas de poder que se espalham em todas as estruturas sociais através de diversos mecanismos, disciplina. A disciplina no ambiente escolar é estabelecida com base em regras a serem cumpridas e mantidas de modo que haja certo controle sobre o aluno. Este não pode falar durante a aula, não pode ir ao banheiro na primeira aula e quarta aulas e nem ir ao banheiro duas vezes na mesma aula. Essas regras são válidas também em relação ao beber água. Esses são alguns exemplos. O professor também deve cumprir certas regras, como não se ausentar da sala de aula, ser cuidadoso com as vestimentas e deve calar-se diante de “grosserias” de alunos para com ele. Tudo em nome da ordem, do relativamente correto. Foucault, afirma que o poder nas sociedades está ligado ao corpo e que é sobre o mesmo que são impostas limitações, obrigações e proibições. Dessa maneira, para o autor, surge a noção do corpo dócil, que pode ser utilizado, transformado em função do poder. Esse elemento intra-escolar, que é a disciplina, alimenta e alicerça a escola. Foucault define disciplina como um método que permite o controle das operações do corpo, que o submetem, impõe essa relação de docilidade-utilidade. O olhar hierárquico e uma punição “normalizadora” são exemplos de técnicas minuciosas que englobam o poder disciplinar, encaminhar à coordenação, observações em livros de registros e ocorrências, notas em boletins, avaliações, controle de frequência, estratégias e táticas utilizadas para que permaneça a “normalidade”. Os professores também fazem parte dessa forma estruturada de poder, como sujeito que obedece as regras e é pressionado pelo alcance de índices em avaliações monológicas “propostas” por instituições de poder aos alunos, que objetivam não a formação de um cidadão e nem ao menos de um vestibulando, mas sim, aquele que é passível de se vigiar e controlar. Os alunos são “medidos” por números de acertos em questões avaliativas que não refletem o que pensam e/ou o que realmente sabem ou sua capacidade. A arquitetura escolar proporciona um ambiente favorável às práticas de vigilância. Carteiras perfiladas, professor em um espaço reservado frente aos alunos, janelas com grades e câmeras em todos os ambientes, tudo para promover a “segurança” de todos em um sistema de controle hierárquico, vigilante. A intenção é poder controlar para que não haja a necessidade de punir, porém pune-se através de anotações em cadernetas, avaliações monológicas, notas, conselho de classe, mecanismos que compõem um sistema punitivo que engendra o sistema educacional. A questão disciplinar permeia todos os diálogos em meio a planejamento didático, comunicados, reuniões periódicas e até mesmo no momento de intervalo na sala dos professores, uma preocupação do cotidiano escolar. Nessa perspectiva: “[…] o poder e o saber produzidos pelas normas disciplinares são fundamentais para a organização burocrática. Em uma sociedade de instituições burocratizadas como a nossa, o poder disciplinar se desenvolve em todo tecido social”. (KRUPPA, 1994, p. 102). O poder disciplinador está direcionado para a escola, mecanismos de vigilância na construção do “saber” educacional, ensino através da vigilância e mecanismos disciplinarizadores a fim de moldar os alunos que participam do sistema escolar. Todos os anos as ações pedagógicas são revistas, tentativas de melhorias nos programas, novos materiais didáticos, projetos educacionais, inúmeras discussões sobre esses tópicos surgem em meio a reuniões, mas, tudo termina por ganhar uma roupagem diferenciada, o fundamento continua o mesmo, seguindo o padrão imposto por um poder controlador, que busca disciplinar os alunos, professores e demais profissionais da educação. Muitas vezes, durante as discussões sobre projetos a serem desenvolvidos com os alunos, são apresentadas propostas idealizadoras, com bom fundamento e função útil de aprendizado, mas no momento em que essas propostas interferem na estrutura da sala de aula, ou seja, algo que tem de ser desenvolvido fora do sistema padrão (lousa e giz, alunos perfilados). Mantem-se certa resistência de coordenadores, direção e até mesmo de alguns professores, pois os alunos vão “sair do controle”, da vigilância, do aparentemente local seguro. Assim sendo, continua-se com toda a idealização no papel e segue-se dominado pelo poder controlador. Para que toda essa disciplina se realize é necessário que haja um espaço onde os sujeitos possam ser vigiados, seus comportamentos visualizados para um melhor controle para que respeitem normas, um sistema punitivo com a função normalizadora. Sob essa ótica, a escola é vista como espaço útil e funcional, pois os alunos são distribuídos em salas de aula, separados pela idade, muitas vezes por nível de aprendizagem, comportamento, são dispostos em filas, tudo para uma melhor vigilância e controle, e nesse tipo de distribuição, o professor tem uma grande parcela de colaboração e culpa. A distribuição das salas em fileiras, alunos uniformizados, sempre em ordem, tem o objetivo de manter a obediência dos mesmos. A escola dessa maneira, sua estrutura física, muito parecida e comparada com a estrutura das prisões, não somente por Foucault, mas também pelos discursos dos alunos, pois num local onde não pode haver comunicação, portões fechados sem visibilidade, refeitório comunitário, câmeras, muros altos, janelas com grades e horários controlados como os de ir ao banheiro e beber água, não existe outro local com o qual se pode comparar a estrutura da escola que não seja a prisão. Esse poder disciplinador não é pertinente apenas na estrutura física da escola, mas também está presente no sistema interior e comportamental da escola, como a exigência do cumprimento de todo o horário de aula, para que professores e funcionários cumpram suas tarefas, produzam e assim, de forma hierárquica “obriguem” os alunos a se adequarem aso sistema, para que tudo funcione de maneira controlada e codificada, o controle do corpo, que requer que seja dócil como diz Foucault, dócil até mesmo em suas operações mínimas. Completamos que toda hierarquia de poder tem como fundamento o controle: “[…] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT, 1997, p. 153). O poder disciplinar não tem a intenção de reter forças e sim fazer uma interligação, multiplicação, utilização, consolidando-se através da vigilância hierárquica e outros meios de punição. A rigorosidade (juntamente com outras regulamentações) funciona como um sistema punitivo, como a permissão da entrada do aluno na escola somente se estiver uniformizado, a ausência do aluno da sala de aula, apenas se estiver com o crachá do professor, são normas de circulação para evitar os desvios das sob as regras escolares. Segundo Foucault, esse sistema punitivo acontece a partir de: […] micropenalidades do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseira, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). (FOUCAULT, 1977, p. 159). Quando transgridem a norma, a penalidade é consequente, conversas com os coordenadores, reunião com os pais, mudança de sala, ocorrência no livro escolar de ocorrências, prejuízo nas notas, em alguns casos, suspensão. Dessa maneira os alunos ficam receosos com relação às possíveis punições caso transgridam alguma das normas escolares. Dessa forma, temos uma eficácia das penalidades, e um funcionamento do sistema punitivo. Essas maneiras de punir são chamadas por Foucault de “gratificação-sanção”. Um sistema que consiste em premiar os alunos exemplares e tornar operante a correção dos alunos em sala de aula. O sistema visa a utilização de mais gratificações do que sanções, assim, os alunos indisciplinados procurariam com maior afinco recompensas e se afastariam das penalidades. Mas, há um ponto importante nesse aspecto a ser considerado; muitas vezes o aluno indisciplinado não dá importância ‘a premiações, pois não tem incentivo em sala de aula pelo próprio professor e também pela família que em muitos casos está desestruturada, o aluno não vê nenhuma perspectiva com relação à premiação proposta. Também esse sistema disciplinar que usa da premiação, acaba por comparar os melhores e os piores alunos e constrói uma relação de hierarquia de qualidades. Essa hierarquização vai além da comparação entre alunos, há também a comparação entre as salas, salas “boas” e salas “ruins”, são classificadas dessa maneira devido aos alunos que integram essas salas e que possuem essas classificações. O sistema disciplinar é pertinente também nas avaliações. Através desse tipo de sistema(poder), o professor conhece seus alunos, compara-os ,classifica-os, treina-os para normalizá-los. “O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e a sansão que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 1997, p. 164). As avaliações envolvem todo um esquema padronizado em sua estrutura, comportamento disciplinar e tempo. Durante a avaliação, os alunos devem estar perfilados, proibidos de qualquer conversa ou gesto e informados do horário de início da prova e término da mesma. Esse esquema de aplicação da avaliação reflete o poder, mostra o peso da disciplina na vida escolar. A avaliação permite comparar os alunos, analisá-los, obter um conhecimento sobre o aluno, suas aptidões, deficiências e a maneira como evolui ou desvia-se, mas, sempre ligado ao exercício de poder e não realmente ligado a um aprendizado dialógico. Assim, a escola juntamente com suas “técnicas” de disciplina faz com que seus alunos aceitem esse poder de punir e também de serem punidos. E, dessa forma, a escola fabrica, define o sujeito-aluno, supostamente à sua maneira são e também maduro, dentro dos padrões acordados com a sociedade de poder. Dessa forma, continuamos a indagarmo-nos se o sujeito-aluno está apto a libertar-se dessas algemas sociais padronizadas.O professor poderia ser a mola propulsora , o start inicial para uma possível libertação dessas algemas sociais e desvincunlar-se do que é de praxe, do que está enraigado em suas práticas automáticas forjadas pelo poder disciplinar , se não de maneira global, ao menos em partes que partilhem da mesma indignação educacional. Referências BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. : Hucitec. São Paulo,1992. FOCAULT, M. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete.23ª ed. Vozes. Rio de Janeiro, 2000. ___. O nascimento da clínica. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2006. ___. História da loucura. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1978. ___. Microfísica do poder. 15a Ed. Graal – RJ, 2000. ___. O que é a crítica? (crítica ou aufklarung). Trad. Antônio C. Galdino. IN: BIROLI, Flávia. ___. O homem e o discurso. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1994. ___. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège de France, Pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. Leituras Filosóficas. 11a Ed. Loyola. São Paulo, 2004. KRUPPA, S. Maria Portella. Sociologia da Educação. Cortez. São Paulo, 1994, p. 102. [1] Mestranda em Letras pelo Profletras – UNESP – Universidade Estadual Paulista FCL Assis -SP
- O universo escolar e suas táticas disciplinares
Mirian Valéria Gomes Sabeh[1] Ao pensarmos sobre as relações de poder disciplinares pertinentes ao universo escolar, no âmbito de espaço institucional, desde as pequenas atitudes que representam e acabam por dar forma e materialidade as relações de poder, esse estudo se assenta às teorias de Foucault, que em sua obra Vigiar e Punir, objetiva o entendimento da dinâmica do poder, por meio de sua militância em diversas prisões de vários países. Ademais, evidencia o que sai de foco e desconstrói diversas ideias que são impostas como corretas, únicas , instituídas há muito tempo na sociedade. Para entendermos essas ideias impostas Foucault traz à luz estudos sobre as relações de poder e as formas como o mesmo é constituído e exercido. Dessa forma, com base nas reflexões sobre como se firmam o poder, a disciplina, revolta, resistência, liberdade, obediência, analisaremos como se revelam comportamentos, discursos e sentimentos no universo escolar. Antes de chegarmos a uma análise, é de extrema necessidade que compreendamos os estudos de Foucault com relação às instituições. No caso em estudo, a instituição escolar especificamente. O autor trata das diversas instituições, fábricas, prisões, hospitais psiquiátricos, quarteis e escolas como “instituições de sequestro”, perpassando pela sociedade disciplinar. As instituições, conduzidas por políticas que visam controlar de forma hierárquica a partir da prescrição de comportamentos humanos homogêneos e já estabelecidos, mas Foucault não centraliza o exercício de poder especificamente na política ou no governo (como a concepção marxista), mas pontua que o poder está em todos os lugares e que atinge todas as pessoas. O autor ressalta que não há um poder único, mas práticas de poder que se espalham em todas as estruturas sociais através de diversos mecanismos, disciplina. A disciplina no ambiente escolar é estabelecida com base em regras a serem cumpridas e mantidas de modo que haja certo controle sobre o aluno. Este não pode falar durante a aula, não pode ir ao banheiro na primeira aula e quarta aulas e nem ir ao banheiro duas vezes na mesma aula. Essas regras são válidas também em relação ao beber água. Esses são alguns exemplos. O professor também deve cumprir certas regras, como não se ausentar da sala de aula, ser cuidadoso com as vestimentas e deve calar-se diante de “grosserias” de alunos para com ele. Tudo em nome da ordem, do relativamente correto. Foucault, afirma que o poder nas sociedades está ligado ao corpo e que é sobre o mesmo que são impostas limitações, obrigações e proibições. Dessa maneira, para o autor, surge a noção do corpo dócil, que pode ser utilizado, transformado em função do poder. Esse elemento intra-escolar, que é a disciplina, alimenta e alicerça a escola. Foucault define disciplina como um método que permite o controle das operações do corpo, que o submetem, impõe essa relação de docilidade-utilidade. O olhar hierárquico e uma punição “normalizadora” são exemplos de técnicas minuciosas que englobam o poder disciplinar, encaminhar à coordenação, observações em livros de registros e ocorrências, notas em boletins, avaliações, controle de frequência, estratégias e táticas utilizadas para que permaneça a “normalidade”. Os professores também fazem parte dessa forma estruturada de poder, como sujeito que obedece as regras e é pressionado pelo alcance de índices em avaliações monológicas “propostas” por instituições de poder aos alunos, que objetivam não a formação de um cidadão e nem ao menos de um vestibulando, mas sim, aquele que é passível de se vigiar e controlar. Os alunos são “medidos” por números de acertos em questões avaliativas que não refletem o que pensam e/ou o que realmente sabem ou sua capacidade. A arquitetura escolar proporciona um ambiente favorável às práticas de vigilância. Carteiras perfiladas, professor em um espaço reservado frente aos alunos, janelas com grades e câmeras em todos os ambientes, tudo para promover a “segurança” de todos em um sistema de controle hierárquico, vigilante. A intenção é poder controlar para que não haja a necessidade de punir, porém pune-se através de anotações em cadernetas, avaliações monológicas, notas, conselho de classe, mecanismos que compõem um sistema punitivo que engendra o sistema educacional. A questão disciplinar permeia todos os diálogos em meio a planejamento didático, comunicados, reuniões periódicas e até mesmo no momento de intervalo na sala dos professores, uma preocupação do cotidiano escolar. Nessa perspectiva: “[…] o poder e o saber produzidos pelas normas disciplinares são fundamentais para a organização burocrática. Em uma sociedade de instituições burocratizadas como a nossa, o poder disciplinar se desenvolve em todo tecido social”. (KRUPPA, 1994, p. 102). O poder disciplinador está direcionado para a escola, mecanismos de vigilância na construção do “saber” educacional, ensino através da vigilância e mecanismos disciplinarizadores a fim de moldar os alunos que participam do sistema escolar. Todos os anos as ações pedagógicas são revistas, tentativas de melhorias nos programas, novos materiais didáticos, projetos educacionais, inúmeras discussões sobre esses tópicos surgem em meio a reuniões, mas, tudo termina por ganhar uma roupagem diferenciada, o fundamento continua o mesmo, seguindo o padrão imposto por um poder controlador, que busca disciplinar os alunos, professores e demais profissionais da educação. Muitas vezes, durante as discussões sobre projetos a serem desenvolvidos com os alunos, são apresentadas propostas idealizadoras, com bom fundamento e função útil de aprendizado, mas no momento em que essas propostas interferem na estrutura da sala de aula, ou seja, algo que tem de ser desenvolvido fora do sistema padrão (lousa e giz, alunos perfilados). Mantem-se certa resistência de coordenadores, direção e até mesmo de alguns professores, pois os alunos vão “sair do controle”, da vigilância, do aparentemente local seguro. Assim sendo, continua-se com toda a idealização no papel e segue-se dominado pelo poder controlador. Para que toda essa disciplina se realize é necessário que haja um espaço onde os sujeitos possam ser vigiados, seus comportamentos visualizados para um melhor controle para que respeitem normas, um sistema punitivo com a função normalizadora. Sob essa ótica, a escola é vista como espaço útil e funcional, pois os alunos são distribuídos em salas de aula, separados pela idade, muitas vezes por nível de aprendizagem, comportamento, são dispostos em filas, tudo para uma melhor vigilância e controle, e nesse tipo de distribuição, o professor tem uma grande parcela de colaboração e culpa. A distribuição das salas em fileiras, alunos uniformizados, sempre em ordem, tem o objetivo de manter a obediência dos mesmos. A escola dessa maneira, sua estrutura física, muito parecida e comparada com a estrutura das prisões, não somente por Foucault, mas também pelos discursos dos alunos, pois num local onde não pode haver comunicação, portões fechados sem visibilidade, refeitório comunitário, câmeras, muros altos, janelas com grades e horários controlados como os de ir ao banheiro e beber água, não existe outro local com o qual se pode comparar a estrutura da escola que não seja a prisão. Esse poder disciplinador não é pertinente apenas na estrutura física da escola, mas também está presente no sistema interior e comportamental da escola, como a exigência do cumprimento de todo o horário de aula, para que professores e funcionários cumpram suas tarefas, produzam e assim, de forma hierárquica “obriguem” os alunos a se adequarem aso sistema, para que tudo funcione de maneira controlada e codificada, o controle do corpo, que requer que seja dócil como diz Foucault, dócil até mesmo em suas operações mínimas. Completamos que toda hierarquia de poder tem como fundamento o controle: “[…] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT, 1997, p. 153). O poder disciplinar não tem a intenção de reter forças e sim fazer uma interligação, multiplicação, utilização, consolidando-se através da vigilância hierárquica e outros meios de punição. A rigorosidade (juntamente com outras regulamentações) funciona como um sistema punitivo, como a permissão da entrada do aluno na escola somente se estiver uniformizado, a ausência do aluno da sala de aula, apenas se estiver com o crachá do professor, são normas de circulação para evitar os desvios das sob as regras escolares. Segundo Foucault, esse sistema punitivo acontece a partir de: […] micropenalidades do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseira, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). (FOUCAULT, 1977, p. 159). Quando transgridem a norma, a penalidade é consequente, conversas com os coordenadores, reunião com os pais, mudança de sala, ocorrência no livro escolar de ocorrências, prejuízo nas notas, em alguns casos, suspensão. Dessa maneira os alunos ficam receosos com relação às possíveis punições caso transgridam alguma das normas escolares. Dessa forma, temos uma eficácia das penalidades, e um funcionamento do sistema punitivo. Essas maneiras de punir são chamadas por Foucault de “gratificação-sanção”. Um sistema que consiste em premiar os alunos exemplares e tornar operante a correção dos alunos em sala de aula. O sistema visa a utilização de mais gratificações do que sanções, assim, os alunos indisciplinados procurariam com maior afinco recompensas e se afastariam das penalidades. Mas, há um ponto importante nesse aspecto a ser considerado; muitas vezes o aluno indisciplinado não dá importância ‘a premiações, pois não tem incentivo em sala de aula pelo próprio professor e também pela família que em muitos casos está desestruturada, o aluno não vê nenhuma perspectiva com relação à premiação proposta. Também esse sistema disciplinar que usa da premiação, acaba por comparar os melhores e os piores alunos e constrói uma relação de hierarquia de qualidades. Essa hierarquização vai além da comparação entre alunos, há também a comparação entre as salas, salas “boas” e salas “ruins”, são classificadas dessa maneira devido aos alunos que integram essas salas e que possuem essas classificações. O sistema disciplinar é pertinente também nas avaliações. Através desse tipo de sistema(poder), o professor conhece seus alunos, compara-os ,classifica-os, treina-os para normalizá-los. “O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e a sansão que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 1997, p. 164). As avaliações envolvem todo um esquema padronizado em sua estrutura, comportamento disciplinar e tempo. Durante a avaliação, os alunos devem estar perfilados, proibidos de qualquer conversa ou gesto e informados do horário de início da prova e término da mesma. Esse esquema de aplicação da avaliação reflete o poder, mostra o peso da disciplina na vida escolar. A avaliação permite comparar os alunos, analisá-los, obter um conhecimento sobre o aluno, suas aptidões, deficiências e a maneira como evolui ou desvia-se, mas, sempre ligado ao exercício de poder e não realmente ligado a um aprendizado dialógico. Assim, a escola juntamente com suas “técnicas” de disciplina faz com que seus alunos aceitem esse poder de punir e também de serem punidos. E, dessa forma, a escola fabrica, define o sujeito-aluno, supostamente à sua maneira são e também maduro, dentro dos padrões acordados com a sociedade de poder. Dessa forma, continuamos a indagarmo-nos se o sujeito-aluno está apto a libertar-se dessas algemas sociais padronizadas.O professor poderia ser a mola propulsora , o start inicial para uma possível libertação dessas algemas sociais e desvincunlar-se do que é de praxe, do que está enraigado em suas práticas automáticas forjadas pelo poder disciplinar , se não de maneira global, ao menos em partes que partilhem da mesma indignação educacional. Referências BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. : Hucitec. São Paulo,1992. FOCAULT, M. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete.23ª ed. Vozes. Rio de Janeiro, 2000. ___. O nascimento da clínica. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2006. ___. História da loucura. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1978. ___. Microfísica do poder. 15a Ed. Graal – RJ, 2000. ___. O que é a crítica? (crítica ou aufklarung). Trad. Antônio C. Galdino. IN: BIROLI, Flávia. ___. O homem e o discurso. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1994. ___. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège de France, Pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. Leituras Filosóficas. 11a Ed. Loyola. São Paulo, 2004. KRUPPA, S. Maria Portella. Sociologia da Educação. Cortez. São Paulo, 1994, p. 102. [1] Mestranda em Letras pelo Profletras – UNESP – Universidade Estadual Paulista FCL Assis -SP
- A moda de viola futurista: “Dois mil e um”
Rafael Marcurio da Cól Antes de começar o texto, convido o leitor a ouvir a canção que será o foco desta reflexão: “2001 (Dois Mil e Um) Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia Eu quase posso palpar, a minha vida que grita Emprenha e se reproduz, na velocidade da luz A cor do céu me compõe, o mar azul me dissolve A equação me propõe, computador me resolve Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia Amei a velocidade, casei com 7 planetas Por filho cor e espaço, não me tenho nem me faço A rota do ano luz, calculo dentro do passo Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis Nos braços de 2000 anos, eu nasci sem ter idade Sou casado, sou solteiro, sou baiano, estrangeiro Meu sangue é de gasolina, correndo não tenho mágoa Meu peito é de sal de fruta, fervendo num copo d’água Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia” (1969) Link para ouvir a canção no youtube: A canção “2001”, de autoria de Rita Lee e Tom Zé, compõe o álbum Mutantes (1969), da banda Os Mutantes e essa canção é tida, aqui, como mote de uma reflexão sobre o embate caipira e futurista que compõe a temática da canção, tanto no que concerne à letra quanto ao que se refere à música. Tal síncrese é um exemplo do estilo do grupo. A questão do estilo antropofágico d’Os Mutantes é foco da pesquisa desenvolvida no projeto de Iniciação Científica proposto por mim e sob orientação da Profª Dra. Luciane de Paula entre os anos de 2011 e 2013. No álbum em que “2001” se encontra, a banda tem mais composições e maior contato com músicos tropicalistas. Como a grande maioria das canções do álbum, essa traz uma mescla entre o estilo antropofágico tropicalista e uma versão brasileira da toada dos Beatles, pois engloba arranjos, letras e melodias que navegam entre esses dois universos e, mais que isso, coloca-os em diálogo numa mesma canção. Em “2001”, isso aparece de maneira marcante, pois chega a ser antagônica a mistura do rock proposto pela banda, com uma toada caipira, que dispõe da adesão do registro “caipira”, por meio da entonação, da reprodução forçada dos erres de modo geral, além dos solos de viola caipira e da segunda voz desempenhada por Tom Zé – ao estilo dupla de moda de viola. Apesar de ser um ritmo musical brasileiro, junto com ele, a importação do rock beatlemaníaco, aliada à postura irreverente performárica dos músicos faz toda a diferença na concepção e na execução da canção – o que constrói uma outra imagem de música brasileira. Esse é o ponto a ser pensado aqui. A canção “2001” demonstra como a Tropicália modificou o modo de fazer canção d’Os Mutantes, principalmente se se levar em consideração o começo da carreira desse grupo, para o segundo LP. Apesar da resistência, devido a alguns dogmas da própria banda, Rita Lee é a responsável por introduzir os ritmos nacionais às canções, por ter tido maior contato com os Tropicalistas, além de adequar, aos poucos, a banda à proposta neo-antropofágica que veio a caracterizá-la. Em “2001”, o tema é futurista e nacional ao mesmo tempo, dada a introdução do caipira, tradicional personagem da cultura brasileira, dentro de um livro de ficção científica, totalmente desconectado da vida no campo. Em contrapartida, a moda futurista d’Os Mutantes reflete a suposta vida do caipira de 2001 no espaço e compõe uma paródia do movimento caipira, visto como a “raíz” antiquada brasileira, especialmente se se considerar a imagem lobatiana preconceituosa do Jeca Tatu. Dentre os embates travados na canção, alguns elementos contraditórios se destacam como constitutivos da temática da canção, tais como: o velho e o novo, o rock e o sertanejo, o nacional e o global, contrastantes encontrados tanto na letra quanto no arranjo musical da canção. A forma abriga a temática e constitui o estilo d´Os Mutantes. O gênero canção é constituído por, pelo menos, letra e música. As canções tropicalistas, em específico, possuem arranjos elaborados, com maior instrumentação. A música (arranjo) sustenta a letra, no caso de “2001”, como se a letra fosse contaminada não só pela melodia e entoação do interprete, como também pelo arranjo, que funciona como elemento essencial de sua composição, por isso, o seu destaque ao seu papel na análise em questão. A primeira estrofe é o refrão da canção e pode ser vista como uma premissa de como seria a música caipira em 2001. Com os avanços tecnológicos, a vida no campo seria ampliada para o espaço. Por isso, ao invés de um pião, tem-se um “astronauta libertado” no infinito universo como sujeito caipira-futurista da canção. Durante a impostação de cantor de rock, é possível observar as novidades previstas para o ano de 2001, coisas mirabolantes como: o fim da morte, dentre outras coisas. Enquanto o caipira está no espaço, perdido no tempo, vivendo em outro planeta. O ritmo da canção se intercala (fica entre uma toada caipira e uma balada de rock) e embala uma paródia de moda caipira. A introdução e o primeiro refrão da canção são em ritmo caipira, com direito a instrumentos típicos, como viola, sanfona e chocalho, além de contar com a impostação vocal de Rita Lee, que remete a um cantor de música caipira, acompanhada pelo músico e compositor Tom Zé, que faz a segunda voz, constituindo assim uma dupla de rock-caipira. Depois de cantar duas partes da canção com o ritmo de rock, tem-se uma “virada psicodélica”, na qual os papeis são invertidos: a moda caipira toma conta da terceira parte da canção. Em seguida, o refrão é cantado e nas últimas três estrofes acontece a simbiose entre os ritmos. Nesse momento, é possível observar a síncrese dos dois elementos cancioneiros em um só momento da canção (e isso será aperfeiçoado nos LP’s seguintes, em outras canções). No campo da interação letra e música, a canção contrasta vários elementos que podem ser vistos como paradoxais, mas se unem em uma única harmonia, pois, apesar das alternâncias no decorrer da canção, o campo harmônico não muda, uma vez que as tensões são estabilizadas, o que demonstra o projeto estilístico da banda. Esta, por meio da antropofagia lítero-musical, reconstrói a música popular brasileira, com a sua marca autoral. Pode-se observar que, na canção, utiliza-se o registro caipira e algumas mudanças fonéticas ficam marcantes durante, principalmente, o refrão. Por isso, segue a escansão das duas frases enunciativas que o constituem. Nela (na escansão), percebe-se que os fones/tonemas grafados representam os alofones atualizados na entoação da canção em questão, os demais seguem o padrão fonológico da língua portuguesa, entretanto, carregados pela cadência da fala caipira: No primeiro refrão: 1ª frase: Na primeira frase é possível encontrar a palavra /as.tro.’naɽ.ta/, a qual é entoada com o erre retroflexo no lugar da semivogal [ w ], num processo de consonantização. Na palavra /kwal.’kɛ/ há a apócope da consoante retroflexa [ ɽ ], o que também remete à oralidade do universo caipira. Na segunda frase, observa-se a opção pelo “erre” retroflexo na palavra /’paɽ.’cei.ɾɔ/, em evidência pelos intérpretes exatamente para confirmar a fala do caipira futurista e a palavra /ga.’la.ʃa/ que sofre uma monotongação, marcando o modo caipira de se falar a língua portuguesa. Com os exemplos citados acerca das adequações fonéticas feitas ao entoar essa canção, pode-se perceber as pronúncias dos demais erres durante todo o refrão e ao longo da canção. Essas ênfases simbolizam o tom paródico da canção, a irreverência da banda ao tratar do que seria “atraso” (o caipira como símbolo do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato), colocado no futuro (em 2001), com síncrese entre o nacional popular e o global internacional, futurista. Em outras palavras, o caipira simboliza o Brasil. O Brasil “país do futuro” visto com o humor ácido da banda que traz a guitarra dos Beatles junto com elementos caseiros fabricados pela família do grupo, numa entoação “nacional” típica. Todos os fenômenos analisados são típicos do registro caipira e contribuem para a construção da canção. Esses fenômenos fonêmicos constatados são típicos da oralidade e marcam um grupo social específico, já citado por várias vezes nesse texto, o caipira, muitas vezes inferiorizado por ser considerado “atrasado”. A paródia feita pelos Mutantes relativiza o preconceito sarcástico ao valorizar a cultura caipira e os traz para a cena de maneira inovadora, sendo esta uma das propostas da Tropicália: uma simbiose entre a cultura nacional e a exterior. Num primeiro momento, não são todas e quaisquer culturas nacionais, são as renegadas que ganham destaque, exatamente para permitir que o público conheça a própria cultura, além do canônico samba e bossa-nova. Os fenômenos fonêmicos, junto com a repetição da entoação, colaboram com a musicalidade da canção, facilitando a fixação da letra. Os registros fonéticos demonstram a variedade oral da língua e isso fica claro na entoação performática dos cantores que utilizam três registros (alofones) diferentes para o mesmo fonema, representando a variação de cada região. Isso fica marcado na canção quando se muda o registro do caipira para o cantor de rock. O [ ɽ ] retroflexo do caipira é muito mais intenso do que o utilizado no rock, marcado, na maior parte das vezes, pelo [ɾ] alveolar. Na terceira vez que o refrão é cantado há a predominância do [ɾ] alveolar em quase todo o refrão, com exceção do [r] vibrante da palavra “reluzente”. Assim como há de duas a três vozes na canção, há de dois a três registros distintos atualizados na pronúncia entoativa do “erre”, símbolo da presença de dois a três grupos sociais diferentes, em convívio, na canção e na cultura brasileira. O “erre” retroflexo é bem marcado, talvez, por revelar o preconceito linguístico com relação ao grupo que o utiliza, pois o identifica como aquele que se encontra distante e, muitas vezes, às margens da sociedade, o que é criticado na canção por meio da ironia paródica. A negação do nacional e aceitação do que vem do exterior de forma passiva e pasteurizada é colocada em cheque pela banda ao trazer para o centro da cena essa variante linguística. A acidez e comicidade são armas utilizadas pelo grupo para questionar valores estereotipados estabelecidos e fazem isso, em 2001, também por meio da sua exaltada interpretação vocal. Outra questão a ser destacada é a participação de Tom Zé na segunda voz durante a toada caipira e a de Arnaldo que, por algumas vezes, assume a primeira voz. Uma característica recorrente da banda é a de não ter um vocalista fixo, uma vez que, Rita e Arnaldo estão sempre invertendo os vocais. Isso dá à banda um elemento diferencial e exótico, visto que traz dois timbres e tessituras distintas (homem/mulher) cantando a mesma melodia embalada pela mesma harmonia. Metaforicamente, pode-se pensar nessa característica como um caleidoscópio dentro de uma única canção, pois, como um prisma, consegue-se escutar mais de uma constituição/variação de banda, o que leva à visualização de imagens diferentes que podem ou não se repetir ao longo da canção ou até mesmo de sua obra. A melodia da primeira, da segunda e da terceira parte da canção se resume à repetição de uma mesma frase melódica, mesmo com a entrada de Arnaldo, não só como segunda voz, sempre ao final de cada parte, seguido de uma vocalização. Depois da primeira parte, Rita Lee e Tom Zé voltam a cantar o refrão pela segunda vez. Após a execução do segundo refrão, verifica-se a presença de elementos psicodélicos, como: efeitos de sonoplastia de buzinas, o sintetizador e vocalizações distorcidas, que remetem a uma “viagem”. Na terceira parte há o retorno à entoação caipira. Num primeiro momento, a melodia da canção é descendente e, no final da frase, ascendente. Além de conter dois intervalos grandes de oitava diminuta (8ª d), as partes são formadas de duas frases que têm a mesma harmonia e melodia, como se pode ver na escanção: 1ª Frase: Observa-se que as partes de ascendência melódica, destacadas em itálico na escanção, são os momentos em que Arnaldo assume a primeira voz, presente tanto na primeira quanto na segunda frase. Até, entre as frases, o desenho melódico é o mesmo, com a alteração da letra. A terceira parte é a única destacada, pois há a mudança para o registro caipira e os refrões do final são entoados como variantes do cantor de rock. Nesse momento, ocorre a mistura entre as duas performances, o que se aproxima do que se pode chamar de estilo antropofágico. Antes da mistura acontecer, tem-se a seguinte fala: “Tá ficando bão, né? Barbaridade, uai!”, por meio do registro caipira os interpretes aprovam a mistura antropofágica cancioneira proposta que ao longo do LP será desenvolvida. Ao longo da canção, o rock e o sertanejo estão separados e, ao final, unem-se numa síncrese antropofágica, ao tratarem do tema futurista da letra com tons e variações nacionais. Na interação letra e música, é possível perceber o elemento paradoxal colocado pela banda: a quebra da distancia entre as pessoas que só gostam de rock e as que só gostam de canções caipiras. Dessa forma é que Os Mutantes conquistam o reconhecimento de sua presença no cenário nacional, no primeiro festival da canção da TV Record. Com a mistura de ritmos e vozes, uma performance bem humorada, a acidez paródica e irônica de suas canções, Os Mutantes fincavam e fincaram os pés no cenário nacional da canção brasileira, garantindo seu nome da história – ao se falar de música brasileira, Os Mutantes são uma referência, dentre tantos outros nomes, tão expressivos quanto os deles. Em suma, pode-se considerar a canção “2001” como um divisor de águas na trajetória da banda, pois, a partir dela, a banda começa a compor canções com uma mistura cada vez maior da cultura popular com o rock. Com ela, a banda alcança o reconhecimento da crítica e do público. Efetivamente, Os Mutantes transformaram o modo como o rock do exterior reverberava dentro da cultura popular brasileira, encontrando um tom nacional para o mesmo, sem perder sua essência. Por isso, são conhecidos e chamados de “precursores do rock nacional”.
- A moda de viola futurista: “Dois mil e um”
Rafael Marcurio da Cól Antes de começar o texto, convido o leitor a ouvir a canção que será o foco desta reflexão: “2001 (Dois Mil e Um) Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia Eu quase posso palpar, a minha vida que grita Emprenha e se reproduz, na velocidade da luz A cor do céu me compõe, o mar azul me dissolve A equação me propõe, computador me resolve Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia Amei a velocidade, casei com 7 planetas Por filho cor e espaço, não me tenho nem me faço A rota do ano luz, calculo dentro do passo Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis Nos braços de 2000 anos, eu nasci sem ter idade Sou casado, sou solteiro, sou baiano, estrangeiro Meu sangue é de gasolina, correndo não tenho mágoa Meu peito é de sal de fruta, fervendo num copo d’água Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia” (1969) Link para ouvir a canção no youtube: A canção “2001”, de autoria de Rita Lee e Tom Zé, compõe o álbum Mutantes (1969), da banda Os Mutantes e essa canção é tida, aqui, como mote de uma reflexão sobre o embate caipira e futurista que compõe a temática da canção, tanto no que concerne à letra quanto ao que se refere à música. Tal síncrese é um exemplo do estilo do grupo. A questão do estilo antropofágico d’Os Mutantes é foco da pesquisa desenvolvida no projeto de Iniciação Científica proposto por mim e sob orientação da Profª Dra. Luciane de Paula entre os anos de 2011 e 2013. No álbum em que “2001” se encontra, a banda tem mais composições e maior contato com músicos tropicalistas. Como a grande maioria das canções do álbum, essa traz uma mescla entre o estilo antropofágico tropicalista e uma versão brasileira da toada dos Beatles, pois engloba arranjos, letras e melodias que navegam entre esses dois universos e, mais que isso, coloca-os em diálogo numa mesma canção. Em “2001”, isso aparece de maneira marcante, pois chega a ser antagônica a mistura do rock proposto pela banda, com uma toada caipira, que dispõe da adesão do registro “caipira”, por meio da entonação, da reprodução forçada dos erres de modo geral, além dos solos de viola caipira e da segunda voz desempenhada por Tom Zé – ao estilo dupla de moda de viola. Apesar de ser um ritmo musical brasileiro, junto com ele, a importação do rock beatlemaníaco, aliada à postura irreverente performárica dos músicos faz toda a diferença na concepção e na execução da canção – o que constrói uma outra imagem de música brasileira. Esse é o ponto a ser pensado aqui. A canção “2001” demonstra como a Tropicália modificou o modo de fazer canção d’Os Mutantes, principalmente se se levar em consideração o começo da carreira desse grupo, para o segundo LP. Apesar da resistência, devido a alguns dogmas da própria banda, Rita Lee é a responsável por introduzir os ritmos nacionais às canções, por ter tido maior contato com os Tropicalistas, além de adequar, aos poucos, a banda à proposta neo-antropofágica que veio a caracterizá-la. Em “2001”, o tema é futurista e nacional ao mesmo tempo, dada a introdução do caipira, tradicional personagem da cultura brasileira, dentro de um livro de ficção científica, totalmente desconectado da vida no campo. Em contrapartida, a moda futurista d’Os Mutantes reflete a suposta vida do caipira de 2001 no espaço e compõe uma paródia do movimento caipira, visto como a “raíz” antiquada brasileira, especialmente se se considerar a imagem lobatiana preconceituosa do Jeca Tatu. Dentre os embates travados na canção, alguns elementos contraditórios se destacam como constitutivos da temática da canção, tais como: o velho e o novo, o rock e o sertanejo, o nacional e o global, contrastantes encontrados tanto na letra quanto no arranjo musical da canção. A forma abriga a temática e constitui o estilo d´Os Mutantes. O gênero canção é constituído por, pelo menos, letra e música. As canções tropicalistas, em específico, possuem arranjos elaborados, com maior instrumentação. A música (arranjo) sustenta a letra, no caso de “2001”, como se a letra fosse contaminada não só pela melodia e entoação do interprete, como também pelo arranjo, que funciona como elemento essencial de sua composição, por isso, o seu destaque ao seu papel na análise em questão. A primeira estrofe é o refrão da canção e pode ser vista como uma premissa de como seria a música caipira em 2001. Com os avanços tecnológicos, a vida no campo seria ampliada para o espaço. Por isso, ao invés de um pião, tem-se um “astronauta libertado” no infinito universo como sujeito caipira-futurista da canção. Durante a impostação de cantor de rock, é possível observar as novidades previstas para o ano de 2001, coisas mirabolantes como: o fim da morte, dentre outras coisas. Enquanto o caipira está no espaço, perdido no tempo, vivendo em outro planeta. O ritmo da canção se intercala (fica entre uma toada caipira e uma balada de rock) e embala uma paródia de moda caipira. A introdução e o primeiro refrão da canção são em ritmo caipira, com direito a instrumentos típicos, como viola, sanfona e chocalho, além de contar com a impostação vocal de Rita Lee, que remete a um cantor de música caipira, acompanhada pelo músico e compositor Tom Zé, que faz a segunda voz, constituindo assim uma dupla de rock-caipira. Depois de cantar duas partes da canção com o ritmo de rock, tem-se uma “virada psicodélica”, na qual os papeis são invertidos: a moda caipira toma conta da terceira parte da canção. Em seguida, o refrão é cantado e nas últimas três estrofes acontece a simbiose entre os ritmos. Nesse momento, é possível observar a síncrese dos dois elementos cancioneiros em um só momento da canção (e isso será aperfeiçoado nos LP’s seguintes, em outras canções). No campo da interação letra e música, a canção contrasta vários elementos que podem ser vistos como paradoxais, mas se unem em uma única harmonia, pois, apesar das alternâncias no decorrer da canção, o campo harmônico não muda, uma vez que as tensões são estabilizadas, o que demonstra o projeto estilístico da banda. Esta, por meio da antropofagia lítero-musical, reconstrói a música popular brasileira, com a sua marca autoral. Pode-se observar que, na canção, utiliza-se o registro caipira e algumas mudanças fonéticas ficam marcantes durante, principalmente, o refrão. Por isso, segue a escansão das duas frases enunciativas que o constituem. Nela (na escansão), percebe-se que os fones/tonemas grafados representam os alofones atualizados na entoação da canção em questão, os demais seguem o padrão fonológico da língua portuguesa, entretanto, carregados pela cadência da fala caipira: No primeiro refrão: 1ª frase: Na primeira frase é possível encontrar a palavra /as.tro.’naɽ.ta/, a qual é entoada com o erre retroflexo no lugar da semivogal [ w ], num processo de consonantização. Na palavra /kwal.’kɛ/ há a apócope da consoante retroflexa [ ɽ ], o que também remete à oralidade do universo caipira. Na segunda frase, observa-se a opção pelo “erre” retroflexo na palavra /’paɽ.’cei.ɾɔ/, em evidência pelos intérpretes exatamente para confirmar a fala do caipira futurista e a palavra /ga.’la.ʃa/ que sofre uma monotongação, marcando o modo caipira de se falar a língua portuguesa. Com os exemplos citados acerca das adequações fonéticas feitas ao entoar essa canção, pode-se perceber as pronúncias dos demais erres durante todo o refrão e ao longo da canção. Essas ênfases simbolizam o tom paródico da canção, a irreverência da banda ao tratar do que seria “atraso” (o caipira como símbolo do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato), colocado no futuro (em 2001), com síncrese entre o nacional popular e o global internacional, futurista. Em outras palavras, o caipira simboliza o Brasil. O Brasil “país do futuro” visto com o humor ácido da banda que traz a guitarra dos Beatles junto com elementos caseiros fabricados pela família do grupo, numa entoação “nacional” típica. Todos os fenômenos analisados são típicos do registro caipira e contribuem para a construção da canção. Esses fenômenos fonêmicos constatados são típicos da oralidade e marcam um grupo social específico, já citado por várias vezes nesse texto, o caipira, muitas vezes inferiorizado por ser considerado “atrasado”. A paródia feita pelos Mutantes relativiza o preconceito sarcástico ao valorizar a cultura caipira e os traz para a cena de maneira inovadora, sendo esta uma das propostas da Tropicália: uma simbiose entre a cultura nacional e a exterior. Num primeiro momento, não são todas e quaisquer culturas nacionais, são as renegadas que ganham destaque, exatamente para permitir que o público conheça a própria cultura, além do canônico samba e bossa-nova. Os fenômenos fonêmicos, junto com a repetição da entoação, colaboram com a musicalidade da canção, facilitando a fixação da letra. Os registros fonéticos demonstram a variedade oral da língua e isso fica claro na entoação performática dos cantores que utilizam três registros (alofones) diferentes para o mesmo fonema, representando a variação de cada região. Isso fica marcado na canção quando se muda o registro do caipira para o cantor de rock. O [ ɽ ] retroflexo do caipira é muito mais intenso do que o utilizado no rock, marcado, na maior parte das vezes, pelo [ɾ] alveolar. Na terceira vez que o refrão é cantado há a predominância do [ɾ] alveolar em quase todo o refrão, com exceção do [r] vibrante da palavra “reluzente”. Assim como há de duas a três vozes na canção, há de dois a três registros distintos atualizados na pronúncia entoativa do “erre”, símbolo da presença de dois a três grupos sociais diferentes, em convívio, na canção e na cultura brasileira. O “erre” retroflexo é bem marcado, talvez, por revelar o preconceito linguístico com relação ao grupo que o utiliza, pois o identifica como aquele que se encontra distante e, muitas vezes, às margens da sociedade, o que é criticado na canção por meio da ironia paródica. A negação do nacional e aceitação do que vem do exterior de forma passiva e pasteurizada é colocada em cheque pela banda ao trazer para o centro da cena essa variante linguística. A acidez e comicidade são armas utilizadas pelo grupo para questionar valores estereotipados estabelecidos e fazem isso, em 2001, também por meio da sua exaltada interpretação vocal. Outra questão a ser destacada é a participação de Tom Zé na segunda voz durante a toada caipira e a de Arnaldo que, por algumas vezes, assume a primeira voz. Uma característica recorrente da banda é a de não ter um vocalista fixo, uma vez que, Rita e Arnaldo estão sempre invertendo os vocais. Isso dá à banda um elemento diferencial e exótico, visto que traz dois timbres e tessituras distintas (homem/mulher) cantando a mesma melodia embalada pela mesma harmonia. Metaforicamente, pode-se pensar nessa característica como um caleidoscópio dentro de uma única canção, pois, como um prisma, consegue-se escutar mais de uma constituição/variação de banda, o que leva à visualização de imagens diferentes que podem ou não se repetir ao longo da canção ou até mesmo de sua obra. A melodia da primeira, da segunda e da terceira parte da canção se resume à repetição de uma mesma frase melódica, mesmo com a entrada de Arnaldo, não só como segunda voz, sempre ao final de cada parte, seguido de uma vocalização. Depois da primeira parte, Rita Lee e Tom Zé voltam a cantar o refrão pela segunda vez. Após a execução do segundo refrão, verifica-se a presença de elementos psicodélicos, como: efeitos de sonoplastia de buzinas, o sintetizador e vocalizações distorcidas, que remetem a uma “viagem”. Na terceira parte há o retorno à entoação caipira. Num primeiro momento, a melodia da canção é descendente e, no final da frase, ascendente. Além de conter dois intervalos grandes de oitava diminuta (8ª d), as partes são formadas de duas frases que têm a mesma harmonia e melodia, como se pode ver na escanção: 1ª Frase: Observa-se que as partes de ascendência melódica, destacadas em itálico na escanção, são os momentos em que Arnaldo assume a primeira voz, presente tanto na primeira quanto na segunda frase. Até, entre as frases, o desenho melódico é o mesmo, com a alteração da letra. A terceira parte é a única destacada, pois há a mudança para o registro caipira e os refrões do final são entoados como variantes do cantor de rock. Nesse momento, ocorre a mistura entre as duas performances, o que se aproxima do que se pode chamar de estilo antropofágico. Antes da mistura acontecer, tem-se a seguinte fala: “Tá ficando bão, né? Barbaridade, uai!”, por meio do registro caipira os interpretes aprovam a mistura antropofágica cancioneira proposta que ao longo do LP será desenvolvida. Ao longo da canção, o rock e o sertanejo estão separados e, ao final, unem-se numa síncrese antropofágica, ao tratarem do tema futurista da letra com tons e variações nacionais. Na interação letra e música, é possível perceber o elemento paradoxal colocado pela banda: a quebra da distancia entre as pessoas que só gostam de rock e as que só gostam de canções caipiras. Dessa forma é que Os Mutantes conquistam o reconhecimento de sua presença no cenário nacional, no primeiro festival da canção da TV Record. Com a mistura de ritmos e vozes, uma performance bem humorada, a acidez paródica e irônica de suas canções, Os Mutantes fincavam e fincaram os pés no cenário nacional da canção brasileira, garantindo seu nome da história – ao se falar de música brasileira, Os Mutantes são uma referência, dentre tantos outros nomes, tão expressivos quanto os deles. Em suma, pode-se considerar a canção “2001” como um divisor de águas na trajetória da banda, pois, a partir dela, a banda começa a compor canções com uma mistura cada vez maior da cultura popular com o rock. Com ela, a banda alcança o reconhecimento da crítica e do público. Efetivamente, Os Mutantes transformaram o modo como o rock do exterior reverberava dentro da cultura popular brasileira, encontrando um tom nacional para o mesmo, sem perder sua essência. Por isso, são conhecidos e chamados de “precursores do rock nacional”.
- A construção do (não)-álibi de si: a (não)-maquiagem como construção sócio-histórico-social da mulhe
Luciane de Paula e Ana Paula Lopes Cardoso “A busca pela perfeição é construída de acordo com a cultura. Nós vemos isso de forma pessoal e, se não somos perfeitos, é nossa culpa. Algumas são mais influenciadas do que outras, capazes de buscarem medidas extremas para terem a certeza de que são vistas como perfeitas, mas devemos ver isso como uma doença, não uma virtude. Precisamos parar de elogiar aqueles que alcançam padrões próximos à perfeição porque, quando o fazemos, encorajamos essa busca.” (Robin Rice, escritora britânica idealizadora do projeto Stop The Beauty Madness, que se tornou desafio nas redes socais) Ao refletir um pouco acerca da importância do físico em nossa vida cotidiana, nós nos colocamos a pensar sobre o papel que os cosméticos adquiriram na contemporaneidade. Ao estarmos, de certa maneira, imersas nesse universo, a partir da e graças à Pesquisa de Iniciação Científica intitulada “NATURA CHRONOS E AVON RENEW: a conquista do telespectador por meio de discursos opostos” (apoio FAPESP), acabamos por nos interessar por esse assunto, que muito tem nos inquietado. Mais do que isso até, talvez, a questão principal das nossas reflexões seja o julgamento que recai sobre as pessoas a partir do momento em que decidem mudar algo em seu aspecto físico que, de um jeito ou de outro, não lhes faz sentir bem por pressão social – a busca do corpo “perfeito”, estereotipado. Como norte das reflexões aqui apresentadas e também como uma maneira de “pensar na prática” a respeito dos conceitos de construção (sempre social) dos sujeitos (o que envolve a questão da identidade e, claro, a da cultura), responsabilidade, ética e cronotopo, pensados pelo Círculo de Bakhtin, fundamentação teórico-metodológica a partir da qual aprofundamos as análises de peças publicitárias em nossa Pesquisa de Iniciação Científica, decidimos pensar na questão do “make” na influência da constituição das mulheres, a partir de uma peça publicitária da Natura e do desafio #StopTheBeautyMadness. A ideia é, com base em nossa atualidade e nas experiências vividas até aqui, refletirmos, a partir de um artigo (chamado “A estética da propaganda televisiva: o caso de Natura ´Una´”[1]) que escrevemos há dois anos, pensarmos a produção da beleza feminina, ou melhor, de determinado padrão aceito e almejado como “belo”, em detrimento de outras características reais e humanas. Pensando nisso também, Robin Rice propôs um projeto social denominado Stop the beauty madness (em português, Parem com a loucura da beleza), constituído por uma série de anúncios criados para chocar ao mostrar o que existiria por trás de tradicionais campanhas publicitárias (veja: http://www.stopthebeautymadness.com/). Ela define o seu projeto como social com os seguintes dizeres: “Bastam aos padrões impossíveis. Basta à imagem ideal. Além de tudo, basta ao sentimento de não se sentir o bastante quando se trata da nossa beleza. Chegou o momento em que uma cultura inteira de mulheres já se cansou”. Mais do que defender os diversos tipos de beleza, Rice ataca a preocupação por padrões inatingíveis: “Todo o foco é na aparência. E a educação? E a personalidade? E se fizer um bom trabalho no mundo?”, pergunta a britânica, segundo a Revista Claudia (contraditoriamente, uma das revistas que muito se volta à produção de padrões estereotipados de beleza e de satisfação sexual voltada aos homens). Enquanto a peça publicitária da Natura Una traz manifestações culturais diversas para justificar a “naturalização” (produzida artificialmente pela mídia e incorporada por todos) do uso de maquiagem, o desafio lançado por Rice ganha as redes sociais, na contramão da indústria da beleza, muitas vezes, inclusive, de maneira não compreendida, já que a campanha aparece também transformada em desafio que, não cumprido, deve ser pago com cosmético! O interessante é como a escritora britânica utiliza anúncios publicitários para propor uma reflexão acerca da produção da beleza, manifestada pela própria publicidade. Ela utiliza o mesmo gênero discursivo para, a partir e por meio dele, denunciar a sua função. Segundo ela, em entrevista à Revista Claudia, ao responder sobre “Como a publicidade controla nossos pensamentos e reforça padrões” de beleza inatingíveis e artificiais, bem como se “Há um culpado”, diz: “Imagens repetidas são uma forma de educação. Quando vemos algo repedidas vezes começamos a acreditar que é a realidade; o que não é. Mas nós naturalmente queremos fazer parte desse mundo – que eles fazem parecer convidativo e adorável – e sentimos que estamos fora do padrão, que devemos mudar para sermos aceitos. O problema é que esse ´mundo´ não existe de verdade fora das revistas. (…) Se o dinheiro é o ponto de partida, e é, e a publicidade é como se faz dinheiro, a culpa tem que vir dela. Entretanto, ter um culpado não nos ajudará. Cada mulher tem que decidir por ela mesma que deve ter sua própria ideia de beleza e verdade para que isso mude.” Apenas para comparar, como um exemplo, a produção de estereótipos de beleza, questionada por Rice, partimos de um comercial da Natura (poderia ser qualquer outro, de qualquer marca. Há peças publicitárias, inclusive, mais explícitas que a aqui selecionada ao que se refere à imagem estereotipada). Todavia, como o projeto de Rice tornou-se um desafio e ficou conhecido voltado, mais especificamente, ao uso de cosméticos (o que reduz a amplitude do projeto original, que diz respeito a diversos aspectos – como a anorexia, a obesidade, o racismo, a objetificação do corpo feminino etc), optamos por um comercial volta que se volta ao usos de cosméticos. A Natura foi a marca eleita por trabalharmos com ela em nossa pesquisa. O vídeo da peça é Esta é a peça de lançamento da linha de maquiagem Una, propagada como altamente tecnológica. Na primeira parte dessa propaganda são apresentados diferentes povos, representantes de suas culturas, em rituais caracterizados pela pintura do rosto, como mostram as imagens abaixo. Observamos a africana, a indígena, a “clássica” asiática (bailarina russa), a japonesa, a chinesa, a brasileira e a hindu (indiana): Esses “makes” são embalados pelo som intenso de tambores que remete ao universo tribal de diversos povos. Ainda na primeira parte dessa peça, as cenas revelam o resultado da arte (a pintura) que as mulheres acabaram de fazer em seus corpos (especificamente em seus rostos), como é possível perceber nas imagens que seguem: Depois de apresentar tantas culturas, com seus rituais de “pintura da cara” (do corpo), como características comuns de tantos povos espalhados pelo mundo, a propaganda chega ao seu ponto principal: a pergunta, posicionada pela marca, no meio da propaganda, centralizada numa tela preta, como mostra a imagem: A pergunta “De onde vem essa sua vontade de pintar a cara?” instaura na telespectadora (sim, no feminino, pois a peça é dirigida às mulheres e só apresenta mulheres como sujeitos-personagens em seu interior) um momento de reflexão que, com a sequência de cenas anteriormente exibidas, já carrega em si a resposta desejada: pintar o corpo (rosto) é um ato sócio-histórico-cultural. A justificativa que a telespectadora precisa para poder, num álibi pré-construído no interior da própria propaganda (que tem por objetivo central vender maquiagem de sua marca), convencer-se e persuadir-se acerca da “naturalidade” do uso da pintura no rosto, como algo “ancestral” e de muitas culturas, como marca identitária de feminilidade, está presente na construção de toda a primeira parte da peça. Como se a peça colaborasse (por pressuposição) para que a resposta à pergunta feita no anúncio fosse “a minha vontade de pintar a cara vem da minha história e do meu desejo ancestral de liberdade. Essa é a minha vontade de ser quem sou, independente de qualquer coisa. Esse é um desejo meu e faz parte da minha história e da minha cultura”. Perguntamos: será? Pensemos juntos. O ato de maquiar-se é colocado na peça não só como um ritual de beleza, mas também como um ritual sócio-histórico-cultural. Isso justifica a liberdade de usar maquiagem? E o que isso tem a ver com o “desafio” lançado na internet, via redes sociais (especificamente no facebook), para que as mulheres “postem” “selfies” sem maquiagem? O que a “verdadeira face”, do rosto limpo, tem a ver com a “artificialidade” do “make” que tenta fazer das mulheres “Barbies” reais (ver: https://www.youtube.com/watch?v=Na_7QDkGmXU) e incute nas mentes das meninas, desde a infância, ser este o modelo padrão de beleza a ser seguido (quase que como uma seita – seita que estimula doenças de distúrbios alimentares a ponto de sites “ANAs”, assim conhecidos os chamados sites que estimulam o “estilo de vida” – assim denominado por seus idealizadores e seguidores – anorexo)? O ato de usar ou não maquiagem, seja ela qual for, cai em discussão exatamente por passar por questões identitárias de modelos de feminilidade, beleza e ousadia (no caso, o não-uso da pintura no rosto, dentre outras questões). A ditadura da beleza passa pelo “make” (ainda que não se circunscreva apenas a ele, obviamente) e isso tem a ver com preconceitos vividos no “mundo real”, como ocorre com o alisamento de cabelos e obesidade (desrespeitando as belezas pessoais e culturais dos sujeitos, tomados em sua heterogeneidade, em prol de um padrão, tomado como “único” aceitável). Tais questões também são contempladas no projeto de Rice, ainda que muita gente que assuma o desafio no facebook possa sequer conhecer, de fato, o projeto em si e achar que ele (o desafio) não passa de uma “brincadeira de corrente” entre amigos. Alguns exemplos de anúncios que tocam (por meio do choque) em questões de beleza que vão além do “make”: Mas, voltemos à peça publicitária, mote de nossas reflexões. Depois do momento central da propaganda, sua outra metade é destinada à apresentação dos produtos anunciados, momento em que uma mulher, já sem marca cultural identitária [podemos supor a brasileira, uma vez que a marca se volta a esse público e nicho de mercado, mas também podemos pensar na homogeneidade da beleza instaurada, de maneira padronizada – branca, magra, cabelos longos (só faltou serem loiros) e lisos, olhos grandes, lábios carnudos – que apaga marcas culturais e desrespeita a riqueza heterogênea da diversidade da(s) beleza(s)], passa pelo ritual de “pintar a cara”, como dito no questionamento anterior, promovendo a relação entre ela, que seguirá “se pintando” com os produtos de Natura Una, e a torcedora brasileira de “cara pintada”, apresentada nas primeiras imagens. Aliás, as expressões “pintar a cara” e “cara pintada” nos fazem viajar pelo tempo e remetem tanto ao ritual festivo de jogos (pela presença da torcedora de “cara pintada” apresentada no início da propaganda e pela expressão que tem sido muito veiculada pela mídia como típica da “guerra” esportiva) quanto à passeata dos “caras pintadas” de 1992, que conquistou o impeachment de Collor. Ainda que tenha havido um deslize de sentido que modifica totalmente a expressão “cara pintada”, do universo político ao universo esportivo e, agora, ao da beleza, inevitável desconsiderar o cenário político brasileiro e pensar qual a relação entre tais mundos. Poderia ser considerado um ato político o de “pintar a cara”? Um ato ritual? Um ato guerreiro (como voltou a ocorrer nas manifestações, muito mais mascaradas que pintadas, mas também pintadas, em junho de 2013)? Talvez, a ideia seja a de cruzar esses universos e colocar a mulher como uma guerreira festiva (torcedora), mas, sabemos o quão diferentes são o ato de “pintar a cara” e sair às ruas para se manifestar e protestar (dando a “cara a tapa” a policiais etc), o ato de “pintar a cara” para torcer por um time e o ato de “pintar a cara” com maquiagem, como ocorre nas imagens da segunda metade do comercial. Podemos até remeter à guerra da beleza e da sedução, mas a esfera não é a mesma e os sentidos, completamente diferentes. Estaria a Natura tentando atribuir sentidos diferentes ao ato de se maquiar para convencer a telespectadora de que esse não seria (ou não é) um ato simples de ritual de sedução e beleza, com argumentos precedentes calcados na história? Parece-nos que sim. E, de certa forma, guardadas as devidas proporções e com o devido cuidado, pintar o rosto é, de fato, um ato sócio-histórico-cultural. E, dependendo da cultura, do tempo e do espaço, não apenas feminino (como faz crer a peça publicitária pelos registros apresentados na primeira parte do comercial). O ponto é: a peça publicitária transforma um “make” num ato político, guerreiro, festivo ao resgatar o caráter histórico do ato de “pintar a cara”, ao trazer, de certa forma, à sua telespectadora e às mulheres brasileiras, a justificativa “segura” acerca da “importância” e da “necessidade” da mulher se maquiar. Necessidade fetichista (Marx), calcada em exemplos de tempo-espaço e esferas distintas – basta comparar as pinturas da primeira e as da segunda parte da peça. Na segunda metade do vídeo da Natura, a música tem um tom mais calmo e sereno e isso embala o “novo” jeito de “pintar a cara”, reinventado pela marca: o ato de se maquiar. Não uma maquiagem qualquer, mas sedutora (o batom é vermelho, os olhos são escuros e o olhar da modelo direto para a tela é um convite à telespectadora para que seja seu espelho – imagem e semelhança sócio-histórico-cultural da beleza e da feminilidade da mulher brasileira, “naturalmente” sensual) e de última geração (produzida com tecnologia de ponta, para uma mulher “antenada” ao seu tempo-espaço). Enfim, uma maquiagem Natura: A produção da peça é belíssima (aliás, as propagandas da Natura, em geral, são muito bem construídas), sutil, sem a apelação direta à venda imperativa (em momento algum há menção verbal explícita ao consumo dos produtos). Toda essa diluição faz com que quase nos esqueçamos do fato de se tratar da venda de um produto e de uma marca. Mas, como analistas que estudam discursos publicitários, sabemos que esse é o grande jogo e intuito da peça. Mais que isso, nós nos colocamos a refletir sobre a condição de ser mulher na contemporaneidade e, em especial, no Brasil, um dos países onde mais cresce o mercado de consumo de cosméticos (ultimamente denominados como “tratamento” – para alguém doente? A falta de maquiagem, a “cara limpa” revela um sujeito “doente”?) no mundo, segundo dados estatísticos, visto como filão para muitas marcas, estrangeiras e de renome internacional, inclusive, que passaram e têm passado, cada vez mais, a investir no país, dada a possibilidade de alta lucratividade. Com isso, pensamos sobre o que significa, no Brasil, ser mulher e a constante necessidade de se adequar e justificar perante a sociedade patriarcal em que vivemos. Precisamos mesmo de maquiagem para sermos vistas como somos? Respeitadas como seres humanos? E, se quisermos usar maquiagem, isso faz de nós “fúteis”? Nada disso. Calcadas em Bakhtin, sabemos, o sujeito não tem álibi na existência e precisa assumir seus atos, sejam eles quais forem. Estar de “cara limpa” ou “pintada” não diz tudo sobre uma mulher porque ser mulher é mais que isso. Ser humano é mais que isso. O desafio realizado a partir do projeto de Rice e que tem circulado com veemência nas redes sociais também nos fez pensar nessa questão, como um paradoxo à peça da Natura aqui brevemente analisada. Se, por um lado, a peça quer criar uma necessidade ilusória de que mulheres precisam “pintar a cara” para serem sujeitos sócio-histórico-culturais reconhecidos como tal; por outro, o desafio do facebook também construiu um sentido de que “mulher que é mulher não se esconde atrás da maquiagem”, mostra a sua face, limpa, a todos. Claro que essa foi uma metáfora para pensarmos acerca do ato caraterizado pelo álibi de se esconder – não necessariamente atrás da maquiagem, mas também por meio dela. Não acreditamos que a questão seja usar ou não maquiagem, mas assumir-se, com responsabilidade. Ter postura e caráter. E isso vai muito além do “make”. Claro, esse ato de se assumir (com ou sem maquiagem, mas como sujeito que se constitui como alguém que é muito mais que um corpo produzido), sim, é um ato sócio-histórico-cultural como o colocado na primeira parte do comercial da Natura. Os atos dos sujeitos fazem a história na história, de maneira viva. E, talvez, na contemporaneidade, as mulheres, com tanto bombardeio cosmético e plástico da indústria da beleza, para se assumirem e lutarem contra essa ditadura mítica artificial e homogeneizada, limpem seus rostos. Esse passa a ser, então, mais que um desafio internético, um ato político, muito mais próximo àquele realizado, em outra esfera e de outra forma, pelos “caras pintadas” das passeatas de 1992. Agora, o impeachment não se refere a um presidente, mas à indústria que quer incutir em nós uma necessidade artificial desnecessária e ao patriarcado que ainda impera e nos escraviza. Não somos mais ou menos mulheres por estarmos ou não maquiadas. Até porque, somos mais que reles rostinhos bonitos! Nesse sentido, o que nos fica como desafio não é usar ou não maquiagem, mas pensar sobre o quanto ainda a mulher está fadada a ser vista como objeto e precisa se libertar de rótulos e assumir quem ela é, não por estereótipos, mas por pensar em sua postura como sujeito que, mais que indivíduo, vive e é constituído por signos ideológicos, na e pela linguagem, pela e na sociedade. Não uma sociedade qualquer, mas uma sociedade patriarcal. Ela pode até escolher servir ao paradigma machista, mas ela tem de assumir que essa escolha a coloca em dada condição, sem vitimização e, se não é isso o que quer, precisa se posicionar assumindo o bônus e o ônus de que ainda há muito a refletir, a lutar e a mudar, para além do que se espera de uma mulher, mas por ser mulher que pensa, escolhe e age de acordo com suas convicções e deve ser respeitada, seja a escolha feita qual for. Afinal, como bem respondeu Rice, ao ser questionada sobre a beleza: “Beleza não é o problema, é maravilhoso! Mas uma definição singular dela que, virtualmente, faz todas as mulheres se sentirem terríveis, é um problema”. Somos todos belos em nossa humanidade “defeituosa”. E se não suportamos nos ver e que nos vejam como somos, há algo de muito errado que precisa ser repensado, não apenas em cada um de nós, mas também numa sociedade que incentiva e aplaude esse espetáculo dos horrores em que meninas tornam-se bonecas para se sentirem “princesas” e se tornarem celebridades instantâneas com tais atos, admirados por muitos. Numa sociedade narcísica, ainda precisamos do aval do outro. A questão é, que outro e que aval? Precisamos refletir sobre tais questões e que este breve texto possa servir como um ato de quem tirou a maquiagem e se expôs, como as autoras. Afinal, estar “de cara limpa” significa mais que tirar a maquiagem. Significa não se omitir de seus princípios, assumir suas posturas e “dar a cara a tapa” ao se manifestar, seja do jeito que for. Terminamos com uma citação (contra as normas da “boa” escrita padrão – exatamente por estarmos nos posicionando contra as homogeneidades) porque fazemos nossas, as reflexões apontadas por Bakhtin/Volochinov quando (em Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1997, p. 46) afirma que “O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” e o que determina essa relação do ser no signo é “O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma continuidade semiótica, ou seja: a luta de classes”. Por isso, escolher como se constituir não é uma mera opção individual livre, uma vez que nossa “liberdade” esbarra na constituição da linguagem, que nos compõe e faz humanos (repletos de “makes” sociais). [1] PAULA, L. d.; CARDOSO, A. P. L.. Nosso Ato Responsável. 1ª. ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. 596p. #beleza #ideologia #propaganda
- A construção do (não)-álibi de si: a (não)-maquiagem como construção sócio-histórico-social da mulhe
Luciane de Paula e Ana Paula Lopes Cardoso “A busca pela perfeição é construída de acordo com a cultura. Nós vemos isso de forma pessoal e, se não somos perfeitos, é nossa culpa. Algumas são mais influenciadas do que outras, capazes de buscarem medidas extremas para terem a certeza de que são vistas como perfeitas, mas devemos ver isso como uma doença, não uma virtude. Precisamos parar de elogiar aqueles que alcançam padrões próximos à perfeição porque, quando o fazemos, encorajamos essa busca.” (Robin Rice, escritora britânica idealizadora do projeto Stop The Beauty Madness, que se tornou desafio nas redes socais) Ao refletir um pouco acerca da importância do físico em nossa vida cotidiana, nós nos colocamos a pensar sobre o papel que os cosméticos adquiriram na contemporaneidade. Ao estarmos, de certa maneira, imersas nesse universo, a partir da e graças à Pesquisa de Iniciação Científica intitulada “NATURA CHRONOS E AVON RENEW: a conquista do telespectador por meio de discursos opostos” (apoio FAPESP), acabamos por nos interessar por esse assunto, que muito tem nos inquietado. Mais do que isso até, talvez, a questão principal das nossas reflexões seja o julgamento que recai sobre as pessoas a partir do momento em que decidem mudar algo em seu aspecto físico que, de um jeito ou de outro, não lhes faz sentir bem por pressão social – a busca do corpo “perfeito”, estereotipado. Como norte das reflexões aqui apresentadas e também como uma maneira de “pensar na prática” a respeito dos conceitos de construção (sempre social) dos sujeitos (o que envolve a questão da identidade e, claro, a da cultura), responsabilidade, ética e cronotopo, pensados pelo Círculo de Bakhtin, fundamentação teórico-metodológica a partir da qual aprofundamos as análises de peças publicitárias em nossa Pesquisa de Iniciação Científica, decidimos pensar na questão do “make” na influência da constituição das mulheres, a partir de uma peça publicitária da Natura e do desafio #StopTheBeautyMadness. A ideia é, com base em nossa atualidade e nas experiências vividas até aqui, refletirmos, a partir de um artigo (chamado “A estética da propaganda televisiva: o caso de Natura ´Una´”[1]) que escrevemos há dois anos, pensarmos a produção da beleza feminina, ou melhor, de determinado padrão aceito e almejado como “belo”, em detrimento de outras características reais e humanas. Pensando nisso também, Robin Rice propôs um projeto social denominado Stop the beauty madness (em português, Parem com a loucura da beleza), constituído por uma série de anúncios criados para chocar ao mostrar o que existiria por trás de tradicionais campanhas publicitárias (veja: http://www.stopthebeautymadness.com/). Ela define o seu projeto como social com os seguintes dizeres: “Bastam aos padrões impossíveis. Basta à imagem ideal. Além de tudo, basta ao sentimento de não se sentir o bastante quando se trata da nossa beleza. Chegou o momento em que uma cultura inteira de mulheres já se cansou”. Mais do que defender os diversos tipos de beleza, Rice ataca a preocupação por padrões inatingíveis: “Todo o foco é na aparência. E a educação? E a personalidade? E se fizer um bom trabalho no mundo?”, pergunta a britânica, segundo a Revista Claudia (contraditoriamente, uma das revistas que muito se volta à produção de padrões estereotipados de beleza e de satisfação sexual voltada aos homens). Enquanto a peça publicitária da Natura Una traz manifestações culturais diversas para justificar a “naturalização” (produzida artificialmente pela mídia e incorporada por todos) do uso de maquiagem, o desafio lançado por Rice ganha as redes sociais, na contramão da indústria da beleza, muitas vezes, inclusive, de maneira não compreendida, já que a campanha aparece também transformada em desafio que, não cumprido, deve ser pago com cosmético! O interessante é como a escritora britânica utiliza anúncios publicitários para propor uma reflexão acerca da produção da beleza, manifestada pela própria publicidade. Ela utiliza o mesmo gênero discursivo para, a partir e por meio dele, denunciar a sua função. Segundo ela, em entrevista à Revista Claudia, ao responder sobre “Como a publicidade controla nossos pensamentos e reforça padrões” de beleza inatingíveis e artificiais, bem como se “Há um culpado”, diz: “Imagens repetidas são uma forma de educação. Quando vemos algo repedidas vezes começamos a acreditar que é a realidade; o que não é. Mas nós naturalmente queremos fazer parte desse mundo – que eles fazem parecer convidativo e adorável – e sentimos que estamos fora do padrão, que devemos mudar para sermos aceitos. O problema é que esse ´mundo´ não existe de verdade fora das revistas. (…) Se o dinheiro é o ponto de partida, e é, e a publicidade é como se faz dinheiro, a culpa tem que vir dela. Entretanto, ter um culpado não nos ajudará. Cada mulher tem que decidir por ela mesma que deve ter sua própria ideia de beleza e verdade para que isso mude.” Apenas para comparar, como um exemplo, a produção de estereótipos de beleza, questionada por Rice, partimos de um comercial da Natura (poderia ser qualquer outro, de qualquer marca. Há peças publicitárias, inclusive, mais explícitas que a aqui selecionada ao que se refere à imagem estereotipada). Todavia, como o projeto de Rice tornou-se um desafio e ficou conhecido voltado, mais especificamente, ao uso de cosméticos (o que reduz a amplitude do projeto original, que diz respeito a diversos aspectos – como a anorexia, a obesidade, o racismo, a objetificação do corpo feminino etc), optamos por um comercial volta que se volta ao usos de cosméticos. A Natura foi a marca eleita por trabalharmos com ela em nossa pesquisa. O vídeo da peça é Esta é a peça de lançamento da linha de maquiagem Una, propagada como altamente tecnológica. Na primeira parte dessa propaganda são apresentados diferentes povos, representantes de suas culturas, em rituais caracterizados pela pintura do rosto, como mostram as imagens abaixo. Observamos a africana, a indígena, a “clássica” asiática (bailarina russa), a japonesa, a chinesa, a brasileira e a hindu (indiana): Esses “makes” são embalados pelo som intenso de tambores que remete ao universo tribal de diversos povos. Ainda na primeira parte dessa peça, as cenas revelam o resultado da arte (a pintura) que as mulheres acabaram de fazer em seus corpos (especificamente em seus rostos), como é possível perceber nas imagens que seguem: Depois de apresentar tantas culturas, com seus rituais de “pintura da cara” (do corpo), como características comuns de tantos povos espalhados pelo mundo, a propaganda chega ao seu ponto principal: a pergunta, posicionada pela marca, no meio da propaganda, centralizada numa tela preta, como mostra a imagem: A pergunta “De onde vem essa sua vontade de pintar a cara?” instaura na telespectadora (sim, no feminino, pois a peça é dirigida às mulheres e só apresenta mulheres como sujeitos-personagens em seu interior) um momento de reflexão que, com a sequência de cenas anteriormente exibidas, já carrega em si a resposta desejada: pintar o corpo (rosto) é um ato sócio-histórico-cultural. A justificativa que a telespectadora precisa para poder, num álibi pré-construído no interior da própria propaganda (que tem por objetivo central vender maquiagem de sua marca), convencer-se e persuadir-se acerca da “naturalidade” do uso da pintura no rosto, como algo “ancestral” e de muitas culturas, como marca identitária de feminilidade, está presente na construção de toda a primeira parte da peça. Como se a peça colaborasse (por pressuposição) para que a resposta à pergunta feita no anúncio fosse “a minha vontade de pintar a cara vem da minha história e do meu desejo ancestral de liberdade. Essa é a minha vontade de ser quem sou, independente de qualquer coisa. Esse é um desejo meu e faz parte da minha história e da minha cultura”. Perguntamos: será? Pensemos juntos. O ato de maquiar-se é colocado na peça não só como um ritual de beleza, mas também como um ritual sócio-histórico-cultural. Isso justifica a liberdade de usar maquiagem? E o que isso tem a ver com o “desafio” lançado na internet, via redes sociais (especificamente no facebook), para que as mulheres “postem” “selfies” sem maquiagem? O que a “verdadeira face”, do rosto limpo, tem a ver com a “artificialidade” do “make” que tenta fazer das mulheres “Barbies” reais (ver: https://www.youtube.com/watch?v=Na_7QDkGmXU) e incute nas mentes das meninas, desde a infância, ser este o modelo padrão de beleza a ser seguido (quase que como uma seita – seita que estimula doenças de distúrbios alimentares a ponto de sites “ANAs”, assim conhecidos os chamados sites que estimulam o “estilo de vida” – assim denominado por seus idealizadores e seguidores – anorexo)? O ato de usar ou não maquiagem, seja ela qual for, cai em discussão exatamente por passar por questões identitárias de modelos de feminilidade, beleza e ousadia (no caso, o não-uso da pintura no rosto, dentre outras questões). A ditadura da beleza passa pelo “make” (ainda que não se circunscreva apenas a ele, obviamente) e isso tem a ver com preconceitos vividos no “mundo real”, como ocorre com o alisamento de cabelos e obesidade (desrespeitando as belezas pessoais e culturais dos sujeitos, tomados em sua heterogeneidade, em prol de um padrão, tomado como “único” aceitável). Tais questões também são contempladas no projeto de Rice, ainda que muita gente que assuma o desafio no facebook possa sequer conhecer, de fato, o projeto em si e achar que ele (o desafio) não passa de uma “brincadeira de corrente” entre amigos. Alguns exemplos de anúncios que tocam (por meio do choque) em questões de beleza que vão além do “make”: Mas, voltemos à peça publicitária, mote de nossas reflexões. Depois do momento central da propaganda, sua outra metade é destinada à apresentação dos produtos anunciados, momento em que uma mulher, já sem marca cultural identitária [podemos supor a brasileira, uma vez que a marca se volta a esse público e nicho de mercado, mas também podemos pensar na homogeneidade da beleza instaurada, de maneira padronizada – branca, magra, cabelos longos (só faltou serem loiros) e lisos, olhos grandes, lábios carnudos – que apaga marcas culturais e desrespeita a riqueza heterogênea da diversidade da(s) beleza(s)], passa pelo ritual de “pintar a cara”, como dito no questionamento anterior, promovendo a relação entre ela, que seguirá “se pintando” com os produtos de Natura Una, e a torcedora brasileira de “cara pintada”, apresentada nas primeiras imagens. Aliás, as expressões “pintar a cara” e “cara pintada” nos fazem viajar pelo tempo e remetem tanto ao ritual festivo de jogos (pela presença da torcedora de “cara pintada” apresentada no início da propaganda e pela expressão que tem sido muito veiculada pela mídia como típica da “guerra” esportiva) quanto à passeata dos “caras pintadas” de 1992, que conquistou o impeachment de Collor. Ainda que tenha havido um deslize de sentido que modifica totalmente a expressão “cara pintada”, do universo político ao universo esportivo e, agora, ao da beleza, inevitável desconsiderar o cenário político brasileiro e pensar qual a relação entre tais mundos. Poderia ser considerado um ato político o de “pintar a cara”? Um ato ritual? Um ato guerreiro (como voltou a ocorrer nas manifestações, muito mais mascaradas que pintadas, mas também pintadas, em junho de 2013)? Talvez, a ideia seja a de cruzar esses universos e colocar a mulher como uma guerreira festiva (torcedora), mas, sabemos o quão diferentes são o ato de “pintar a cara” e sair às ruas para se manifestar e protestar (dando a “cara a tapa” a policiais etc), o ato de “pintar a cara” para torcer por um time e o ato de “pintar a cara” com maquiagem, como ocorre nas imagens da segunda metade do comercial. Podemos até remeter à guerra da beleza e da sedução, mas a esfera não é a mesma e os sentidos, completamente diferentes. Estaria a Natura tentando atribuir sentidos diferentes ao ato de se maquiar para convencer a telespectadora de que esse não seria (ou não é) um ato simples de ritual de sedução e beleza, com argumentos precedentes calcados na história? Parece-nos que sim. E, de certa forma, guardadas as devidas proporções e com o devido cuidado, pintar o rosto é, de fato, um ato sócio-histórico-cultural. E, dependendo da cultura, do tempo e do espaço, não apenas feminino (como faz crer a peça publicitária pelos registros apresentados na primeira parte do comercial). O ponto é: a peça publicitária transforma um “make” num ato político, guerreiro, festivo ao resgatar o caráter histórico do ato de “pintar a cara”, ao trazer, de certa forma, à sua telespectadora e às mulheres brasileiras, a justificativa “segura” acerca da “importância” e da “necessidade” da mulher se maquiar. Necessidade fetichista (Marx), calcada em exemplos de tempo-espaço e esferas distintas – basta comparar as pinturas da primeira e as da segunda parte da peça. Na segunda metade do vídeo da Natura, a música tem um tom mais calmo e sereno e isso embala o “novo” jeito de “pintar a cara”, reinventado pela marca: o ato de se maquiar. Não uma maquiagem qualquer, mas sedutora (o batom é vermelho, os olhos são escuros e o olhar da modelo direto para a tela é um convite à telespectadora para que seja seu espelho – imagem e semelhança sócio-histórico-cultural da beleza e da feminilidade da mulher brasileira, “naturalmente” sensual) e de última geração (produzida com tecnologia de ponta, para uma mulher “antenada” ao seu tempo-espaço). Enfim, uma maquiagem Natura: A produção da peça é belíssima (aliás, as propagandas da Natura, em geral, são muito bem construídas), sutil, sem a apelação direta à venda imperativa (em momento algum há menção verbal explícita ao consumo dos produtos). Toda essa diluição faz com que quase nos esqueçamos do fato de se tratar da venda de um produto e de uma marca. Mas, como analistas que estudam discursos publicitários, sabemos que esse é o grande jogo e intuito da peça. Mais que isso, nós nos colocamos a refletir sobre a condição de ser mulher na contemporaneidade e, em especial, no Brasil, um dos países onde mais cresce o mercado de consumo de cosméticos (ultimamente denominados como “tratamento” – para alguém doente? A falta de maquiagem, a “cara limpa” revela um sujeito “doente”?) no mundo, segundo dados estatísticos, visto como filão para muitas marcas, estrangeiras e de renome internacional, inclusive, que passaram e têm passado, cada vez mais, a investir no país, dada a possibilidade de alta lucratividade. Com isso, pensamos sobre o que significa, no Brasil, ser mulher e a constante necessidade de se adequar e justificar perante a sociedade patriarcal em que vivemos. Precisamos mesmo de maquiagem para sermos vistas como somos? Respeitadas como seres humanos? E, se quisermos usar maquiagem, isso faz de nós “fúteis”? Nada disso. Calcadas em Bakhtin, sabemos, o sujeito não tem álibi na existência e precisa assumir seus atos, sejam eles quais forem. Estar de “cara limpa” ou “pintada” não diz tudo sobre uma mulher porque ser mulher é mais que isso. Ser humano é mais que isso. O desafio realizado a partir do projeto de Rice e que tem circulado com veemência nas redes sociais também nos fez pensar nessa questão, como um paradoxo à peça da Natura aqui brevemente analisada. Se, por um lado, a peça quer criar uma necessidade ilusória de que mulheres precisam “pintar a cara” para serem sujeitos sócio-histórico-culturais reconhecidos como tal; por outro, o desafio do facebook também construiu um sentido de que “mulher que é mulher não se esconde atrás da maquiagem”, mostra a sua face, limpa, a todos. Claro que essa foi uma metáfora para pensarmos acerca do ato caraterizado pelo álibi de se esconder – não necessariamente atrás da maquiagem, mas também por meio dela. Não acreditamos que a questão seja usar ou não maquiagem, mas assumir-se, com responsabilidade. Ter postura e caráter. E isso vai muito além do “make”. Claro, esse ato de se assumir (com ou sem maquiagem, mas como sujeito que se constitui como alguém que é muito mais que um corpo produzido), sim, é um ato sócio-histórico-cultural como o colocado na primeira parte do comercial da Natura. Os atos dos sujeitos fazem a história na história, de maneira viva. E, talvez, na contemporaneidade, as mulheres, com tanto bombardeio cosmético e plástico da indústria da beleza, para se assumirem e lutarem contra essa ditadura mítica artificial e homogeneizada, limpem seus rostos. Esse passa a ser, então, mais que um desafio internético, um ato político, muito mais próximo àquele realizado, em outra esfera e de outra forma, pelos “caras pintadas” das passeatas de 1992. Agora, o impeachment não se refere a um presidente, mas à indústria que quer incutir em nós uma necessidade artificial desnecessária e ao patriarcado que ainda impera e nos escraviza. Não somos mais ou menos mulheres por estarmos ou não maquiadas. Até porque, somos mais que reles rostinhos bonitos! Nesse sentido, o que nos fica como desafio não é usar ou não maquiagem, mas pensar sobre o quanto ainda a mulher está fadada a ser vista como objeto e precisa se libertar de rótulos e assumir quem ela é, não por estereótipos, mas por pensar em sua postura como sujeito que, mais que indivíduo, vive e é constituído por signos ideológicos, na e pela linguagem, pela e na sociedade. Não uma sociedade qualquer, mas uma sociedade patriarcal. Ela pode até escolher servir ao paradigma machista, mas ela tem de assumir que essa escolha a coloca em dada condição, sem vitimização e, se não é isso o que quer, precisa se posicionar assumindo o bônus e o ônus de que ainda há muito a refletir, a lutar e a mudar, para além do que se espera de uma mulher, mas por ser mulher que pensa, escolhe e age de acordo com suas convicções e deve ser respeitada, seja a escolha feita qual for. Afinal, como bem respondeu Rice, ao ser questionada sobre a beleza: “Beleza não é o problema, é maravilhoso! Mas uma definição singular dela que, virtualmente, faz todas as mulheres se sentirem terríveis, é um problema”. Somos todos belos em nossa humanidade “defeituosa”. E se não suportamos nos ver e que nos vejam como somos, há algo de muito errado que precisa ser repensado, não apenas em cada um de nós, mas também numa sociedade que incentiva e aplaude esse espetáculo dos horrores em que meninas tornam-se bonecas para se sentirem “princesas” e se tornarem celebridades instantâneas com tais atos, admirados por muitos. Numa sociedade narcísica, ainda precisamos do aval do outro. A questão é, que outro e que aval? Precisamos refletir sobre tais questões e que este breve texto possa servir como um ato de quem tirou a maquiagem e se expôs, como as autoras. Afinal, estar “de cara limpa” significa mais que tirar a maquiagem. Significa não se omitir de seus princípios, assumir suas posturas e “dar a cara a tapa” ao se manifestar, seja do jeito que for. Terminamos com uma citação (contra as normas da “boa” escrita padrão – exatamente por estarmos nos posicionando contra as homogeneidades) porque fazemos nossas, as reflexões apontadas por Bakhtin/Volochinov quando (em Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1997, p. 46) afirma que “O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” e o que determina essa relação do ser no signo é “O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma continuidade semiótica, ou seja: a luta de classes”. Por isso, escolher como se constituir não é uma mera opção individual livre, uma vez que nossa “liberdade” esbarra na constituição da linguagem, que nos compõe e faz humanos (repletos de “makes” sociais). [1] PAULA, L. d.; CARDOSO, A. P. L.. Nosso Ato Responsável. 1ª. ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. 596p. #beleza #ideologia #propaganda
- A pianista que comoveu Stálin
Patrick Paiva de Oliveira Entre os interlocutores de Bakhtin e os membros de seu Círculo, nós não encontraremos somente poetas, homens das letras, filósofos e linguistas, mas também cientistas, biólogos, pintores, escultores, músicos e musicólogos. (CASSOTTI, 2010, p. 114, tradução nossa) Ao iniciar os estudos sobre Bakhtin e seus pares, não imaginara que os ecos e ressonâncias musicais fossem tão marcantes em suas produções. Muitos conceitos essenciais ao desenvolvimento do pensamento bakhtiniano foram metaforizados pelo Círculo e transportados da esfera musical para os estudos da linguagem por constituírem a “designação mais adequada”. Citemos, por exemplo, tonalidade, passagem, contraponto, voz(es), entoação, consonância, dissonância, ritmo, homofonia e polifonia. Este último, amplamente desenvolvido na obra Problemas da Poética de Dostoiévski (PPD) como atesta o excerto A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento. (BAKHTIN, 2013, p. 23) Os membros do Círculo de Nevel – Vitebsk – Leningrado interessavam-se por diversas manifestações artísticas, científicas e filosóficas; compartilhavam seus interesses nas chamadas “tardes filosóficas”, nas quais também encenavam peças teatrais, recitavam poemas e assistiam à execução de peças musicais. Dentre eles, podemos citar alguns que estavam diretamente ligados a atividades musicais: Volochínov, que foi professor do Conservatório de Música de Vitebsk, dava aulas e publicou diversos trabalhos sobre história da música; Sollertinsky[1] – amigo próximo do compositor russo Shostakovich – que fora considerado o mais importante crítico soviético de música e teatro dos anos 1920 e 30 e sua monografia sobre o compositor austríaco Gustav Mahler é discutida até hoje devido ao seu caráter polêmico; e também uma das maiores pianistas dessa geração, a quem dedicaremos maior destaque neste texto: Maria Veniaminovna Yudina. Yudina (1899 – 1970) nasceu em Nevel e faleceu em Moscou. Iniciou seus estudos formais em música no Conservatório de São Petersburgo com a renomada pianista Anna Essipova e figura entre seus mais importantes alunos. Formou-se em 1921 no Conservatório de Petrogrado e logo ingressou no corpo docente do conservatório compartilhando a prática docente com a atividade de concertista. Era considerada excêntrica por recitar poesias censuradas em seus recitais como forma de apoiar os poetas de sua época. Também a chamavam “missionária da música” por executar composições de seus contemporâneos: Shostakovitch, Krenek, Hindemith, Bartok, Stravinsky, Prokofiev e, mais tarde, Stockhausen. Clark & Holquist (p. 129) confirmam que No zelo de difundir a luz, dava quase sempre palestras antes de iniciar os concertos e, se o auditório não reagia corretamente a uma determinada peça, com frequência ela o repreendia e voltava a tocá-la de novo, de modo a oferecer-lhe a oportunidade de responder melhor[2]. Yudina toca Prokofiev Um fato marcante na carreira de Yudina se deu quando Stálin, após ouvir uma execução do Concerto para piano e orquestra n.º 23 em Lá Maior (K. 488), de Mozart, na rádio local, gostou tanto da interpretação que telefonou para a emissora e solicitou que lhe fosse enviada uma cópia do disco que fora executado. Porém, a execução por Yudina fora realizada ao vivo e não havia registro fonográfico da performance. De imediato, todos os músicos foram convocados para realizar tal gravação e Yudina assim o fez, permanecendo sempre serena e tranquila. Em contrapartida, Stálin enviou uma boa quantia de dinheiro à pianista, que o doou à Igreja e devolveu o agradecimento ao estadista com as seguintes palavras: “Vou rezar pelo senhor dia e noite e pedir a Deus que lhe perdoe os grandes pecados perante o povo e o país que o senhor cometeu”. Todos esperaram que após o fato, Yudina fosse presa, mas isso não ocorreu. Segundo o livro de memórias de Shostakovich, quando Stálin foi assassinado, em sua residência, em Moscou, por sionistas, no dia 5 de Março de 1953, o disco gravado por Yudina estava girando em seu toca-discos. Por isso, é considerada[3] a “pianista que comoveu Stálin”. Podemos ouvir a gravação no YouTube: Há uma coleção de CDs, denominada “Great Pianists of the 20th Century”, na qual há dois números dedicados a Maria Yudina. Neles, a pianista executa obras de Bach e Beethoven e é aclamada pela crítica como uma das melhores intérpretes de ambos. No site Amazon.com, há mais de 100 CDs com gravações da pianista, que gravou durante toda sua vida obras de compositores clássicos e contemporâneos seus. Sua última gravação foi dois anos antes de sua morte. No site do Conservatório de São Petesburgo (http://istud.conservatory.ru/), Yudina figura entre os melhores performers de sua época e é destacada, novamente, pelo apoio aos compositores contemporâneos. Aos que desejarem ampliar seus conhecimentos sobre Yudina, recomendo o seguinte documentário russo com legendas em inglês: Muitas vezes, não conhecemos bem todos os membros do Círculo e apresentar alguém tão expressivo como Yudina é fundamental para pensar sobre as concepções advindas do universo musical para o escopo dos estudos da linguagem, mais que como meras metáforas, pois, sem noções musicais, perdemos parte da compreensão da filosofia proposta por esses pensadores. Este texto é um convite a conhecer e pensar a filosofia bakhtiniana a partir e por meio de Yudina. Referências CASSOTTI, R. S. Music, Answerability, and Interpretation in Bakhtin’s Circle: Reading together M.M. Bakhtin, I.I. Sollertinsky, and M.v. Yudina”, in Orekhov, B.V. Chronotope and Environs, Fetschift N. Pan’kov, Ufá, Vagant, 2010, pp. 113-120. BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. [1] BUTIR, L.M.; DANKO, L. G. Sollertinsky, Ivan Ivanovich. Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press. Acesso em: 07/07/14. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article /grove/music/26150. [2] CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Prespectiva, 2004. [3] VATH, Cristopher. The pianist who moved Stalin. Disponível em <http://www.crossroadsculturalcenter.org/events/2011/9/17/maria-yudina-the-pianist-who-moved-stalin.html> Acesso em: 14/09/14.
- A pianista que comoveu Stálin
Patrick Paiva de Oliveira Entre os interlocutores de Bakhtin e os membros de seu Círculo, nós não encontraremos somente poetas, homens das letras, filósofos e linguistas, mas também cientistas, biólogos, pintores, escultores, músicos e musicólogos. (CASSOTTI, 2010, p. 114, tradução nossa) Ao iniciar os estudos sobre Bakhtin e seus pares, não imaginara que os ecos e ressonâncias musicais fossem tão marcantes em suas produções. Muitos conceitos essenciais ao desenvolvimento do pensamento bakhtiniano foram metaforizados pelo Círculo e transportados da esfera musical para os estudos da linguagem por constituírem a “designação mais adequada”. Citemos, por exemplo, tonalidade, passagem, contraponto, voz(es), entoação, consonância, dissonância, ritmo, homofonia e polifonia. Este último, amplamente desenvolvido na obra Problemas da Poética de Dostoiévski (PPD) como atesta o excerto A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento. (BAKHTIN, 2013, p. 23) Os membros do Círculo de Nevel – Vitebsk – Leningrado interessavam-se por diversas manifestações artísticas, científicas e filosóficas; compartilhavam seus interesses nas chamadas “tardes filosóficas”, nas quais também encenavam peças teatrais, recitavam poemas e assistiam à execução de peças musicais. Dentre eles, podemos citar alguns que estavam diretamente ligados a atividades musicais: Volochínov, que foi professor do Conservatório de Música de Vitebsk, dava aulas e publicou diversos trabalhos sobre história da música; Sollertinsky[1] – amigo próximo do compositor russo Shostakovich – que fora considerado o mais importante crítico soviético de música e teatro dos anos 1920 e 30 e sua monografia sobre o compositor austríaco Gustav Mahler é discutida até hoje devido ao seu caráter polêmico; e também uma das maiores pianistas dessa geração, a quem dedicaremos maior destaque neste texto: Maria Veniaminovna Yudina. Yudina (1899 – 1970) nasceu em Nevel e faleceu em Moscou. Iniciou seus estudos formais em música no Conservatório de São Petersburgo com a renomada pianista Anna Essipova e figura entre seus mais importantes alunos. Formou-se em 1921 no Conservatório de Petrogrado e logo ingressou no corpo docente do conservatório compartilhando a prática docente com a atividade de concertista. Era considerada excêntrica por recitar poesias censuradas em seus recitais como forma de apoiar os poetas de sua época. Também a chamavam “missionária da música” por executar composições de seus contemporâneos: Shostakovitch, Krenek, Hindemith, Bartok, Stravinsky, Prokofiev e, mais tarde, Stockhausen. Clark & Holquist (p. 129) confirmam que No zelo de difundir a luz, dava quase sempre palestras antes de iniciar os concertos e, se o auditório não reagia corretamente a uma determinada peça, com frequência ela o repreendia e voltava a tocá-la de novo, de modo a oferecer-lhe a oportunidade de responder melhor[2]. Yudina toca Prokofiev Um fato marcante na carreira de Yudina se deu quando Stálin, após ouvir uma execução do Concerto para piano e orquestra n.º 23 em Lá Maior (K. 488), de Mozart, na rádio local, gostou tanto da interpretação que telefonou para a emissora e solicitou que lhe fosse enviada uma cópia do disco que fora executado. Porém, a execução por Yudina fora realizada ao vivo e não havia registro fonográfico da performance. De imediato, todos os músicos foram convocados para realizar tal gravação e Yudina assim o fez, permanecendo sempre serena e tranquila. Em contrapartida, Stálin enviou uma boa quantia de dinheiro à pianista, que o doou à Igreja e devolveu o agradecimento ao estadista com as seguintes palavras: “Vou rezar pelo senhor dia e noite e pedir a Deus que lhe perdoe os grandes pecados perante o povo e o país que o senhor cometeu”. Todos esperaram que após o fato, Yudina fosse presa, mas isso não ocorreu. Segundo o livro de memórias de Shostakovich, quando Stálin foi assassinado, em sua residência, em Moscou, por sionistas, no dia 5 de Março de 1953, o disco gravado por Yudina estava girando em seu toca-discos. Por isso, é considerada[3] a “pianista que comoveu Stálin”. Podemos ouvir a gravação no YouTube: Há uma coleção de CDs, denominada “Great Pianists of the 20th Century”, na qual há dois números dedicados a Maria Yudina. Neles, a pianista executa obras de Bach e Beethoven e é aclamada pela crítica como uma das melhores intérpretes de ambos. No site Amazon.com, há mais de 100 CDs com gravações da pianista, que gravou durante toda sua vida obras de compositores clássicos e contemporâneos seus. Sua última gravação foi dois anos antes de sua morte. No site do Conservatório de São Petesburgo (http://istud.conservatory.ru/), Yudina figura entre os melhores performers de sua época e é destacada, novamente, pelo apoio aos compositores contemporâneos. Aos que desejarem ampliar seus conhecimentos sobre Yudina, recomendo o seguinte documentário russo com legendas em inglês: Muitas vezes, não conhecemos bem todos os membros do Círculo e apresentar alguém tão expressivo como Yudina é fundamental para pensar sobre as concepções advindas do universo musical para o escopo dos estudos da linguagem, mais que como meras metáforas, pois, sem noções musicais, perdemos parte da compreensão da filosofia proposta por esses pensadores. Este texto é um convite a conhecer e pensar a filosofia bakhtiniana a partir e por meio de Yudina. Referências CASSOTTI, R. S. Music, Answerability, and Interpretation in Bakhtin’s Circle: Reading together M.M. Bakhtin, I.I. Sollertinsky, and M.v. Yudina”, in Orekhov, B.V. Chronotope and Environs, Fetschift N. Pan’kov, Ufá, Vagant, 2010, pp. 113-120. BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. [1] BUTIR, L.M.; DANKO, L. G. Sollertinsky, Ivan Ivanovich. Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press. Acesso em: 07/07/14. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article /grove/music/26150. [2] CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Prespectiva, 2004. [3] VATH, Cristopher. The pianist who moved Stalin. Disponível em <http://www.crossroadsculturalcenter.org/events/2011/9/17/maria-yudina-the-pianist-who-moved-stalin.html> Acesso em: 14/09/14.
- Canção-canções: o mesmo é outro
Nicole Mioni Serni (Doutorado PPGLLP UNESP FCL Araraquara) Em minha pesquisa de mestrado, ao analisar o filme musical Across the Universe, entre as várias discussões geradas por meio do corpus, o conceito de cronotopo, conforme os estudos do Círculo de Bakhtin, entre outros, foi-me muito caro. O filme musical Across the Universe, que possui em sua trama apenas canções dos Beatles, constrói em seu interior performances das canções da banda britânica em suas cenas e também, por vezes, a “mesma canção” (as aspas logo serão justificadas), segue sendo interpretada em cenas diferentes, entoadas por personagens diferentes, em espaços e tempos específicos. A continuidade ou “repetição” da “mesma canção” compõe, a cada cena, sujeito, espaço e tempo, significados diferentes, pois, a cada enunciação única daquela dada canção, ainda que seja a “mesma”, não a é, porque seus significados são (re)formulados a cada novo sujeito, espaço, e tempo que a situa. Busco trazer aqui neste breve texto uma reflexão inspirada em minhas análises do mestrado, porém sem a delimitação de um filme musical apenas, mas sim de obras musicais diferentes, que se constroem a partir da “mesma canção”. A canção Seasons of Love faz parte do musical Rent, que, tendo estreado na Broadway em 1996, teve sua versão para o cinema lançada apenas em 2005. E é a partir da obra cinematográfica, inspirada na peça musical, que pretendo refletir aqui. Seasons of Love é a primeira canção interpretada no filme, na cena de abertura, em que aparecem ainda parte dos créditos do filme. O vídeo referente a esta cena pode ser vizualisado aqui. A letra da canção fala sobre como poderíamos “medir” um ano: em minutos, em dias, em risadas, em cafés, ou em amor? Ao ser entoada a letra em Rent, os significados produzidos são únicos e se relacionam com o contexto do filme, uma vez que temas como vida e amor serão discutidos ao longo da trama, que, para os que não conhecem o filme, discute o uso de drogas, o desemprego, a relação homoafetiva, a liberação sexual e a AIDS, por meio de um grupo de amigos em Nova Iorque. Uma das canções, também muito conhecida, do musical em questão repete o enunciado “No day but today”, o que reforça a temática de se aproveitar cada segundo da vida, tempo precioso quando visto por meio dos olhos das personagens com AIDS. A “mesma” canção de Rent pode ser encontrada em um outro musical, pois, Seasons of Love é a primeira canção a ser interpretada no epísodio The Quarterback, terceiro episódio da quinta temporada da série televisiva Glee. O vídeo se encontra aqui. A série se configura como musical, uma vez que todos os episódios possuem performances de canções, feitas pelas personagens, sendo parte composicional e essencial no interior da trama de cada episódio individualmente, assim como na construção da história da série como um todo. Na abertura do episódio em questão, as personagens aparecem cantando Seasons of Love todas vestindo preto, sua disposição no palco e a iluminação fazem referência à cena original de Rent, mas a canção, mesmo sendo aparentemente a mesma, cria sentidos muito diferentes da cena do filme musical. Na história da série, esse episódio se refere à morte de uma das personagens, Finn Hudson, que além de fazer parte do grupo de coral, jogava na posição “Quarterback” do time de futebol americano. O título do episódio já faz referência à personagem em questão e, ao longo do episodio, todas as canções serão relacionadas com sua morte. A personagem de Finn Hudson era interpretada pelo ator Cory Moteith, que faleceu em julho de 2013. A performance da canção Seasons of Love no interior desse episodio cria, desse modo, sentidos que se estendem para além da série: a canção se relaciona com a arte e também com a vida. A relação arte e vida, quando pensada a partir dos estudos do Círculo, encontra-se em constante diálogo, pois “A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico […] encontra resposta direta e intrínseca dentro dela.” (VOLOCHINOV, p.2). O autor do Círculo afirma também que, para analisar o discurso na arte, “precisamos antes analisar em detalhes certos aspectos dos enunciados verbais fora do campo da arte – enunciados da fala da vida e das ações cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística.” (idem, p.4). Para a compreensão do gênero canção, no caso da presente reflexão, no seriado Glee, o diálogo entre arte e vida é essencial para a análise, uma vez que essa relação intrínseca se dá pelos sentidos únicos a cada enunciação da canção Seasons of Love, em um dado espaço e tempo, por dados sujeitos. É o cronotopo que “ambienta” as diferentes performances da canção no filme e no seriado musical. Ao cantar sobre “como medir um ano”, as personagens de Rent colocam em questão a vida a ser vivida, em devir, enquanto os significados gerados a partir da performance das personagens de Glee se relacionam com a vida já passada, vivida, pela personagem da trama e também sujeito da vida, que falecera. A aparente “mesma” canção se mostra por meio de musicais diferentes e demonstra as construções de sentido específicas geradas a partir de cada uma das cenas, em cada enunciado, enquanto as referenciações à vida, ilustram o diálogo constante e ininterrupto entre a produção artística e o social, relações que nunca se encontram finalizadas, mas em processo de novas gera(ações) de respostas, em movimento.






