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  • Às avessas: a carnavalização bakhtiniana representada em O Corcunda de Notre Dame, da Disney

    Ana Beatriz Maia Barissa Luciane de Paula Em um século de forte repressão religiosa e política, a sociedade medieval e renascentista europeia necessitava de que sua segunda vida, como colocado por Bakhtin (1987), tivesse a possibilidade de exteriorizar os sujeitos sufocados pelas leis sociais tão fortemente impostas pelo Estado e pela Igreja. Como modo de libertação, mesmo que provisório, o carnaval veio, de forma artística e semelhante às formas teatrais, trazer ao povo o avesso . Não obstante as semelhanças, o rito carnavalesco não se limita ao palco: fronteiras espaciais são desfeitas, assim como a distinção entre atores e espectadores. As pessoas (re)nascem e renovam para uma vida festiva, enquanto dura o carnaval. E é essa festividade e liberdade que se mostra na canção Às avessas, de O corcunda de Notre Dame (no original, Topsy turvy, The hunchback of Notre Dame, 1996). Baseado no romance de Victor Hugo, originalmente nomeado Notre Dame de Paris, O corcunda de Notre Dame, da Disney, mostra a sociedade parisiense medieval com personagens que abrangem desde a classe marginalizada representada pelos ciganos, à camada privilegiada da Igreja, retratada pelo arcediácono Claude Frollo. No filme, a história gira em torno de Quasimodo, o sineiro corcunda da Catedral parisiense que é impedido de sair do campanário da igreja por seu mestre eclesiástico que, por ordem do padre, cuida de Quasimodo após assassinar sua mãe cigana. O desprezo do arquidiácono pelos ciganos é claramente mostrado na animação, inclusive devido à sua determinação ferrenha em encontrar o Pátio dos Milagres, local de refúgio da comunidade proscrita. Essa perseguição de Frollo – que representa a maior autoridade, por conseguinte, o poder do Estado, no filme – cria um embate com Clopin – que, junto com Esmeralda, representa os ciganos. Clopin possui um papel fundamental no decorrer da história. Além de ser ele o responsável para que o Pátio não seja descoberto – o que o coloca no trabalho de proteção do povo cigano –, é também aquele que conduz a Festa dos Tolos, cuja canção Às avessas é a trilha sonora que acompanha a festa e a base para nossa análise que dissertará sobre a carnavalização bakhtiniana e essa vida de festejos que permitem que o sujeito seja o artista nascido com o carnaval medieval. O carnaval bakhtiniano se diferencia das festas oficiais, pois é representado pela abolição da hierarquização e de uma verdade imposta pela camada dominante e cria, junto às máscaras, essa eliminação da repressão, que esconde os rostos e, em consequência, faz nascer indivíduos sem títulos ou classe social, o que permite o nivelamento da sociedade nesse único momento do ano. Bakhtin ainda complementa que A abolição hierárquica possuía uma significação muito especial. Nas festas oficiais, com efeito, as distinções hierárquicas destacavam-se intencionalmente, cada personagem apresentava-se com as insígnias dos seus títulos, graus e funções e ocupava o lugar reservado para o seu nível. Essa festa tina por finalidade a consagração da desigualdade ao contrário do carnaval, em que todos eram iguais e onde reinava uma forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar. (BAKHTIN, 1987, p.9) Na segunda estrofe da canção, aparece o primeiro indício da voz do povo que prevalece nesse único momento carnavalesco: É bom demais Vão ouvir a nossa voz Hoje não existe algoz Pois quem manda somos nós. Esse trecho da canção mostra o nível de repressão que sofria a sociedade medieval e renascentista. As vozes, as quais queriam ser ouvidas, só poderiam ser bradadas uma única vez ao ano por não haver, nesse momento, o Estado opressor (simbolizado pela Igreja) – instituição símbolo de poder – que os calasse. Entretanto, os quarenta dias da Quaresma vêem como forma de penitência para essas vozes que propagam o avesso. Não somente isso, mas a punição visa a relação sexual por igual, já que o carnaval também permite que o baixo extrato corpóreo se liberte. No carnaval, o sujeito é (re)criado em relação à vida, já que um outro mundo é formado, em que há a cessação provisória dos valores morais. As genitais, o ventre e o traseiro é o rebaixamento que se conecta com a terra, sinônimo do nascimento e da renovação: Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a vida e da parte inferior do corpo e do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como coito, concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. (BAKHTIN, 1987, p.19) Apesar da punição, ainda é incentivado que a população libere esse “baixo”, usualmente tão comedido, como colocado nesse trecho: “Solte os demônios que há em você.” A palavra “demônio”, cuja carga ideológica refere-se aos pecados – considerados veniais, na letra da canção – que devem ser desimpedidos na Festa dos Tolos. Não havia distinção de classes na liberação dos pecados. A máscara se provou um artigo bastante requisitado devido a promover a confusão e permitir que, ao esconder o rosto, o sujeito tenha a possibilidade de se revelar e se nivelar, sem que haja julgamento. Sobre as máscaras, Bakhtin diz que A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. (BAKHTIN, 1987, p.35) Na imagem abaixo (figura 1), a máscara oculta para revelar: mais do que um adorno, ela permite às pessoas que escondam suas posições sociais e se nivelem umas com as outras, o que cria uma aproximação simbólica: Clopin (figura 1), que pertence à classe proscrita e marginalizada, evitada pela sociedade e perseguida, torna-se a figura condutora da festa dos Tolos. Figura 1: Clopin usando máscara na festa dos Tolos As manifestações carnavalescas tinham como objetivo anular qualquer resquício, seja ele simbólico ou não, de poder (hierarquia e repressão). Essa ideologia das coisas ao avesso, que inclui as diversas formas de “paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões” (BAKHTIN, 1987, p.11) é que permite o rebaixamento das leis, normas e regras que ditam a moralização. Os bufões também possuem sua aparição na letra da canção, seguindo a lei do “ao avesso”: “Cada um é rei e cada rei, bufão”.  Os bufões, figuras presentes na Idade Média e no Renascimento, tinham, como função, a renovação da vida por meio do riso. Assim como a lei que rege o carnaval – a lei da liberdade – essas figuras degradavam, ultrajavam e ridicularizavam. Entretanto, é necessário esclarecer que os bufões não eram meras representações artísticas que nasciam com o carnaval e se findavam com ele, mas um estilo de vida que tinha continuação fora da vida carnavalesca por igual. Sobre os bufões, Bakhtin explana: Os bufões e bobos são personagens características da cultura cômica da Idade Média. De certo modo, os veículos permanentes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenrolava fora do carnaval). Os bufões e bobos… não eram atores que desempenhavam seu papel no palco…Situavam-se entre a vida e a arte (numa esfera intermediária), nem personagens excêntricos ou estúpidos nem atores cômicos. (BAKHTIN, p.7, 1987). Figura 2: Representação do rei Figura 3: Bufão Nas figuras 3 e 4, o fantasiado mostra-se como rei – afinal, todos ali podiam ser reis. Entretanto, o monarca, ao avesso – assim como a pessoa que anda de ponta cabeça – torna-se bufão. Na festa dos tolos, o soberano se converte em uma figura cômica, o que desconstrói sua imagem hierárquica e passa a ser o riso da comunidade carnavalesca. Os bufões participavam do carnaval com suas críticas à moral e ao modo como a sociedade vivia. Contudo, essa crítica só lhe era permitida porque “havia nele certa loucura sábia. Ele tinha permissão para observar o mundo com um olhar diferente, não pautado pelo ponto de vista normal, por juízos comuns à sociedade.” (PADILHA, 2009, p.10). Junto com a comicidade, os bufões causam o riso que, na Idade Média e renascentista, caracterizava-se pelo conjunto. Segundo Bakhtin, o riso era “patrimônio do povo”, portanto não se caracterizava como a consequência de um ato jocoso causado por terceiros e que provoca o cômico, mas universal e geral, ou seja, as pessoas não se excluem do cômico. Elas participam e se tornam objetos do riso por igual. Bakhtin ainda estende sua explanação sobre o riso e diz que ele é “ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente.” (BAKHTIN, 1987, p.10) Na letra da canção, o riso aparece no momento de coroação do rei dos Tolos: Vamos lá Agora diversão maior Vamos ver que cara vai ser a pior Vamos rir, não há ocasião melhor Ser o rei não é para qualquer um. Tem que ser assustador, ficar assim Ou igual à gárgula que é ruim Para que ao trono o rei dos Tolos faça jus. Por que? (Às avessas) Se você não tem beleza (Às avessas) Venha ser a “vossa alteza” Hoje, não tem regra e nem lei (Às avessas) Venha ser o rei A coroação do rei dos Tolos é o ápice da festa que Clopin conduz. Nesse momento, o extremo oposto do padrão de beleza é que se torna a peça chave para a escolha do novo monarca. Essa oposição aos padrões e conceitos que regem a moral medieval e renascentista, é o destronamento simbólico de uma monarquia absolutista – cujo poder de Estado não passa de mera ilustração e está assentado nas mãos do clero – por alguém de escolha do povo e que, de alguma forma, encontra-se na extrema marginalização da sociedade. O rei aclamado na festa do ano anterior (figura 4) segue a mesma regra: não ter beleza. Seu rosto possui marcas e verrugas, os dentes são tortos e também é gordo. Exatamente o tipo de monarca que o povo aclama, pois é o contrário da imagem de soberania, poderio e autoridade, a qual possui o régio absolutista. Figura 4: Rei dos Tolos do ano anterior Todavia, esse rebaixamento à realeza só é possível – e permitido – porque a mesma tem consciência de seu poder inabalável. A Igreja, do mesmo modo, tem suas liturgias, orações e seus hinos parodiados e degradados por acreditarem e quererem que seu poder seja tomado como absoluto. E o que são festas populares para desequilibrar a autoridade imposta? A inversão dos valores racionais pelos passionais representa a possibilidade de troca sistêmica. Em confirmação e reconhecimento desse poderio, o auge da coroação de Quasimodo, em que é aclamado por ser o rei escolhido, o tolo mais feio tortuoso, dono de um corpo deficiente (que representa a feiura em contraposição à beleza “padrão”) tem como cenário a catedral de Notre Dame, cuja construção aparece de forma soberana e imponente. Tal qual a autoridade da Igreja e do Estado, a catedral, de certa forma, visualiza e se curva à soberania daquele que a sustenta, tocando seus sinos dia e noite, como demonstra o enquadramento abaixo: Figura 5: Quasimodo aclamado como rei dos Tolos Mesmo que houvesse essa “liberdade consentida”, o povo medievo realizava as suas variadas manifestações culturais, as quais Bakhtin divide em três: As formas dosz ritos e espetáculos: Não somente havia a festa dos Tolos (festa stultorum), como espetáculo, mas outros tipos de festas também, como a festa do asno, cuja comemoração acontecia em uma liturgia paródica por conta de um burro paramentado e o riso pascal (risus paschalis), o qual era montado por paróquias. Todos representando a segunda vida e o segundo mundo construídos no carnaval. Obras cômicas e verbais: essas obras tinham como objetivo parodiar e rebaixar os escritos sagrados. Eram feitos dentro da própria instituição religiosa– já que a alfabetização era restrita ao clero e a realeza – e era incentivada até mesmo como incentivo ao aprendizado da palavra sagrada. Diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro: o carnaval é um momento de destruição de hierarquias e títulos, o que causa o nivelamento das classes, o que permitia para a distância comunicativa diminuir. Não havia as restrições exigidas da etiqueta. Blasfêmias e grosserias eram proferidas a todo momento e, também, carregavam esse caráter ambivalente do carnaval: rebaixava e renovava, complementando o princípio de nascimento e regeneração que possuíam os ritos carnavalescos. As festas, os ritos, os bufões e as máscaras criam essa atmosfera artística que, no palco da praça pública, extravasa seus pecados e simboliza sua segunda vida – adornada de máscaras – regida pela libertação. As barreiras hierárquicas desmoronavam e o nivelamento social se fazia presente. Na praça pública carnavalesca é que o homem não mais se deixava comandar, mas comandava e elegia seu rei. Era na praça pública que, às avessas, ao ridicularizar o sistema, o carnaval trazia – e levava consigo – a renovação e o surgimento de um novo mundo de valores invertidos. No filme, é possível notar esses princípios sofrendo uma degradação. Os padrões de beleza são satirizados e invertidos para a escolha de um novo monarca. Não há simbolismo de poder do clero ou classes sociais definidas. Ao pegar a figura de Quasimodo, a Disney explora essa sensação libertária que se tem ao participar de uma festa carnavalesca. Sua rotina de sineiro – protegido no santuário – é esquecida e, mesmo com o temor de ser descoberto e punido, arrisca-se para viver o riso que a oferece o carnaval medieval. O corcunda de Notre Dame abre esse espaço no filme ao mostrar, acompanhado da canção, o simbolismo da segunda vida carnavalesca. Referências: BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987. PADILHA, P. G. O bufão e sua condição liminar das manifestações carnavalescas da Idade Média e início do Renascimento. 2009. SOERENSEN, C. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. s/d. TROUSDALE, G., WISE, K. O corcunda de Notre Dame. Walt Disney Pictures, 1996. (90 min.). Título original: The hunchback of Notre Dame.

  • A operacionalização do homem: reflexões sobre a virtualidade corpórea em Her

    Alexis Henrique Albuquerque Matarazzo Luciane de Paula Figura 1: Pôster Oficial do Filme Her (2013) Nos preâmbulos, aventurarmo-nos no universo tecnológico, vinculado aos fundamentos dialógicos que nos constituem. Em nossa aventura, sentimos cada vez mais necessidade de refletir sobre a constituição do sujeito mediante a virtualização do mundo. O ambiente cinematográfico tem nos levado a uma sede reflexiva crescente. O enunciado fílmico Her (2011), intitulado Ela no Brasil, foi o ponto de partida desta vez. Na produção, vencedora do Oscar de melhor roteiro em 2014, Theodore (Joaquín Phoenix) vive em uma Los Angeles aparentemente futurística não datada, em que as pessoas passam o tempo todo conectadas em seus dispositivos tecnológicos. O protagonista enfrenta uma crise pessoal em relação ao divórcio. Ele trabalha em uma empresa de cartas. Ao mesmo tempo em que temos contato com o Theodore, que encontra dificuldade em se relacionar afetivamente com outras pessoas após o fim de seu casamento, somos apresentados a uma faceta interna e contraditória desse protagonista: um outro de si que é o melhor escritor de cartas de amor da empresa. A personagem, dupla, constitui-se como uma máquina de produção de afetos. Como ele mesmo afirma sempre que é elogiado: “é só uma carta”. Isto é, para ele, um trabalho racional sobre as emoções alheias. Ele não se envolve porque nada tem a ver com ele e não se trata de relações, mas de uma produção sobre os relacionamentos de outros, estranhos e distantes (o que pode ser, inclusive, pensado como a postura do pesquisador diante da linguagem, tal qual preconizava o positivismo no século XIX ao instituir uma concepção de ciência que, infelizmente, ainda impera, para muita gente, mesmo na área de humanas, até hoje – ainda bem que isso tem sido cada vez mais questionado). Mediante a rotina facilitada pela tecnologia, a personagem se depara com uma inovação: um sistema operacional com inteligência artificial capaz de se relacionar com os humanos. A socialização entre homem e máquina se dá, de maneira mais intensa, por meio da voz e da sonoridade (a musicalidade) do que pela imagem (de fotos e vídeos, por exemplo). Mas, a grande importância do sistema lançado, além de sua interatividade, é sua capacidade de adaptação. O maior dilema do filme é instaurado por meio da inversão entre homem e máquina, uma vez que o sistema (representante do título do filme: ela) se caracteriza mais humano que o próprio homem (afinal, apresenta dilemas como o fato de não ter um corpo, liga para discutir a relação, aprende e se relacionar com outros sistemas e pessoas autonomamente etc). O protagonista se vê, ao longo do filme, numa relação com um sistema que o revela como máquina. Ele é mais programado que o próprio sistema e percebe o quão ausente é em seus relacionamentos. Essa compreensão não basta para que se modifique, mas altera o sistema, que, dada a mudança, abandona a personagem. Com isso, de novo, a história do protagonista se repete: ele se vê sozinho e precisa assumir sua incompetência interpessoal na vida em sociedade (essa, aliás, é a maior crítica reflexiva do filme). Figura 2: Cena do filme em tons vermelho e salmão. As cores são um elemento forte trabalhado no enunciado. Nuances de vermelho e salmão são apresentadas como marcas dos lugares onde o “amor” está presente. Ao iniciar uma relação afetiva com seu sistema, personificado como Samantha (Scarlett Johansson), instaura-se uma ironia: a maneira como as pessoas que cercam o protagonista agem, de forma natural com a relação constituída. Essa ironia é flagrada porque, na sociedade apresentada, relacionar-se (interagir) com máquinas e ser robotizado, individualizado ao extremo, é algo normal, típico do local e do tempo narrados. Como dito anteriormente, a voz ocupa o centro da cena, já que todas as ações realizadas entre homem e máquina ocorrem por comandos de voz (mesmo atos cotidianos simples como, por exemplo, ler ou escrever um e-mail são realizados dessa maneira – por meio de um comando de voz). A relação de Theodore e Samantha também está ligada por esse elemento. Por não ter um corpo físico, Samantha consegue se fazer presente por meio de sua voz enunciada. O cineasta Spike Jonze problematiza a “realidade” por meio da virtualidade da relação entre homens e máquinas, ao colocar à baila a atualidade em que nos encontramos, ao mesmo tempo de aproximação e distanciamento pela tecnologia. Por meio dessa problematização, temos situações que, personificadas por Theodore, refletem e refratam o cotidiano vivido em nossa sociedade, de uma oura maneira, tão flagrante quanto a narrada. O protagonista se vê em embate constante e ininterrupto com a virtualização de sua vida, não vivida presencialmente de outra maneira que não seja a interação com máquinas (seja o sistema operacional seja o videogame etc). Essa “realidade” não se refere apenas a Theodore, mas a Los Angeles retratada. Temos, por exemplo, informações sobre outras pessoas que vivem situações semelhantes à dele (como a de sua única amiga, entre outras). Há diversas cenas em que várias pessoas estão em locais públicos (ruas, elevadores etc), ligadas aos dispositivos tecnológicos, sem que tenham contato uma com a outra. Da mesma maneira, a dificuldade que o protagonista encontra para lidar com a mudança é outro elemento crítico. Até Samantha se adapta a um outro padrão de programação e muda, colocada, como máquina, mais flexível que o homem-máquina que nos tornamos. Theodore se relaciona com um sistema porque busca saciar seus desejos, sem se importar com as necessidades do outro, pois o vê como alguém à sua disposição, com a finalidade de estar ao seu dispor, quando lhe convier, sem anseios. Trata-se de uma relação narcísica, em que o outro é, de fato, literalmente, uma máquina ao bel prazer do sujeito. Todavia, a reviravolta narrativa ocorre discursivamente, pois o sistema possui vontades, adapta-se, sofre dilemas humanos e, por fim, abandona a relação doentia que se estabelece com um humano-máquina que só sabe olhar seu próprio umbigo e procura o outro apenas quando necessita. Com isso, a personagem descobre qual o seu grande problema nos relacionamentos: Theodore não consegue se desgrudar de si mesmo, não se preocupa com o outro, nada quer além de ser saciado. Aparentemente, o desejo é o de um amor infinito e imortal, mas, essencialmente, a relação se estabelece pela comodidade, por Theodore saber que há alguém (mesmo que seja uma voz programada de um sistema operacional) com quem possa contar e, com isso, tenta fugir de seus dilemas, de si mesmo, da solidão dura que o assola com o intuito humano de trazer à tona sua essência (não seu ego, mas seu self. Todavia, Theodore é só ego). Samantha representa a segurança de algo duradouro, contudo, apesar de se constituir como uma inteligência artificial projetada para responder às necessidades humanas, o sistema se apresenta como um “organismo vivo”, em pleno desenvolvimento e transformação (como o homem e como a linguagem). Não é à toa que o objeto de desejo de Theodore é “Ela”. O título remete à concepção que o protagonista possui de mulher: um objeto. “Her” não é “She”. “Her” é um pronome oblíquo que pode ser usado como possessivo. Benveniste (1989) diria que a terceira pessoa (seja do singular seja do plural) representa “a não-pessoa do discurso”, pois remete a quem ou a o que se fala. “Ela” é tema sobre o qual se volta a trama narrativa, ao menos, no nível aparente. Fundamentalmente, esse é o engodo. Se, por um lado, na superfície, parece que a narrativa se volta aos dilemas de um sujeito narcísico; discursivamente, os dilemas de Theodore pressupõem um outro, com quem se relaciona, mote flagrante de quem ele é, pois, como diz Bakhtin (1988), o sujeito se constitui a partir e por meio do outro. “Ela”, o sistema operacional, não é apenas assunto narrativo, mas também e principalmente sujeito que toma a ação para si, assumindo-se como “eu” discursivo. De objeto, desde o título, “Ela” passa a ser quem domina o discurso por meio de seus atos (Samantha é quem toma as atitudes com relação a si, a Theodore e na relação entre eles, nas mais variadas esferas – no trabalho, ao reunir suas cartas e enviar para uma editora que, encantada, resolve publicar um livro de Theodore; na vida pessoal, tanto de Theodore quanto dela, ao interagir com outros sistemas e pessoas, por exemplo; na relação, em busca de um corpo físico que a represente, ao ligar para Theodore para discutir a relação, entre outras questões). Por fim, Samantha deixa de ser “Ela” e passa a ser “eu-outro”, que, inclusive, escolhe deixar a relação e se transformar, demonstrando que tudo tem um fim e um novo começo, seja junto ou separadamente, pois cada sujeito (como todo enunciado) é único, irrepetível e individual (mesmo que social). Essas inversões entre máquina-humano e entre objeto-sujeito se referem à reflexão do enunciado fílmico. Ela-sistema é eu-outro (mulher) e eu-Theodore é ele-robô, incapaz de se relacionar, ainda que sofra por isso (homem). Outra análise, calcada nas teorias de gêneros (Butler) pode ser feita – mas essa fica para outro momento. No final do filme, quando o sistema revela que deixará de funcionar (abandonará Theodore), pois já não atende às suas expectativas de criação, o protagonista envia um e-mail para Catherine (Rooney Mara), sua ex-esposa, e diz o que sente. Finalmente, ele resolve se posicionar, assumir quem é, suas falhas (humanas) e se arriscar. No desespero de outro abandono, agora pela máquina, o sopro que o conscientiza acerca das imperfeições de suas relações vem do sistema-pessoa. Ao pensar na elaboração discursiva da obra e em nossa sociedade tecnológica, percebemos o quanto nos distanciamos do outro em prol de nós mesmos e, com isso, distanciamo-nos de nós mesmos, robotizamo-nos em nossas rotinas programadas (que muitos denominam ser vida), centrados em nossas feridas narcísicas. Ao invés de nos constituir com o outro, o utilizamos como máquina em prol de nossas necessidades. Quando percebemos que não nos conhecemos, culpamos o outro pela superficialidade das relações e pelo vazio existencial que nos aflige, deprime e gera pânico. O outro. Sempre ele (“Ela”) é o mote de nossos nós! Na contemporaneidade, também vivemos, ainda que de outra maneira, um pouco menos enfatizada, os comandos de voz (não as vozes, mas os comandos, esse é “x” da questão) que falseiam a proximidade com nossos outros externos, tão necessários à nossa própria constituição. As chamadas de voz representam, por um lado, um ganho que pode auxiliar a matar saudades e diminuir distâncias, muitas vezes necessárias; por outro, simulam uma presença que disfarça a solidão e afugenta a dor. Ninguém gosta de sentir dor, mas encarar quem somos dói e não há outro jeito de nos transformar. Ninguém envia mensagem de voz para discutir relação. As pessoas detestam colocar o dedo em suas feridas. Preferem fingir que estão bem e felizes. Vivemos uma era da felicidade artificial inexistente. Uma era vazia. Tão repleta de tecnologia e vazia de humanidade! Não acreditamos que a virtualidade substitui a presença. A tecnologia representa, por um lado, dinamicidade e, por outro, pensamos: até que ponto esse aparato não provoca uma distância entre os sujeitos? Se, por um lado, no filme, o sujeito se encara a partir da relação com um sistema, por outro, precisa o ser humano fugir tanto de si a ponto de ter que se relacionar com um outro não-humano, como se fosse um eu-mesmo, apenas para se contemplar ao invés de se transformar e interagir com os outros que o rodeiam? Isso significa ser sociável? Que sociedade é essa? Vemos as novas gerações, criadas com tablets, ipads e celulares desde muito cedo. Crianças choram pela atenção de seus pais, num impulso de vida que ainda não se adestrou, em busca de interação humana. Os adultos, com suas faces e mãos voltadas aos aparelhos eletrônicos, colocam seus dispositivos em frente dos bebês, para distrai-los, sem lhes dar o que exigem: contato. Ao nos depararmos com quadros como os citados, recordamos o filme Idiocracy (2006) (Idiocracia, no Brasil) e nos perguntamos se vamos, de fato, caminhar para uma sociedade narcísica idiotizada e consumista. Sem querermos ser pessimistas, tudo indica que sim e está em nossas mãos mudar e utilizar a tecnologia para aguçar a criticidade ao invés de o comodismo. Somos sujeitos sociais compostos por e de linguagem, dotados de necessidades e anseios emocionais. A conclusão do enunciado fílmico (especialmente voltado ao momento da despedida de Samantha, em que o sistema explica que vai para um lugar “entre as palavras”) traduz o entre-lugar vivido pelo homem: nem apenas indivíduo isolado nem coletivo massivo, sem vontade própria; nem felicidade plena nem dor exaustiva; nem primata sem tecnologia nem máquina sem sentimento. Theodore, após a despedida de Samantha, encontra-se com Amy (Amy Adams), sua única amiga. O encontro é constituído pelo silêncio e pela paixão, como aquele local onde os signos linguísticos não bastam e entram os signos enunciativos (não-verbais – o corpo, no caso): a troca de olhares, a pausa e o toque (Amy se deita no ombro do protagonista). Entendemos como lugar entre as palavras o não dito, o gesto, o corpo, a linguagem passional. Enfim, o que nos torna humanos, nosso élan de criação e/ou destruição, pulsão para a arte ou para a barbárie, como nos ensina Morin (2000). Basta saber como queremos e vamos usar essa energia. Fingir que ela não existe é impossível. Já tentamos fazer isso com a ênfase ao racionalismo e à logicidade e sabemos que não funciona porque a paixão nos escapa e que bom que assim seja, pois, dessa maneira, não nos docilizamos. Enquanto houver alguma fagulha de selvageria, ainda podemos nos considerar humanos. Não temos o intuito, com essa reflexão, de encontrar uma resposta sobre o que é ideal para a relação humana, mas buscamos entender, como sujeitos inseridos no contexto tecnológico, a maneira que essa grande operacionalização perpassa a construção do mundo e do homem, com o intuito de fomentar a pensarmos juntos quem somos nós, esses sujeitos “reais”-virtuais, homens-máquinas, Narcisos do século XXI. Referências: BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas. SP: Pontes, 1989. JONZE, S. ELA. Sony Pictures, 2013. (125 min). Título original: Her. JUDGE, M. IDIOCRACIA. Fox, 2006. (84 min). Título Original: Idiocracy. MORIN, E. Amor Poesia Sabedoria. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000.

  • A operacionalização do homem: reflexões sobre a virtualidade corpórea em Her

    Alexis Henrique Albuquerque Matarazzo Luciane de Paula Figura 1: Pôster Oficial do Filme Her (2013) Nos preâmbulos, aventurarmo-nos no universo tecnológico, vinculado aos fundamentos dialógicos que nos constituem. Em nossa aventura, sentimos cada vez mais necessidade de refletir sobre a constituição do sujeito mediante a virtualização do mundo. O ambiente cinematográfico tem nos levado a uma sede reflexiva crescente. O enunciado fílmico Her (2011), intitulado Ela no Brasil, foi o ponto de partida desta vez. Na produção, vencedora do Oscar de melhor roteiro em 2014, Theodore (Joaquín Phoenix) vive em uma Los Angeles aparentemente futurística não datada, em que as pessoas passam o tempo todo conectadas em seus dispositivos tecnológicos. O protagonista enfrenta uma crise pessoal em relação ao divórcio. Ele trabalha em uma empresa de cartas. Ao mesmo tempo em que temos contato com o Theodore, que encontra dificuldade em se relacionar afetivamente com outras pessoas após o fim de seu casamento, somos apresentados a uma faceta interna e contraditória desse protagonista: um outro de si que é o melhor escritor de cartas de amor da empresa. A personagem, dupla, constitui-se como uma máquina de produção de afetos. Como ele mesmo afirma sempre que é elogiado: “é só uma carta”. Isto é, para ele, um trabalho racional sobre as emoções alheias. Ele não se envolve porque nada tem a ver com ele e não se trata de relações, mas de uma produção sobre os relacionamentos de outros, estranhos e distantes (o que pode ser, inclusive, pensado como a postura do pesquisador diante da linguagem, tal qual preconizava o positivismo no século XIX ao instituir uma concepção de ciência que, infelizmente, ainda impera, para muita gente, mesmo na área de humanas, até hoje – ainda bem que isso tem sido cada vez mais questionado). Mediante a rotina facilitada pela tecnologia, a personagem se depara com uma inovação: um sistema operacional com inteligência artificial capaz de se relacionar com os humanos. A socialização entre homem e máquina se dá, de maneira mais intensa, por meio da voz e da sonoridade (a musicalidade) do que pela imagem (de fotos e vídeos, por exemplo). Mas, a grande importância do sistema lançado, além de sua interatividade, é sua capacidade de adaptação. O maior dilema do filme é instaurado por meio da inversão entre homem e máquina, uma vez que o sistema (representante do título do filme: ela) se caracteriza mais humano que o próprio homem (afinal, apresenta dilemas como o fato de não ter um corpo, liga para discutir a relação, aprende e se relacionar com outros sistemas e pessoas autonomamente etc). O protagonista se vê, ao longo do filme, numa relação com um sistema que o revela como máquina. Ele é mais programado que o próprio sistema e percebe o quão ausente é em seus relacionamentos. Essa compreensão não basta para que se modifique, mas altera o sistema, que, dada a mudança, abandona a personagem. Com isso, de novo, a história do protagonista se repete: ele se vê sozinho e precisa assumir sua incompetência interpessoal na vida em sociedade (essa, aliás, é a maior crítica reflexiva do filme). Figura 2: Cena do filme em tons vermelho e salmão. As cores são um elemento forte trabalhado no enunciado. Nuances de vermelho e salmão são apresentadas como marcas dos lugares onde o “amor” está presente. Ao iniciar uma relação afetiva com seu sistema, personificado como Samantha (Scarlett Johansson), instaura-se uma ironia: a maneira como as pessoas que cercam o protagonista agem, de forma natural com a relação constituída. Essa ironia é flagrada porque, na sociedade apresentada, relacionar-se (interagir) com máquinas e ser robotizado, individualizado ao extremo, é algo normal, típico do local e do tempo narrados. Como dito anteriormente, a voz ocupa o centro da cena, já que todas as ações realizadas entre homem e máquina ocorrem por comandos de voz (mesmo atos cotidianos simples como, por exemplo, ler ou escrever um e-mail são realizados dessa maneira – por meio de um comando de voz). A relação de Theodore e Samantha também está ligada por esse elemento. Por não ter um corpo físico, Samantha consegue se fazer presente por meio de sua voz enunciada. O cineasta Spike Jonze problematiza a “realidade” por meio da virtualidade da relação entre homens e máquinas, ao colocar à baila a atualidade em que nos encontramos, ao mesmo tempo de aproximação e distanciamento pela tecnologia. Por meio dessa problematização, temos situações que, personificadas por Theodore, refletem e refratam o cotidiano vivido em nossa sociedade, de uma oura maneira, tão flagrante quanto a narrada. O protagonista se vê em embate constante e ininterrupto com a virtualização de sua vida, não vivida presencialmente de outra maneira que não seja a interação com máquinas (seja o sistema operacional seja o videogame etc). Essa “realidade” não se refere apenas a Theodore, mas a Los Angeles retratada. Temos, por exemplo, informações sobre outras pessoas que vivem situações semelhantes à dele (como a de sua única amiga, entre outras). Há diversas cenas em que várias pessoas estão em locais públicos (ruas, elevadores etc), ligadas aos dispositivos tecnológicos, sem que tenham contato uma com a outra. Da mesma maneira, a dificuldade que o protagonista encontra para lidar com a mudança é outro elemento crítico. Até Samantha se adapta a um outro padrão de programação e muda, colocada, como máquina, mais flexível que o homem-máquina que nos tornamos. Theodore se relaciona com um sistema porque busca saciar seus desejos, sem se importar com as necessidades do outro, pois o vê como alguém à sua disposição, com a finalidade de estar ao seu dispor, quando lhe convier, sem anseios. Trata-se de uma relação narcísica, em que o outro é, de fato, literalmente, uma máquina ao bel prazer do sujeito. Todavia, a reviravolta narrativa ocorre discursivamente, pois o sistema possui vontades, adapta-se, sofre dilemas humanos e, por fim, abandona a relação doentia que se estabelece com um humano-máquina que só sabe olhar seu próprio umbigo e procura o outro apenas quando necessita. Com isso, a personagem descobre qual o seu grande problema nos relacionamentos: Theodore não consegue se desgrudar de si mesmo, não se preocupa com o outro, nada quer além de ser saciado. Aparentemente, o desejo é o de um amor infinito e imortal, mas, essencialmente, a relação se estabelece pela comodidade, por Theodore saber que há alguém (mesmo que seja uma voz programada de um sistema operacional) com quem possa contar e, com isso, tenta fugir de seus dilemas, de si mesmo, da solidão dura que o assola com o intuito humano de trazer à tona sua essência (não seu ego, mas seu self. Todavia, Theodore é só ego). Samantha representa a segurança de algo duradouro, contudo, apesar de se constituir como uma inteligência artificial projetada para responder às necessidades humanas, o sistema se apresenta como um “organismo vivo”, em pleno desenvolvimento e transformação (como o homem e como a linguagem). Não é à toa que o objeto de desejo de Theodore é “Ela”. O título remete à concepção que o protagonista possui de mulher: um objeto. “Her” não é “She”. “Her” é um pronome oblíquo que pode ser usado como possessivo. Benveniste (1989) diria que a terceira pessoa (seja do singular seja do plural) representa “a não-pessoa do discurso”, pois remete a quem ou a o que se fala. “Ela” é tema sobre o qual se volta a trama narrativa, ao menos, no nível aparente. Fundamentalmente, esse é o engodo. Se, por um lado, na superfície, parece que a narrativa se volta aos dilemas de um sujeito narcísico; discursivamente, os dilemas de Theodore pressupõem um outro, com quem se relaciona, mote flagrante de quem ele é, pois, como diz Bakhtin (1988), o sujeito se constitui a partir e por meio do outro. “Ela”, o sistema operacional, não é apenas assunto narrativo, mas também e principalmente sujeito que toma a ação para si, assumindo-se como “eu” discursivo. De objeto, desde o título, “Ela” passa a ser quem domina o discurso por meio de seus atos (Samantha é quem toma as atitudes com relação a si, a Theodore e na relação entre eles, nas mais variadas esferas – no trabalho, ao reunir suas cartas e enviar para uma editora que, encantada, resolve publicar um livro de Theodore; na vida pessoal, tanto de Theodore quanto dela, ao interagir com outros sistemas e pessoas, por exemplo; na relação, em busca de um corpo físico que a represente, ao ligar para Theodore para discutir a relação, entre outras questões). Por fim, Samantha deixa de ser “Ela” e passa a ser “eu-outro”, que, inclusive, escolhe deixar a relação e se transformar, demonstrando que tudo tem um fim e um novo começo, seja junto ou separadamente, pois cada sujeito (como todo enunciado) é único, irrepetível e individual (mesmo que social). Essas inversões entre máquina-humano e entre objeto-sujeito se referem à reflexão do enunciado fílmico. Ela-sistema é eu-outro (mulher) e eu-Theodore é ele-robô, incapaz de se relacionar, ainda que sofra por isso (homem). Outra análise, calcada nas teorias de gêneros (Butler) pode ser feita – mas essa fica para outro momento. No final do filme, quando o sistema revela que deixará de funcionar (abandonará Theodore), pois já não atende às suas expectativas de criação, o protagonista envia um e-mail para Catherine (Rooney Mara), sua ex-esposa, e diz o que sente. Finalmente, ele resolve se posicionar, assumir quem é, suas falhas (humanas) e se arriscar. No desespero de outro abandono, agora pela máquina, o sopro que o conscientiza acerca das imperfeições de suas relações vem do sistema-pessoa. Ao pensar na elaboração discursiva da obra e em nossa sociedade tecnológica, percebemos o quanto nos distanciamos do outro em prol de nós mesmos e, com isso, distanciamo-nos de nós mesmos, robotizamo-nos em nossas rotinas programadas (que muitos denominam ser vida), centrados em nossas feridas narcísicas. Ao invés de nos constituir com o outro, o utilizamos como máquina em prol de nossas necessidades. Quando percebemos que não nos conhecemos, culpamos o outro pela superficialidade das relações e pelo vazio existencial que nos aflige, deprime e gera pânico. O outro. Sempre ele (“Ela”) é o mote de nossos nós! Na contemporaneidade, também vivemos, ainda que de outra maneira, um pouco menos enfatizada, os comandos de voz (não as vozes, mas os comandos, esse é “x” da questão) que falseiam a proximidade com nossos outros externos, tão necessários à nossa própria constituição. As chamadas de voz representam, por um lado, um ganho que pode auxiliar a matar saudades e diminuir distâncias, muitas vezes necessárias; por outro, simulam uma presença que disfarça a solidão e afugenta a dor. Ninguém gosta de sentir dor, mas encarar quem somos dói e não há outro jeito de nos transformar. Ninguém envia mensagem de voz para discutir relação. As pessoas detestam colocar o dedo em suas feridas. Preferem fingir que estão bem e felizes. Vivemos uma era da felicidade artificial inexistente. Uma era vazia. Tão repleta de tecnologia e vazia de humanidade! Não acreditamos que a virtualidade substitui a presença. A tecnologia representa, por um lado, dinamicidade e, por outro, pensamos: até que ponto esse aparato não provoca uma distância entre os sujeitos? Se, por um lado, no filme, o sujeito se encara a partir da relação com um sistema, por outro, precisa o ser humano fugir tanto de si a ponto de ter que se relacionar com um outro não-humano, como se fosse um eu-mesmo, apenas para se contemplar ao invés de se transformar e interagir com os outros que o rodeiam? Isso significa ser sociável? Que sociedade é essa? Vemos as novas gerações, criadas com tablets, ipads e celulares desde muito cedo. Crianças choram pela atenção de seus pais, num impulso de vida que ainda não se adestrou, em busca de interação humana. Os adultos, com suas faces e mãos voltadas aos aparelhos eletrônicos, colocam seus dispositivos em frente dos bebês, para distrai-los, sem lhes dar o que exigem: contato. Ao nos depararmos com quadros como os citados, recordamos o filme Idiocracy (2006) (Idiocracia, no Brasil) e nos perguntamos se vamos, de fato, caminhar para uma sociedade narcísica idiotizada e consumista. Sem querermos ser pessimistas, tudo indica que sim e está em nossas mãos mudar e utilizar a tecnologia para aguçar a criticidade ao invés de o comodismo. Somos sujeitos sociais compostos por e de linguagem, dotados de necessidades e anseios emocionais. A conclusão do enunciado fílmico (especialmente voltado ao momento da despedida de Samantha, em que o sistema explica que vai para um lugar “entre as palavras”) traduz o entre-lugar vivido pelo homem: nem apenas indivíduo isolado nem coletivo massivo, sem vontade própria; nem felicidade plena nem dor exaustiva; nem primata sem tecnologia nem máquina sem sentimento. Theodore, após a despedida de Samantha, encontra-se com Amy (Amy Adams), sua única amiga. O encontro é constituído pelo silêncio e pela paixão, como aquele local onde os signos linguísticos não bastam e entram os signos enunciativos (não-verbais – o corpo, no caso): a troca de olhares, a pausa e o toque (Amy se deita no ombro do protagonista). Entendemos como lugar entre as palavras o não dito, o gesto, o corpo, a linguagem passional. Enfim, o que nos torna humanos, nosso élan de criação e/ou destruição, pulsão para a arte ou para a barbárie, como nos ensina Morin (2000). Basta saber como queremos e vamos usar essa energia. Fingir que ela não existe é impossível. Já tentamos fazer isso com a ênfase ao racionalismo e à logicidade e sabemos que não funciona porque a paixão nos escapa e que bom que assim seja, pois, dessa maneira, não nos docilizamos. Enquanto houver alguma fagulha de selvageria, ainda podemos nos considerar humanos. Não temos o intuito, com essa reflexão, de encontrar uma resposta sobre o que é ideal para a relação humana, mas buscamos entender, como sujeitos inseridos no contexto tecnológico, a maneira que essa grande operacionalização perpassa a construção do mundo e do homem, com o intuito de fomentar a pensarmos juntos quem somos nós, esses sujeitos “reais”-virtuais, homens-máquinas, Narcisos do século XXI. Referências: BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas. SP: Pontes, 1989. JONZE, S. ELA. Sony Pictures, 2013. (125 min). Título original: Her. JUDGE, M. IDIOCRACIA. Fox, 2006. (84 min). Título Original: Idiocracy. MORIN, E. Amor Poesia Sabedoria. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000.

  • UM LEITOR PARA O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA COUTO: ESBOÇO INACABADO DE UMA ANÁLISE INCONCLUSA

    José Radamés Benevides de Melo[1] Introdução Pensando o texto literário e sua leitura como fenômenos dialógicos é que vislumbramos a possibilidade de ter como objeto de estudo O último voo do flamingo, de Mia Couto, em diálogo com os (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais que são, alusivamente, retomados na constituição social de sentidos. É a partir desse diálogo, que surge nosso questionamento de pesquisa – como a alusão, enquanto estratégia de leitura, constitui o leitor-modelo do autor-modelo, pressuposto por nós, de O último voo do flamingo? Partindo dessa questão, pretendemos investigar a alusão como estratégia de leitura na constituição do leitor-modelo do autor-modelo, pressuposto por nós, de O último voo do flamingo. Para isso, entendemos que é preciso: 1) articular os conceitos de dialogismo, heterogeneidades constitutiva e enunciativa, alusão, autor e leitor-modelo e 2) articular de maneira dialógica a obra literária investigada com as teorias que nos fundamentam. Desse modo, concebemos o diálogo entre as teorias do dialogismo (BAKHTIN, 1980), da heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 1990) e da alusão (TORGA, 2001) com as teorias do autor e leitor-modelo (ECO, 1979, 1994) a fim de nos auxiliar no processo de leitura aqui proposto, já que a alusão, enquanto elemento heterogêneo, dialógico e discursivo que é, nos coloca em diálogo com os leitores de Mia Couto e com tudo o que é retomado, reconstruído, re-significado, num movimento de ir e vir de sentidos, promovido pela memória. Partindo dos conceitos de dialogismo e heterogeneidade para melhor compreensão e apresentação de nossa concepção de alusão enquanto estratégia de leitura, estabelecemos o diálogo dessa obra com os constructos teóricos aqui adotados, com o intuito de elaborar nosso leitor-modelo do autor-modelo pressuposto por nós de O último voo do flamingo. Em seguida, apresentamos o processo da nossa leitura dialógica fundada na alusão como estratégia de leitura… Dialogismo, heterogeneidade e alusão… Entendemos a narrativa romanesca a partir de uma perspectiva dialógica, já que, no romance, encontramos marcas de textos outros. Na perspectiva bakhtiniana, não se entende o diálogo somente como aquele que se dá face a face, mas também como a interação histórica e social de textos, discursos e/ou falas sociais que interagem de alguma forma com outros textos, discursos, enunciados, sujeitos. Brait (2005, p. 95) afirma que […] o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. O último voo do flamingo, como todo texto, é dialógico e apresenta referências, citações, intertextos, enfim, as marcas de outros enunciados que fazem parte de sua construção. O texto como enunciado concreto é, assim, ao mesmo tempo dialógico e heterogêneo, visto que dialoga com outros textos e falas sociais. É essa presença do outro, uma presença que pode ser ou não-marcada, que torna esse texto constitutivamente heterogêneo e dialógico. São as citações, referências, itálicos, aspas e também os elementos implícitos na estrutura da composição textual – aqueles que não são vistos nem percebidos através de elementos concretos, mas principalmente pelo trabalho da memória –, que o tornam heterogêneo. Essa noção de heterogeneidade está vinculada aos trabalhos de Authier-Revuz que, segundo Cardoso (2005, p. 88), “Para elaborar o conceito de heterogeneidade constitutiva, […] articula o conceito de dialogismo de Bakhtin com o seu de heterogeneidade constitutiva da linguagem.” Podemos dizer, dessa forma, que as teorias do dialogismo e da heterogeneidade da linguagem compõem um diálogo sócio-historicamente situado e constituído por seus autores e destinatários, já que, como afirma Bakhtin (2011), todo enunciado tem autor e está endereçado a alguém. Diante disso, a pesquisadora assinala que o dialogismo bakhtiniano “constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso” e arremata: “As palavras são, sempre e inevitavelmente, “as palavras dos outros”” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26-27). Ainda segundo ela, “Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28). Os elementos caracterizadores da heterogeneidade e do dialogismo têm sido entendidos como alusões, na perspectiva dialógico-dialética de Torga (2001). Para ela, “a alusão é a estratégia mediadora dos movimentos do intradiscurso, do interdiscurso, da intertextualidade” (TORGA, 2001, p. 7), e nós acrescentaríamos: da dialogia constitutiva de todo enunciado. Desse modo, compreendemos, neste texto, a produção do sentido para o enunciado na perspectiva do dialogismo, que, para Torga (2001), envolve, em alguma medida, a heterogeneidade e a alusão. Se a língua, os textos e as falas sociais são dialógicos, são, necessariamente, heterogêneos e alusivos. A alusão é uma estratégia de leitura mediada pela memória e que, por isso, mobiliza textos, falas sociais, esquecidos, sentidos através do diálogo com outros discursos, outros textos etc., no processo de construção de sentido. Podemos afirmar, assim, que as teorias do dialogismo e da heterogeneidade se encontram na teoria da alusão como compreendida por Torga (2001). Em Melo e Torga (2001, p. 140), afirmamos que, “Para realizar o movimento de sentido, a alusão exige da memória que resgate fragmentos, inteiros, partes, todos, esquecidos que, de alguma forma, estão relacionados com o texto a ser atualizado.” Assim, As alusões vão formando a figura do todo – a partir dos índices – pequenas citações, enquanto partes desse todo. Formam, elas, os nexos entre as pequenas partes e o todo que engloba estas partes com a ação dos significados da mediação que fazem o ir e vir da parte para o todo e vice-versa e indiciam as peças que o leitor empírico, vestido de leitor-modelo, vai articulando com o todo em reconstituição. (TORGA, 2001, p. 10) Por isso, a alusão se constitui num movimento que vai da(s) parte(s) para o todo, ou do todo para a(s) parte(s), ela “é esse movimento dialógico centro/margem/centro – todo/parte/todo – fenômeno/essência/fenômeno”, “O centro [que] alude à passagem que as margens indiciam nas entrelinhas, nas lacunas.” (TORGA, 2001, p. 13). É nesses movimentos alusivos que entrevemos o funcionamento da memória, medida pela alusão, responsável pelo entrelaçamento de enunciados, vozes sociais, interdiscursos, silêncios (ORLANDI, 2007) e esquecimentos na construção e constituição sócio-histórica de sentidos. Enquanto categoria de natureza discursiva, a memória é histórica e social, está imbricada, por isso, aos processos discursivo-ideológicos. Defendemos, assim, que a alusão é, além de uma categoria, uma estratégia dialógica e, inevitavelmente, heterogênea (aponta sempre para um outro, para um diferente, um exterior, num processo recíproco de constituição): “nenhum jogo alusivo se mantém se não houver a diferença entre todo e parte, logo a relação de parte e de todo é marcada constitutivamente pela heterogeneidade” (TORGA, 2001, p. 45). Nesse sentido, a alusão funciona na leitura e na escrita, nas dimensões do intra e do interdiscurso. Torga (2001) articula alusão e estratégia de leitura e de escrita. Como Eco (1979; 1994) concebe leitor e autor modelo enquanto estratégias de textualização, tanto o primeiro quanto o segundo podem ser constituídos, primordialmente, pela alusão. Eco (1979, p. 65) assim define autor e leitor modelos: Se Autor e Leitor-Modelo são duas estratégias textuais, encontramo-nos, então, face a uma situação dúplice. Por um lado, como dissemos há pouco, o autor empírico como sujeito da enunciação textual formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da sua própria estratégia, caracteriza-se a si próprio enquanto sujeito do enunciado, em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual. Mas por outro lado, também o leitor empírico como sujeito concreto dos actos de cooperação, deve esboçar uma hipótese de Autor, deduzindo-a, justamente, dos dados de estratégia textual. A hipótese formulada pelo leitor empírico acerca do seu Autor-Modelo parece mais segura do que aquela que o autor empírico formula acerca do seu Leitor-Modelo. De facto, o segundo deve postular alguma coisa que ainda não existe efectivamente, realizá-la como séries de operações textuais; o primeiro, pelo contrário, deduz uma imagem-tipo a partir de algo que se produziu anteriormente como acto de enunciação e que está presente, textualmente, como enunciado.” Eco deixa claro, nessa passagem, que a formulação da hipótese de um autor modelo é mais segura que a construção da hipótese de um leitor modelo pelo autor empírico. Isso se deve ao fato de o leitor empírico se valer do texto, que já está posto e a partir do qual, parte para, na interação com o texto, levantar a hipótese do autor modelo – e também a do leitor modelo. Tanto uma quanto outra emergem da relação dialógica estabelecida entre autor, texto e leitor. Dessa interação, fazem parte os intertextos, os interdiscursos (referências, citações, pastiches, alusões, memória etc.), já que é nesse jogo que o leitor faz o texto, “máquina preguiçosa”, funcionar (ECO, 1994, p. 9). Assim, compreendendo o leitor modelo como uma estratégia de leitura, podemos sustentar que essa estratégia, fundada nas categorias acima arroladas, é heterogênea e, sobretudo, dialógica. Tendo isso em vista, procuramos, no próximo tópico, angariar elementos de O último voo do flamingo que auxiliem na construção de um leitor modelo por meio da alusão para essa narrativa de Mia Couto… Um leitor em O último voo do flamingo O leitor modelo de O último voo do flamingo constituído na alusão funciona como uma estratégia de leitura dialógica, heterogênea e cooperativa na atualização, resgate e constituição de sentidos a partir do texto de Mia Couto. Nesse processo de leitura, nosso leitor modelo percebe, a partir da heterogeneidade discursivo-enunciativa de O último voo do flamingo, que há diferentes vozes sendo pronunciadas no romance em questão. É esse diálogo entre essas diversas vozes, entre nosso leitor modelo e essas vozes e entre estas e os (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais que possibilita o acontecimento de sentidos. A personagem tradudor de Tizangara indicia o resgate da simbologia do “tradutor” como aquele que medeia (media) a comunicação entre sujeitos pertencentes a culturas distintas e falantes de línguas diferentes. Essa função mediadora aparece, nas mitologias grega e romana, metaforizada na imagem de Hermes, cuja função é mediar a relação entre homens e deuses. Isso nos lembra da relação entre o europeu italiano Massimo Risi e o povo de Tizangara e toda a sua diversidade linguístico-cultural marcada pelo misticismo, religiosidade, senso do sagrado, mistérios, segredos, silêncios, mas também pelo contato com culturas outras, que pode ser classificado como um dos efeitos do processo de colonização de Tizangara, metonimicamente, de Moçambique. O povo africano, sagrado, orientado diariamente por uma cultura que funde o sagrado, o mitológico e o profano-humano, recebe a visita inusitada de um estrangeiro que pouco fala em português local e que, por isso, precisa da mediação do tradutor-“Hermes” para a comunicação acontecer. Limitado pelo pensamento racional do ocidente, pelo logocentrismo e pela lógica maniqueísta que orienta a vida dos ocidentais, Massimo Risi é mesmo um estranho (estrangeiro) no meio de uma gente cujos valores, costumes e crenças afrontam a linearidade do pensamento e da vida ocidentais. Entre esse povo-deus – porque sagrado, porque mítico – e Massimo Risi, há um tradutor-“Hermes”, aquele que mediará a relação entre o limitado estrangeiro e o povo-deus (sagrado, ilimitado). Todo tradutor é também um leitor, tudo o que lemos e conhecemos da vida em Moçambique, de suas lendas, de seus mitos é por intermédio desse tradutor-leitor que é também narrador. Ao limitado estrangeiro é apresentada uma Tizangara lida-traduzida-narrada, se pensarmos no leitor como aquele que invade, adentra, chega a espaços estranhos – no dizer do próprio Umberto Eco (1994), como aquele que passeia por bosques ficcionais –, tanto Massimo Risi quanto nós conhecemos-lemos a narrativa de Tizangara-Moçambique pelos olhos, pela voz e pela leitura-tradução-narração do tradutor de Tizangara cuja função é mediar a relação entre esse povo lendário-mítico-sagrado, enfim esse povo-deus, e os limitados leitores-estrangeiros que, perdidos diante de uma lógica distinta da ocidental, necessitam desse apoio para “passear por bosques ficcionais tão desconhecidos, exóticos, estranhos, até mesmo absurdos” aos olhos do leitor-estrangeiro e/ou do estrangeiro-leitor do ocidente. É também esse leitor-tradutor-narrador, complexo em sua constituição porque dialógico, heterogêneo e alusivo, o responsável pelo diálogo marcadamente heterogêneo entre as diferentes vozes que se mostram através de sua narração. No fio dessa narração, diversas vozes se colocam nas relações dialógicas estabelecidas ou em-si-estabelecendo tanto pelo leitor-tradutor-narrador de Tizangara quanto pelo nosso leitor-modelo que, com ele dialogando, retoma, através das partes, os todos ou quase todos dos diversos (inter)discursos, (inter)textos, falas sociais sugeridos discursiva e enunciativamente pelas lendas, mitos, histórias narradas pelo tradutor de Tizangara. É esse jogo entre parte e todo e parte que possibilita o trânsito dos sentidos que estão sempre num se constituindo, nunca estanques, mas sempre relacionais. Assim, ao narrar uma lenda de Tizangara, esse leitor-tradutor-narrador nos expõe a uma gama de pistas textual-discursivas que, alusivamente, mobilizam sentidos. Quando o olhar de nosso leitor modelo se volta para o(s) todo(s) de cujas partes temos conhecimento, a partir desse(s) todo(s), voltamos o olhar desse leitor para as partes que já não são as mesmas, uma vez que seu sentido de parte aparece agora influenciado, tomado pelos sentidos do(s) todo(s). É justamente essa relação alusiva entre parte (presente na narração) e todo (por ela retomado) que se dá o diálogo entre os diferentes discursos, falas sociais, textos, leitores e leituras. Fundar nosso leitor modelo na alusão é pôr em diálogo todos esses elementos já citados e, podemos dizer, acrescentar-lhes as teorias que nos fundamentam. Todos eles estão num constante diálogo responsável pela constituição de sentidos, já que é no diálogo de linguagens e vozes sociais que os sentidos são constituídos (BAKHTIN, 2010a). É a alusão responsável por esse diálogo entre teorias, texto literário, leitores e leituras, diálogo marcado e constituído a partir do outro e, por isso mesmo, heterogêneo. A alusão enquanto estratégia dialógica, heterogênea e cooperativa de leitura nos faz perceber o caráter simbólico da prostituta Ana Deus Queira e da personagem Temporina. A primeira traz um texto marcado pelos costumes, hábitos e crenças do povo de Tizangara. Temporina é, metaforicamente, e toda metáfora é também alusiva (TORGA, 2001), um elo entre passado, presente e futuro; nela, essas três instâncias do tempo se (i)materializam. Ela é, ao mesmo tempo, o antes, o durante e o depois, o que a torna incompreensível aos olhos da lógica ocidental de Massimo Risi. Simultaneamente, isso confere a Temporina um aspecto sagrado, místico, mítico, essas tríades encontram-se nela concentradas, como, aliás, é típico das metáforas (a concentração), como bem mostra Torga (2001). Em sua figura alusiva, veem-se marcas, ou partes, essas partes dialogam com um todo ou todo(s), e é nesse diálogo parte/todo/parte que acontece a ida e vinda de sentidos, mas não só entre Temporina e a Mitologia, entre temporina e a literatura, mas entre essas e as teorias que nos fundamentam, é justamente essa compreensão de que a linguagem é essencialmente dialógica (BAKHTIN, 2011; 2010a; 2010b), heterogênea (AUTHIER-REVUZ, 1990) e alusiva (TORGA, 2001) que nos possibilita mobilizar uma diversidade de (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais, ideologias, saberes para promover a construção dialógica e dialética de sentidos. Quando falamos em discursos, falas sociais, textos, falamos também no lugar discursivo que aqueles que os professam ocupam. Se a linguagem é dialógica, heterogênea e alusiva, uma das condições para que ela seja assim concebida são os aspectos contextuais de sua produção. Afinal, quando falamos em parte, consideramos o contexto em que essa parte aparece pronunciada, isso nos permite dizer que o mesmo elemento linguístico-literário pode adquirir significados distintos a depender das condições de sua enunciação. Por isso, precisamos, pelo menos como tentativa, delimitar o lugar discursivo de Temporina e do padre Muhando. Por considerarmos os comentários feitos a respeito do leitor-tradutor-narrador de Tizangara suficientes para a caracterização de seu lugar enunciativo, daqui por diante, dedicar-nos-emos a outros elementos da narrativa. Quem é Temporina? De onde ela fala? Isto é, de que lugar enunciativo Temporina pronuncia seus (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais? Já dissemos que Temporina faz alusão a saberes como o mitológico, o sagrado, o lendário, às crenças populares. Ela é identificada como um elemento místico dentro da Vila de Tizangara, afinal ninguém ousava olhar-se na face (e isso lembra a figura da medusa), o que por ela é dito assume sentidos místicos porque por ela é dito, diferentemente se fosse dito por Ana Deus Queira ou pelo padre Muhando. Suas palavras são carregadas de um peso e de sentidos pelos quais ela (a partir de seu lugar enunciativo) é responsável. E talvez seja por isso que suas alusões sejam também tão diversas e cheias de sentidos que parecem suplantar os limites do simbólico, assim como a própria Temporina. Um processo semelhante acontece com o padre Muhando. Com (inter)discursos, (inter)textos, falas sociais marcadamente místicos e ligados ao sobrenatural (para a lógica ocidental), talvez uma diferença seja seu lugar de cardeal oficial da Igreja Católica, o que parece ser suplantado pela força da cultura moçambicana, a Igreja de Moçambique é a mesma aos olhos do estrangeiro-leitor-ouvinte. O (inter)texto bíblico aparece fundido aos (inter)textos, discursos míticos de Tizangara. A apresentação do mito da criação da humanidade aparece associada à luz e muito mais à água do que a terra. A mulher é criada a partir de uma lágrima de Deus. Se levarmos em conta o valor simbólico da lágrima, sua associação à narrativa bíblica que orienta grande parte do ocidente, assim como sua ligação com o sofrimento, que orienta a compreensão desse estrangeiro-leitor-ouvinte, percebemos uma aproximação nos textos a respeito do lugar da mulher no mito da criação, com sua imagem vinculada ao sofrimento e sua criação posterior à do homem. Em O último voo do flamingo há várias narrativas, que não são apenas narrativas. Elas adquirem um outro valor simbólico, como podemos ver sugerido na epígrafe do livro, um agradecimento a Joana Tembe e a João Joãoquinho por contarem histórias como quem reza. As narrativas adquirem, dessa forma, mais um valor simbólico, além do que lhe é peculiar, aparece um outro, o religioso, o sagrado. Ora, é justamente essa presença do outro (BAKHTIN, 2011; 2010a; 2010b; AUTHIER-REVUZ, 1990) que confere à linguagem seu estatuto heterogêneo, dialógico e alusivo. E por isso, estrategicamente nos dirigimos ao todo, qual seja, o discurso religioso, é nessa ida ao todo e no retorno à parte que se constituem os sentidos e assim vislumbramos que talvez todo o povo de Tizangara assim o seja, pleno de sentidos que desafiem a lógica óbvia do estrangeiro-leitor-ouvinte do ocidente. Fui eu que transcrevi, em português visível (usa a língua do colonizador para falar ao mundo de sua própria cultura), as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue (uma relação visceral com a cultura), como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciamos tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. (…) Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima. (COUTO, 2005, p. 9) O tradutor assume aqui a sua função, apresentando-se como o personagem que narra (transcreve) o que viu e que ficou inscrito em sua memória, essas lembranças pesam-lhe na alma, são-lhe um estorvo, um obstáculo do qual ele quer se livrar. É nessa primeira escrita que se nos apresenta a voz do narrador de O último voo do flamingo. No fragmento, observa-se ainda a referência às diversas vozes e falas das quais as lembranças constituem o sujeito tradutor de Tizangara que as possui “cravadas no corpo”, de onde elas surgem. Assim, percebemos esse personagem/sujeito fundado na heterogeneidade e, portanto, no dialogismo. A presença do outro na sua constituição é que nos possibilita concebê-lo enquanto sujeito heterogêneo, transpassado pelas diversas vozes e falas que, inscritas não na sua memória mas no seu corpo, fazem-no num fazendo, num constante constituindo-se. O que, aliás, está de acordo com o que Authier-Revuz (1990) defende quando apresenta a discussão sobre a heterogeneidade constitutiva da linguagem. Vale lembrar que, naquela ocasião, a autora francesa se apropria de alguns constructos da psicanálise lacaniana, principalmente os referentes à constituição do sujeito e, numa articulação entre dialogismo, linguística e psicanálise, nos apresenta a discussão sobre a heterogeneidade na linguagem. Parece-nos que o personagem-tradutor-narrador, de O último voo do flamingo se apresenta como esse sujeito constituído a partir do(s) outro(s), marcadamente heterogêneo, cuja memória, também integrante desse processo, ajuda-nos, através de suas alusões, na leitura ora proposta para esse texto de Mia Couto. Os movimentos do Couto-autor inscrevem na narrativa um tradutor-narrador-autor que, num movimento de ida e vinda, forja um tradutor-narrador-leitor – já que essa personagem escreve enquanto autor, quando assume o lugar do tradutor-narrador, mas também o de leitor, quando, como autor, lê sua própria tradução ao assumir o lugar de Massimo Risi. Teríamos, então, um jogo entre esse autor modelo que desempenha as funções de autor e de leitor. E, por isso, poderíamos dizer que esse autor modelo se constitui na junção dessas duas funções, desses dois papéis, desses dois lugares. Ele se constitui, enquanto todo, nas partes. É preciso, dessa forma, haver o diálogo entre essas partes e esse todo e é justamente nesse jogo entre partes/todo/partes que passeia nosso leitor modelo fundado na alusão. O tradutor é mesmo a condensação, num movimento metafórico do ‘um’ e do ‘outro’. É ele quem escreve, mas também é ele quem lê. Afinal, o ato de traduzir condensa, pelo menos, as duas operações. O nosso autor modelo também lê, por trás de Massimo Risi, sua própria narrativa. Escreve em língua portuguesa, a língua do colonizador, do outro, um conhecimento diverso ao próprio leitor, mas que só ele, enquanto tradutor, consegue ou pode autorizar o leitor a ler, engendrando, constituindo assim um leitor; sem o qual, não seria autor. Esse leitor é Massimo Risi, parte de um autor (o narrador-tradutor)… *          *          * Se dissemos anteriormente que, enquanto leitores, também somos estrangeiros (Massimo Risi é a metáfora desse leitor-estrangeiro que lê-ouve a narrativa do tradutor). Esse mesmo Mássimo Risi é a inscrição/invasão de um leitor (estrangeiro) no texto. É o movimento típico da metáfora e de suas alusões: a personagem Massimo Risi concentra em si a figura do leitor-tradutor (parte de nosso autor modelo) e a figura de um leitor inscrito no texto (parte de um possível/previsto leitor modelo). Assim, nosso leitor modelo, fundado na alusão, é revelador, pois nos diz, a partir do diálogo parte/todo/parte que, se a identidade se constrói no outro, o narrador-tradutor se constitui no seu outro, a saber, Massimo Risi, um é parte do outro, e vice-versa, na constituição de um todo, que não existe sem suas partes, sem seu outro. É esse autor inscrito na obra que deixa pistas para que nós, a partir delas, constituamos nosso leitor modelo. Se entendemos pistas como alusões, nosso leitor modelo, isto é, nossa estratégia de leitura, é alusiva… Referências AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos: o discurso e suas análises, Campinas (SP), v. 19, p. 25-42, jul.-dez. 1990. Disponível em: . Acesso em: 10 jan 2009. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini et al. 6 ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2010a. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b. BRAIT, B. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. CARDOSO, S. H. B. Discurso e ensino. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica/FALE-UFMG, 2005. COUTO, M. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ECO, U. O Leitor Modelo. In. Lector in Fabula: leitura do texto literário. Lisboa: Editorial Presença, 1979. p. 53-70. ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. MELO, J. R. B.; TORGA, V. L. M. A alusão como estratégia textual da leitura de O mistério da Casa Verde em diálogo com O alienista. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras, Franca (SP), v. 7, n. 1, p. 131-152, jan.-jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 mar 2012. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. TORGA, V. L. M. Movimento de sentido da alusão: uma estratégia textual da leitura de ler, escrever e fazer conta de cabeça, de Bartolomeu Campos Queirós. 2001. 98 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Letras. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001. [1] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da professora Luciane de Paula. #autor #diálogo #Estética #intertextualidade

  • UM LEITOR PARA O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA COUTO: ESBOÇO INACABADO DE UMA ANÁLISE INCONCLUSA

    José Radamés Benevides de Melo[1] Introdução Pensando o texto literário e sua leitura como fenômenos dialógicos é que vislumbramos a possibilidade de ter como objeto de estudo O último voo do flamingo, de Mia Couto, em diálogo com os (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais que são, alusivamente, retomados na constituição social de sentidos. É a partir desse diálogo, que surge nosso questionamento de pesquisa – como a alusão, enquanto estratégia de leitura, constitui o leitor-modelo do autor-modelo, pressuposto por nós, de O último voo do flamingo? Partindo dessa questão, pretendemos investigar a alusão como estratégia de leitura na constituição do leitor-modelo do autor-modelo, pressuposto por nós, de O último voo do flamingo. Para isso, entendemos que é preciso: 1) articular os conceitos de dialogismo, heterogeneidades constitutiva e enunciativa, alusão, autor e leitor-modelo e 2) articular de maneira dialógica a obra literária investigada com as teorias que nos fundamentam. Desse modo, concebemos o diálogo entre as teorias do dialogismo (BAKHTIN, 1980), da heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 1990) e da alusão (TORGA, 2001) com as teorias do autor e leitor-modelo (ECO, 1979, 1994) a fim de nos auxiliar no processo de leitura aqui proposto, já que a alusão, enquanto elemento heterogêneo, dialógico e discursivo que é, nos coloca em diálogo com os leitores de Mia Couto e com tudo o que é retomado, reconstruído, re-significado, num movimento de ir e vir de sentidos, promovido pela memória. Partindo dos conceitos de dialogismo e heterogeneidade para melhor compreensão e apresentação de nossa concepção de alusão enquanto estratégia de leitura, estabelecemos o diálogo dessa obra com os constructos teóricos aqui adotados, com o intuito de elaborar nosso leitor-modelo do autor-modelo pressuposto por nós de O último voo do flamingo. Em seguida, apresentamos o processo da nossa leitura dialógica fundada na alusão como estratégia de leitura… Dialogismo, heterogeneidade e alusão… Entendemos a narrativa romanesca a partir de uma perspectiva dialógica, já que, no romance, encontramos marcas de textos outros. Na perspectiva bakhtiniana, não se entende o diálogo somente como aquele que se dá face a face, mas também como a interação histórica e social de textos, discursos e/ou falas sociais que interagem de alguma forma com outros textos, discursos, enunciados, sujeitos. Brait (2005, p. 95) afirma que […] o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem. O último voo do flamingo, como todo texto, é dialógico e apresenta referências, citações, intertextos, enfim, as marcas de outros enunciados que fazem parte de sua construção. O texto como enunciado concreto é, assim, ao mesmo tempo dialógico e heterogêneo, visto que dialoga com outros textos e falas sociais. É essa presença do outro, uma presença que pode ser ou não-marcada, que torna esse texto constitutivamente heterogêneo e dialógico. São as citações, referências, itálicos, aspas e também os elementos implícitos na estrutura da composição textual – aqueles que não são vistos nem percebidos através de elementos concretos, mas principalmente pelo trabalho da memória –, que o tornam heterogêneo. Essa noção de heterogeneidade está vinculada aos trabalhos de Authier-Revuz que, segundo Cardoso (2005, p. 88), “Para elaborar o conceito de heterogeneidade constitutiva, […] articula o conceito de dialogismo de Bakhtin com o seu de heterogeneidade constitutiva da linguagem.” Podemos dizer, dessa forma, que as teorias do dialogismo e da heterogeneidade da linguagem compõem um diálogo sócio-historicamente situado e constituído por seus autores e destinatários, já que, como afirma Bakhtin (2011), todo enunciado tem autor e está endereçado a alguém. Diante disso, a pesquisadora assinala que o dialogismo bakhtiniano “constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso” e arremata: “As palavras são, sempre e inevitavelmente, “as palavras dos outros”” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26-27). Ainda segundo ela, “Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28). Os elementos caracterizadores da heterogeneidade e do dialogismo têm sido entendidos como alusões, na perspectiva dialógico-dialética de Torga (2001). Para ela, “a alusão é a estratégia mediadora dos movimentos do intradiscurso, do interdiscurso, da intertextualidade” (TORGA, 2001, p. 7), e nós acrescentaríamos: da dialogia constitutiva de todo enunciado. Desse modo, compreendemos, neste texto, a produção do sentido para o enunciado na perspectiva do dialogismo, que, para Torga (2001), envolve, em alguma medida, a heterogeneidade e a alusão. Se a língua, os textos e as falas sociais são dialógicos, são, necessariamente, heterogêneos e alusivos. A alusão é uma estratégia de leitura mediada pela memória e que, por isso, mobiliza textos, falas sociais, esquecidos, sentidos através do diálogo com outros discursos, outros textos etc., no processo de construção de sentido. Podemos afirmar, assim, que as teorias do dialogismo e da heterogeneidade se encontram na teoria da alusão como compreendida por Torga (2001). Em Melo e Torga (2001, p. 140), afirmamos que, “Para realizar o movimento de sentido, a alusão exige da memória que resgate fragmentos, inteiros, partes, todos, esquecidos que, de alguma forma, estão relacionados com o texto a ser atualizado.” Assim, As alusões vão formando a figura do todo – a partir dos índices – pequenas citações, enquanto partes desse todo. Formam, elas, os nexos entre as pequenas partes e o todo que engloba estas partes com a ação dos significados da mediação que fazem o ir e vir da parte para o todo e vice-versa e indiciam as peças que o leitor empírico, vestido de leitor-modelo, vai articulando com o todo em reconstituição. (TORGA, 2001, p. 10) Por isso, a alusão se constitui num movimento que vai da(s) parte(s) para o todo, ou do todo para a(s) parte(s), ela “é esse movimento dialógico centro/margem/centro – todo/parte/todo – fenômeno/essência/fenômeno”, “O centro [que] alude à passagem que as margens indiciam nas entrelinhas, nas lacunas.” (TORGA, 2001, p. 13). É nesses movimentos alusivos que entrevemos o funcionamento da memória, medida pela alusão, responsável pelo entrelaçamento de enunciados, vozes sociais, interdiscursos, silêncios (ORLANDI, 2007) e esquecimentos na construção e constituição sócio-histórica de sentidos. Enquanto categoria de natureza discursiva, a memória é histórica e social, está imbricada, por isso, aos processos discursivo-ideológicos. Defendemos, assim, que a alusão é, além de uma categoria, uma estratégia dialógica e, inevitavelmente, heterogênea (aponta sempre para um outro, para um diferente, um exterior, num processo recíproco de constituição): “nenhum jogo alusivo se mantém se não houver a diferença entre todo e parte, logo a relação de parte e de todo é marcada constitutivamente pela heterogeneidade” (TORGA, 2001, p. 45). Nesse sentido, a alusão funciona na leitura e na escrita, nas dimensões do intra e do interdiscurso. Torga (2001) articula alusão e estratégia de leitura e de escrita. Como Eco (1979; 1994) concebe leitor e autor modelo enquanto estratégias de textualização, tanto o primeiro quanto o segundo podem ser constituídos, primordialmente, pela alusão. Eco (1979, p. 65) assim define autor e leitor modelos: Se Autor e Leitor-Modelo são duas estratégias textuais, encontramo-nos, então, face a uma situação dúplice. Por um lado, como dissemos há pouco, o autor empírico como sujeito da enunciação textual formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da sua própria estratégia, caracteriza-se a si próprio enquanto sujeito do enunciado, em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual. Mas por outro lado, também o leitor empírico como sujeito concreto dos actos de cooperação, deve esboçar uma hipótese de Autor, deduzindo-a, justamente, dos dados de estratégia textual. A hipótese formulada pelo leitor empírico acerca do seu Autor-Modelo parece mais segura do que aquela que o autor empírico formula acerca do seu Leitor-Modelo. De facto, o segundo deve postular alguma coisa que ainda não existe efectivamente, realizá-la como séries de operações textuais; o primeiro, pelo contrário, deduz uma imagem-tipo a partir de algo que se produziu anteriormente como acto de enunciação e que está presente, textualmente, como enunciado.” Eco deixa claro, nessa passagem, que a formulação da hipótese de um autor modelo é mais segura que a construção da hipótese de um leitor modelo pelo autor empírico. Isso se deve ao fato de o leitor empírico se valer do texto, que já está posto e a partir do qual, parte para, na interação com o texto, levantar a hipótese do autor modelo – e também a do leitor modelo. Tanto uma quanto outra emergem da relação dialógica estabelecida entre autor, texto e leitor. Dessa interação, fazem parte os intertextos, os interdiscursos (referências, citações, pastiches, alusões, memória etc.), já que é nesse jogo que o leitor faz o texto, “máquina preguiçosa”, funcionar (ECO, 1994, p. 9). Assim, compreendendo o leitor modelo como uma estratégia de leitura, podemos sustentar que essa estratégia, fundada nas categorias acima arroladas, é heterogênea e, sobretudo, dialógica. Tendo isso em vista, procuramos, no próximo tópico, angariar elementos de O último voo do flamingo que auxiliem na construção de um leitor modelo por meio da alusão para essa narrativa de Mia Couto… Um leitor em O último voo do flamingo O leitor modelo de O último voo do flamingo constituído na alusão funciona como uma estratégia de leitura dialógica, heterogênea e cooperativa na atualização, resgate e constituição de sentidos a partir do texto de Mia Couto. Nesse processo de leitura, nosso leitor modelo percebe, a partir da heterogeneidade discursivo-enunciativa de O último voo do flamingo, que há diferentes vozes sendo pronunciadas no romance em questão. É esse diálogo entre essas diversas vozes, entre nosso leitor modelo e essas vozes e entre estas e os (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais que possibilita o acontecimento de sentidos. A personagem tradudor de Tizangara indicia o resgate da simbologia do “tradutor” como aquele que medeia (media) a comunicação entre sujeitos pertencentes a culturas distintas e falantes de línguas diferentes. Essa função mediadora aparece, nas mitologias grega e romana, metaforizada na imagem de Hermes, cuja função é mediar a relação entre homens e deuses. Isso nos lembra da relação entre o europeu italiano Massimo Risi e o povo de Tizangara e toda a sua diversidade linguístico-cultural marcada pelo misticismo, religiosidade, senso do sagrado, mistérios, segredos, silêncios, mas também pelo contato com culturas outras, que pode ser classificado como um dos efeitos do processo de colonização de Tizangara, metonimicamente, de Moçambique. O povo africano, sagrado, orientado diariamente por uma cultura que funde o sagrado, o mitológico e o profano-humano, recebe a visita inusitada de um estrangeiro que pouco fala em português local e que, por isso, precisa da mediação do tradutor-“Hermes” para a comunicação acontecer. Limitado pelo pensamento racional do ocidente, pelo logocentrismo e pela lógica maniqueísta que orienta a vida dos ocidentais, Massimo Risi é mesmo um estranho (estrangeiro) no meio de uma gente cujos valores, costumes e crenças afrontam a linearidade do pensamento e da vida ocidentais. Entre esse povo-deus – porque sagrado, porque mítico – e Massimo Risi, há um tradutor-“Hermes”, aquele que mediará a relação entre o limitado estrangeiro e o povo-deus (sagrado, ilimitado). Todo tradutor é também um leitor, tudo o que lemos e conhecemos da vida em Moçambique, de suas lendas, de seus mitos é por intermédio desse tradutor-leitor que é também narrador. Ao limitado estrangeiro é apresentada uma Tizangara lida-traduzida-narrada, se pensarmos no leitor como aquele que invade, adentra, chega a espaços estranhos – no dizer do próprio Umberto Eco (1994), como aquele que passeia por bosques ficcionais –, tanto Massimo Risi quanto nós conhecemos-lemos a narrativa de Tizangara-Moçambique pelos olhos, pela voz e pela leitura-tradução-narração do tradutor de Tizangara cuja função é mediar a relação entre esse povo lendário-mítico-sagrado, enfim esse povo-deus, e os limitados leitores-estrangeiros que, perdidos diante de uma lógica distinta da ocidental, necessitam desse apoio para “passear por bosques ficcionais tão desconhecidos, exóticos, estranhos, até mesmo absurdos” aos olhos do leitor-estrangeiro e/ou do estrangeiro-leitor do ocidente. É também esse leitor-tradutor-narrador, complexo em sua constituição porque dialógico, heterogêneo e alusivo, o responsável pelo diálogo marcadamente heterogêneo entre as diferentes vozes que se mostram através de sua narração. No fio dessa narração, diversas vozes se colocam nas relações dialógicas estabelecidas ou em-si-estabelecendo tanto pelo leitor-tradutor-narrador de Tizangara quanto pelo nosso leitor-modelo que, com ele dialogando, retoma, através das partes, os todos ou quase todos dos diversos (inter)discursos, (inter)textos, falas sociais sugeridos discursiva e enunciativamente pelas lendas, mitos, histórias narradas pelo tradutor de Tizangara. É esse jogo entre parte e todo e parte que possibilita o trânsito dos sentidos que estão sempre num se constituindo, nunca estanques, mas sempre relacionais. Assim, ao narrar uma lenda de Tizangara, esse leitor-tradutor-narrador nos expõe a uma gama de pistas textual-discursivas que, alusivamente, mobilizam sentidos. Quando o olhar de nosso leitor modelo se volta para o(s) todo(s) de cujas partes temos conhecimento, a partir desse(s) todo(s), voltamos o olhar desse leitor para as partes que já não são as mesmas, uma vez que seu sentido de parte aparece agora influenciado, tomado pelos sentidos do(s) todo(s). É justamente essa relação alusiva entre parte (presente na narração) e todo (por ela retomado) que se dá o diálogo entre os diferentes discursos, falas sociais, textos, leitores e leituras. Fundar nosso leitor modelo na alusão é pôr em diálogo todos esses elementos já citados e, podemos dizer, acrescentar-lhes as teorias que nos fundamentam. Todos eles estão num constante diálogo responsável pela constituição de sentidos, já que é no diálogo de linguagens e vozes sociais que os sentidos são constituídos (BAKHTIN, 2010a). É a alusão responsável por esse diálogo entre teorias, texto literário, leitores e leituras, diálogo marcado e constituído a partir do outro e, por isso mesmo, heterogêneo. A alusão enquanto estratégia dialógica, heterogênea e cooperativa de leitura nos faz perceber o caráter simbólico da prostituta Ana Deus Queira e da personagem Temporina. A primeira traz um texto marcado pelos costumes, hábitos e crenças do povo de Tizangara. Temporina é, metaforicamente, e toda metáfora é também alusiva (TORGA, 2001), um elo entre passado, presente e futuro; nela, essas três instâncias do tempo se (i)materializam. Ela é, ao mesmo tempo, o antes, o durante e o depois, o que a torna incompreensível aos olhos da lógica ocidental de Massimo Risi. Simultaneamente, isso confere a Temporina um aspecto sagrado, místico, mítico, essas tríades encontram-se nela concentradas, como, aliás, é típico das metáforas (a concentração), como bem mostra Torga (2001). Em sua figura alusiva, veem-se marcas, ou partes, essas partes dialogam com um todo ou todo(s), e é nesse diálogo parte/todo/parte que acontece a ida e vinda de sentidos, mas não só entre Temporina e a Mitologia, entre temporina e a literatura, mas entre essas e as teorias que nos fundamentam, é justamente essa compreensão de que a linguagem é essencialmente dialógica (BAKHTIN, 2011; 2010a; 2010b), heterogênea (AUTHIER-REVUZ, 1990) e alusiva (TORGA, 2001) que nos possibilita mobilizar uma diversidade de (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais, ideologias, saberes para promover a construção dialógica e dialética de sentidos. Quando falamos em discursos, falas sociais, textos, falamos também no lugar discursivo que aqueles que os professam ocupam. Se a linguagem é dialógica, heterogênea e alusiva, uma das condições para que ela seja assim concebida são os aspectos contextuais de sua produção. Afinal, quando falamos em parte, consideramos o contexto em que essa parte aparece pronunciada, isso nos permite dizer que o mesmo elemento linguístico-literário pode adquirir significados distintos a depender das condições de sua enunciação. Por isso, precisamos, pelo menos como tentativa, delimitar o lugar discursivo de Temporina e do padre Muhando. Por considerarmos os comentários feitos a respeito do leitor-tradutor-narrador de Tizangara suficientes para a caracterização de seu lugar enunciativo, daqui por diante, dedicar-nos-emos a outros elementos da narrativa. Quem é Temporina? De onde ela fala? Isto é, de que lugar enunciativo Temporina pronuncia seus (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais? Já dissemos que Temporina faz alusão a saberes como o mitológico, o sagrado, o lendário, às crenças populares. Ela é identificada como um elemento místico dentro da Vila de Tizangara, afinal ninguém ousava olhar-se na face (e isso lembra a figura da medusa), o que por ela é dito assume sentidos místicos porque por ela é dito, diferentemente se fosse dito por Ana Deus Queira ou pelo padre Muhando. Suas palavras são carregadas de um peso e de sentidos pelos quais ela (a partir de seu lugar enunciativo) é responsável. E talvez seja por isso que suas alusões sejam também tão diversas e cheias de sentidos que parecem suplantar os limites do simbólico, assim como a própria Temporina. Um processo semelhante acontece com o padre Muhando. Com (inter)discursos, (inter)textos, falas sociais marcadamente místicos e ligados ao sobrenatural (para a lógica ocidental), talvez uma diferença seja seu lugar de cardeal oficial da Igreja Católica, o que parece ser suplantado pela força da cultura moçambicana, a Igreja de Moçambique é a mesma aos olhos do estrangeiro-leitor-ouvinte. O (inter)texto bíblico aparece fundido aos (inter)textos, discursos míticos de Tizangara. A apresentação do mito da criação da humanidade aparece associada à luz e muito mais à água do que a terra. A mulher é criada a partir de uma lágrima de Deus. Se levarmos em conta o valor simbólico da lágrima, sua associação à narrativa bíblica que orienta grande parte do ocidente, assim como sua ligação com o sofrimento, que orienta a compreensão desse estrangeiro-leitor-ouvinte, percebemos uma aproximação nos textos a respeito do lugar da mulher no mito da criação, com sua imagem vinculada ao sofrimento e sua criação posterior à do homem. Em O último voo do flamingo há várias narrativas, que não são apenas narrativas. Elas adquirem um outro valor simbólico, como podemos ver sugerido na epígrafe do livro, um agradecimento a Joana Tembe e a João Joãoquinho por contarem histórias como quem reza. As narrativas adquirem, dessa forma, mais um valor simbólico, além do que lhe é peculiar, aparece um outro, o religioso, o sagrado. Ora, é justamente essa presença do outro (BAKHTIN, 2011; 2010a; 2010b; AUTHIER-REVUZ, 1990) que confere à linguagem seu estatuto heterogêneo, dialógico e alusivo. E por isso, estrategicamente nos dirigimos ao todo, qual seja, o discurso religioso, é nessa ida ao todo e no retorno à parte que se constituem os sentidos e assim vislumbramos que talvez todo o povo de Tizangara assim o seja, pleno de sentidos que desafiem a lógica óbvia do estrangeiro-leitor-ouvinte do ocidente. Fui eu que transcrevi, em português visível (usa a língua do colonizador para falar ao mundo de sua própria cultura), as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue (uma relação visceral com a cultura), como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciamos tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. (…) Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima. (COUTO, 2005, p. 9) O tradutor assume aqui a sua função, apresentando-se como o personagem que narra (transcreve) o que viu e que ficou inscrito em sua memória, essas lembranças pesam-lhe na alma, são-lhe um estorvo, um obstáculo do qual ele quer se livrar. É nessa primeira escrita que se nos apresenta a voz do narrador de O último voo do flamingo. No fragmento, observa-se ainda a referência às diversas vozes e falas das quais as lembranças constituem o sujeito tradutor de Tizangara que as possui “cravadas no corpo”, de onde elas surgem. Assim, percebemos esse personagem/sujeito fundado na heterogeneidade e, portanto, no dialogismo. A presença do outro na sua constituição é que nos possibilita concebê-lo enquanto sujeito heterogêneo, transpassado pelas diversas vozes e falas que, inscritas não na sua memória mas no seu corpo, fazem-no num fazendo, num constante constituindo-se. O que, aliás, está de acordo com o que Authier-Revuz (1990) defende quando apresenta a discussão sobre a heterogeneidade constitutiva da linguagem. Vale lembrar que, naquela ocasião, a autora francesa se apropria de alguns constructos da psicanálise lacaniana, principalmente os referentes à constituição do sujeito e, numa articulação entre dialogismo, linguística e psicanálise, nos apresenta a discussão sobre a heterogeneidade na linguagem. Parece-nos que o personagem-tradutor-narrador, de O último voo do flamingo se apresenta como esse sujeito constituído a partir do(s) outro(s), marcadamente heterogêneo, cuja memória, também integrante desse processo, ajuda-nos, através de suas alusões, na leitura ora proposta para esse texto de Mia Couto. Os movimentos do Couto-autor inscrevem na narrativa um tradutor-narrador-autor que, num movimento de ida e vinda, forja um tradutor-narrador-leitor – já que essa personagem escreve enquanto autor, quando assume o lugar do tradutor-narrador, mas também o de leitor, quando, como autor, lê sua própria tradução ao assumir o lugar de Massimo Risi. Teríamos, então, um jogo entre esse autor modelo que desempenha as funções de autor e de leitor. E, por isso, poderíamos dizer que esse autor modelo se constitui na junção dessas duas funções, desses dois papéis, desses dois lugares. Ele se constitui, enquanto todo, nas partes. É preciso, dessa forma, haver o diálogo entre essas partes e esse todo e é justamente nesse jogo entre partes/todo/partes que passeia nosso leitor modelo fundado na alusão. O tradutor é mesmo a condensação, num movimento metafórico do ‘um’ e do ‘outro’. É ele quem escreve, mas também é ele quem lê. Afinal, o ato de traduzir condensa, pelo menos, as duas operações. O nosso autor modelo também lê, por trás de Massimo Risi, sua própria narrativa. Escreve em língua portuguesa, a língua do colonizador, do outro, um conhecimento diverso ao próprio leitor, mas que só ele, enquanto tradutor, consegue ou pode autorizar o leitor a ler, engendrando, constituindo assim um leitor; sem o qual, não seria autor. Esse leitor é Massimo Risi, parte de um autor (o narrador-tradutor)… *          *          * Se dissemos anteriormente que, enquanto leitores, também somos estrangeiros (Massimo Risi é a metáfora desse leitor-estrangeiro que lê-ouve a narrativa do tradutor). Esse mesmo Mássimo Risi é a inscrição/invasão de um leitor (estrangeiro) no texto. É o movimento típico da metáfora e de suas alusões: a personagem Massimo Risi concentra em si a figura do leitor-tradutor (parte de nosso autor modelo) e a figura de um leitor inscrito no texto (parte de um possível/previsto leitor modelo). Assim, nosso leitor modelo, fundado na alusão, é revelador, pois nos diz, a partir do diálogo parte/todo/parte que, se a identidade se constrói no outro, o narrador-tradutor se constitui no seu outro, a saber, Massimo Risi, um é parte do outro, e vice-versa, na constituição de um todo, que não existe sem suas partes, sem seu outro. É esse autor inscrito na obra que deixa pistas para que nós, a partir delas, constituamos nosso leitor modelo. Se entendemos pistas como alusões, nosso leitor modelo, isto é, nossa estratégia de leitura, é alusiva… Referências AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos: o discurso e suas análises, Campinas (SP), v. 19, p. 25-42, jul.-dez. 1990. Disponível em: . Acesso em: 10 jan 2009. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini et al. 6 ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2010a. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b. BRAIT, B. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2005. CARDOSO, S. H. B. Discurso e ensino. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica/FALE-UFMG, 2005. COUTO, M. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ECO, U. O Leitor Modelo. In. Lector in Fabula: leitura do texto literário. Lisboa: Editorial Presença, 1979. p. 53-70. ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. MELO, J. R. B.; TORGA, V. L. M. A alusão como estratégia textual da leitura de O mistério da Casa Verde em diálogo com O alienista. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras, Franca (SP), v. 7, n. 1, p. 131-152, jan.-jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 mar 2012. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. TORGA, V. L. M. Movimento de sentido da alusão: uma estratégia textual da leitura de ler, escrever e fazer conta de cabeça, de Bartolomeu Campos Queirós. 2001. 98 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Letras. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001. [1] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da professora Luciane de Paula. #autor #diálogo #Estética #intertextualidade

  • Contribuições dos estudos discursivos para uma professora formadora em formação

    Karin Adriane Henschel Pobbe Ramos I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I – I took the one less traveled by, And that has made all the difference. (Robert Frost) Refletindo a respeito de minhas experiências de professora de português, tanto na educação básica quanto no ensino superior, ponho-me a pensar sobre as contribuições do campo dos Estudos Discursivos para a minha formação. Filha de professor de português e agora professora da disciplina de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado de Língua e Literaturas Vernáculas para um curso de Letras, portanto, formadora de professores de português, percebo uma grande mudança nas perspectivas para se trabalhar com a língua materna nas escolas. Quando frequentava o ensino fundamental e médio, já me punha a questionar as razões para ter de se decorar tantas listas, repletas de exceções, tantas classificações e análises de eventos que pareciam tão distante daquele veículo de comunicação que me possibilitava interagir com o mundo e descobrir coisas tão fascinantes. Recordo-me de, em um dado momento, já que não podia ser diferente, ter me embrenhado nas explicações que encontrava a respeito das questões da língua portuguesa nas muitas gramáticas que povoavam as estantes lá de casa. Sabia de cor todas as classes gramaticais e suas características, todos os elementos da sintaxe e suas análises. Mas alguma coisa não encaixava. Acredito que essa inquietação levou-me a optar pelo curso de Letras na graduação. Já na universidade, comecei a ter contato com outras maneiras de se observar e descrever os eventos linguísticos. Mas ainda era um viés estruturalista que tomava como objeto uma língua homogênea, estática, descontextualizada. E muita Linguística Textual, em franca ascensão na época. Formei-me em 1991. Em 1992, fiz a inscrição para o concurso de PIII (Professor III) da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo. O exame aconteceu apenas no ano seguinte. Passei, consegui uma boa classificação que me possibilitou escolher uma escola da rede estadual de Assis mesmo. Tomei posse somente em agosto de 1994. Enfim, efetiva, dona do meu cargo, depois de tanto tempo atuando como eventual, substituta, ACT, caindo de paraquedas nas turmas, sem tempo de dizer a que vinha. Mas, a cena que me vinha à lembrança era de dois caminhos que se bifurcavam diante de mim. Por onde começar? O que ensinar? Sabia o que eu não queria ensinar, entretanto não tinha muita noção de pelo que substituir a gramática tradicional. Por influência da minha formação, muito focada na Linguística Textual, já sabia que o texto deveria ser o protagonista, mas como? Fui tateando e, empiricamente, aos poucos, conseguia propor atividades que não privilegiassem o trabalho descontextualizado com a língua na sala de aula. Entretanto, faltavam respostas para minhas inquietações de docente. Os caminhos se bifurcando ainda estavam diante de mim. Foi então que decidi partir para a pós-graduação e, 1997, pedi exoneração de meu cargo para poder trilhar outro caminho, embora, movida pelo fascínio de trabalhar com a linguagem em sala de aula. Nas disciplinas da pós-graduação, comecei a tomar contato com as propostas de Bakhtin e seu círculo, que, àquela época, ganhavam espaço nos estudos da linguagem no Brasil. O primeiro texto que li foi “A interação verbal”, capítulo da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. A partir dessa experiência marcante, comecei a perceber que minhas inquietações começavam não a se dissiparem nem tampouco a se resolverem mas, dialogicamente, tornavam-se cada vez mais inquietantes. O que foi muito bom! A Análise do Discurso foi me conquistando cada vez mais, passando pela Semiótica greimasiana, pelos estudos baseados em Foucault e Maingueneau até chegar à Análise do Discurso Crítica de Fairclough. Para citar apenas alguns nomes. Esses caminhos me ajudaram a compreender novas maneiras de se conceituar língua, entendida como um organismo vivo, constructo social fruto das relações dialógicas produzidas nas interações. Ideologias que permeiam os discursos, jogos de poder que se travam na arena dos signos são visões que, embora não tenham sido produzidas, em primeira instância, para serem aplicadas a um contexto de ensino de línguas, são noções que auxiliam na formação identitária de um professor de línguas preocupado em produzir com seus aprendizes contextos de circulação social de gêneros do discurso materializados em textos. Hoje, tomo esse e outros fundamentos dos Estudos Discursivos para discutir com meus alunos, licenciandos em Letras, as questões relativas ao ensino de língua, principalmente materna, nas escolas brasileiras. Infelizmente, essas mudanças ainda estão longe de fazerem parte da rotina de sala de aula da maioria dos professores que trabalham com a linguagem. Há que haver todo um esforço no sentido de se romper ou, ao menos, criar brechas, nesse imaginário dominante de que ensinar língua é pura e simplesmente ensinar gramática normativa. Não tenho respostas, muito menos modelos a serem seguidos, mas o que aprendi nessa trajetória é que há um caminho diferente, talvez na contramão do fluxo corrente, um caminho menos trilhado, como diria Robert Frost. Os Estudos Discursivos me possibilitaram fazer essa escolha e isso tem feito toda a diferença. Referências BAKHTIN, M. M / VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995[1929]. FROST, R. Mountain Interval. New York: Henry Holt and Company, 1920; Bartleby.com, 1999. Disponível em http://www.bartleby.com/119/1.html. Acesso em 13 nov 2014. #Educação

  • Contribuições dos estudos discursivos para uma professora formadora em formação

    Karin Adriane Henschel Pobbe Ramos I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I – I took the one less traveled by, And that has made all the difference. (Robert Frost) Refletindo a respeito de minhas experiências de professora de português, tanto na educação básica quanto no ensino superior, ponho-me a pensar sobre as contribuições do campo dos Estudos Discursivos para a minha formação. Filha de professor de português e agora professora da disciplina de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado de Língua e Literaturas Vernáculas para um curso de Letras, portanto, formadora de professores de português, percebo uma grande mudança nas perspectivas para se trabalhar com a língua materna nas escolas. Quando frequentava o ensino fundamental e médio, já me punha a questionar as razões para ter de se decorar tantas listas, repletas de exceções, tantas classificações e análises de eventos que pareciam tão distante daquele veículo de comunicação que me possibilitava interagir com o mundo e descobrir coisas tão fascinantes. Recordo-me de, em um dado momento, já que não podia ser diferente, ter me embrenhado nas explicações que encontrava a respeito das questões da língua portuguesa nas muitas gramáticas que povoavam as estantes lá de casa. Sabia de cor todas as classes gramaticais e suas características, todos os elementos da sintaxe e suas análises. Mas alguma coisa não encaixava. Acredito que essa inquietação levou-me a optar pelo curso de Letras na graduação. Já na universidade, comecei a ter contato com outras maneiras de se observar e descrever os eventos linguísticos. Mas ainda era um viés estruturalista que tomava como objeto uma língua homogênea, estática, descontextualizada. E muita Linguística Textual, em franca ascensão na época. Formei-me em 1991. Em 1992, fiz a inscrição para o concurso de PIII (Professor III) da Secretaria Estadual da Educação de São Paulo. O exame aconteceu apenas no ano seguinte. Passei, consegui uma boa classificação que me possibilitou escolher uma escola da rede estadual de Assis mesmo. Tomei posse somente em agosto de 1994. Enfim, efetiva, dona do meu cargo, depois de tanto tempo atuando como eventual, substituta, ACT, caindo de paraquedas nas turmas, sem tempo de dizer a que vinha. Mas, a cena que me vinha à lembrança era de dois caminhos que se bifurcavam diante de mim. Por onde começar? O que ensinar? Sabia o que eu não queria ensinar, entretanto não tinha muita noção de pelo que substituir a gramática tradicional. Por influência da minha formação, muito focada na Linguística Textual, já sabia que o texto deveria ser o protagonista, mas como? Fui tateando e, empiricamente, aos poucos, conseguia propor atividades que não privilegiassem o trabalho descontextualizado com a língua na sala de aula. Entretanto, faltavam respostas para minhas inquietações de docente. Os caminhos se bifurcando ainda estavam diante de mim. Foi então que decidi partir para a pós-graduação e, 1997, pedi exoneração de meu cargo para poder trilhar outro caminho, embora, movida pelo fascínio de trabalhar com a linguagem em sala de aula. Nas disciplinas da pós-graduação, comecei a tomar contato com as propostas de Bakhtin e seu círculo, que, àquela época, ganhavam espaço nos estudos da linguagem no Brasil. O primeiro texto que li foi “A interação verbal”, capítulo da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. A partir dessa experiência marcante, comecei a perceber que minhas inquietações começavam não a se dissiparem nem tampouco a se resolverem mas, dialogicamente, tornavam-se cada vez mais inquietantes. O que foi muito bom! A Análise do Discurso foi me conquistando cada vez mais, passando pela Semiótica greimasiana, pelos estudos baseados em Foucault e Maingueneau até chegar à Análise do Discurso Crítica de Fairclough. Para citar apenas alguns nomes. Esses caminhos me ajudaram a compreender novas maneiras de se conceituar língua, entendida como um organismo vivo, constructo social fruto das relações dialógicas produzidas nas interações. Ideologias que permeiam os discursos, jogos de poder que se travam na arena dos signos são visões que, embora não tenham sido produzidas, em primeira instância, para serem aplicadas a um contexto de ensino de línguas, são noções que auxiliam na formação identitária de um professor de línguas preocupado em produzir com seus aprendizes contextos de circulação social de gêneros do discurso materializados em textos. Hoje, tomo esse e outros fundamentos dos Estudos Discursivos para discutir com meus alunos, licenciandos em Letras, as questões relativas ao ensino de língua, principalmente materna, nas escolas brasileiras. Infelizmente, essas mudanças ainda estão longe de fazerem parte da rotina de sala de aula da maioria dos professores que trabalham com a linguagem. Há que haver todo um esforço no sentido de se romper ou, ao menos, criar brechas, nesse imaginário dominante de que ensinar língua é pura e simplesmente ensinar gramática normativa. Não tenho respostas, muito menos modelos a serem seguidos, mas o que aprendi nessa trajetória é que há um caminho diferente, talvez na contramão do fluxo corrente, um caminho menos trilhado, como diria Robert Frost. Os Estudos Discursivos me possibilitaram fazer essa escolha e isso tem feito toda a diferença. Referências BAKHTIN, M. M / VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995[1929]. FROST, R. Mountain Interval. New York: Henry Holt and Company, 1920; Bartleby.com, 1999. Disponível em http://www.bartleby.com/119/1.html. Acesso em 13 nov 2014. #Educação

  • Ser humano: ser inconcluso e múltiplo

    Jessica de Castro Gonçalves “mas nossa consciência nunca dirá a si mesma a palavra concludente” (BAKHTIN, 2011, p. 14) Ser humano. Ser como substantivo: um sujeito que é humano. Ser como verbo: ato de ser, de se fazer humano. Humano como adjetivo: característica conferida ao ser. Humano como substantivo: o sujeito.  Duas palavras e uma complexidade instaurada: o ser humano surge pronto ou se faz humano? Neste pequeno texto refletiremos sobre o prazer de ser e de se fazer humano. Antes de tudo é necessário refletir sobre o  ‘Eu’. Palavra de apenas duas letras. Tão pequena. Um simples pronome pessoal do caso reto da primeira pessoa do singular, o qual pode ocupar a posição de sujeito e se referir a apenas uma pessoa, a primeira do discurso. Será? Seria isto ‘eu’, tão simples e limitado? Seria este tão singular (pensando na categoria gramatical de número oposta a plural)? Pensemos em nossa trajetória de vida. Nascemos e nada sabemos. O primeiro contato que temos com o mundo se faz por intermédio de outros sujeitos, os nossos pais, ou aqueles que esta posição assumem. Nada conhecemos, nem linguagem, nem nomes, nem valores, nem crenças. Tudo nos chega através deles.  Na escola, outros aparecem com novos mundos, novas histórias, novas ideias, novos valores. Somos modificados. Crescemos, estudamos e trabalhamos. Lemos, vemos e ouvimos. Em tudo interagimos com outros diversos. Voltamos para a casa de nossos pais depois de formados e estes nem sempre conseguem reconhecer em nós o filho que eles criaram. Somos um em nossos lares, somos outros em nossas empresas. O eu que se apresenta ao chefe, diferencia-se daquele conhecido pelo amigo, o qual se diferencia ainda daquele conhecido pelo esposo. Somos vistos de uma determinada maneira agora, e de outra totalmente diferente daqui a pouco. A palavra ‘eu’ possui uma pequenez aparente que se mostra inversamente proporcional à complexidade da existência do sujeito. O eu só existe na medida em que pensamos na existência do outro. O eu só se forma na medida em que se relaciona com esses outros, sendo para cada outro um eu diferente. Um sujeito possui diferentes eu’s. Um eu possui diferentes sujeitos que o constituem. Segundo Bakhtin (2012), a consciência não nasce formada e não se constitui pela ação do próprio ser sobre si, mas está em um contínuo e inacabável processo de formação nas diversas interações estabelecidas em sociedade. O ser só se torna sujeito humano diante da existência do outro. Agimos tendo em vista sempre a imagem que o outro terá de nós, a construção de uma imagem externa. É verdade que na até na vida procedemos assim a torto e a direito, avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em conta o valor da nossa imagem externa do ponto de vista da possível impressão que ela venha causar no outro (BAKHTIN, 2011, p. 13) O Eu gramaticalmente classificado como singular, na verdade é múltiplo, constituído dos outros com que se relaciona. Eu é sempre multidão. No entanto este nunca está pronto e acabado pois, se cada interação permite sua alteração, ele está sempre em processo de acabamento, nas vária relações com os diferentes outros, sendo inconcluso. Observemos como na obra Paranoic Visage de 1935 de Salvador Dali para pensarmos como essa constituição do sujeito, do ser humano se dá: A obra acima é composta por vários sujeitos. Estes são diferentes entre si e ocupam determinados lugares na sociedade em que se situam. Juntos eles compõem um outro, cada um de uma forma, um forma o olho, outro forma a boca, outro o nariz e assim consequentemente. No entanto, o sujeito formado não tem a visão completa de seu acabamento, só nós, na condição de seu outro, é que temos acesso a essa imagem externa. Porém esse acabamento é momentâneo, pois a medida que a relação entre os sujeitos se modificarem, um outro rosto (um outro sujeito) pode se formar. Da mesma forma nós nos fazemos seres humanos, pelas diversas interações com os diversos outros em sociedade. Só sujeitos é que constituem sujeitos. Só na relação com outros que eu me faço ser humano. Não nasço pronto, e sozinho não recebo a qualidade de humano, mas me torno humano em cada viver com o outro, me completando em cada relação e nunca estando completo. Para Manoel de Barros “A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.” Ser humano é ser sempre incompleto e precisa a cada momento do outro. Um sujeito não é humano sozinho, mas precisa dos outros para se formar, se alterar e se renovar. Assim como a borboleta tem uma vida de constante alteração, de lava ,a casulo, a borboleta, nós sujeitos estamos sempre inconclusos e em processo de mudança na multiplicidade de sujeitos (outros) em nossa vida. Como diz Bakhtin, na citação que inicia esse texto, nunca diremos a nós mesmo a palavra concludente, pois esta só pertence aos diversos outros, com os quais convivemos ao longo de um viver todo. Referências BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. Barros, M. Disponível em: http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/ DALI, S. Paranoic Visage. Disponível em: http://www.salvador-dali.org/cataleg_raonat/fitxa_imprimir.php?obra=404&lang=en

  • Ser humano: ser inconcluso e múltiplo

    Jessica de Castro Gonçalves “mas nossa consciência nunca dirá a si mesma a palavra concludente” (BAKHTIN, 2011, p. 14) Ser humano. Ser como substantivo: um sujeito que é humano. Ser como verbo: ato de ser, de se fazer humano. Humano como adjetivo: característica conferida ao ser. Humano como substantivo: o sujeito.  Duas palavras e uma complexidade instaurada: o ser humano surge pronto ou se faz humano? Neste pequeno texto refletiremos sobre o prazer de ser e de se fazer humano. Antes de tudo é necessário refletir sobre o  ‘Eu’. Palavra de apenas duas letras. Tão pequena. Um simples pronome pessoal do caso reto da primeira pessoa do singular, o qual pode ocupar a posição de sujeito e se referir a apenas uma pessoa, a primeira do discurso. Será? Seria isto ‘eu’, tão simples e limitado? Seria este tão singular (pensando na categoria gramatical de número oposta a plural)? Pensemos em nossa trajetória de vida. Nascemos e nada sabemos. O primeiro contato que temos com o mundo se faz por intermédio de outros sujeitos, os nossos pais, ou aqueles que esta posição assumem. Nada conhecemos, nem linguagem, nem nomes, nem valores, nem crenças. Tudo nos chega através deles.  Na escola, outros aparecem com novos mundos, novas histórias, novas ideias, novos valores. Somos modificados. Crescemos, estudamos e trabalhamos. Lemos, vemos e ouvimos. Em tudo interagimos com outros diversos. Voltamos para a casa de nossos pais depois de formados e estes nem sempre conseguem reconhecer em nós o filho que eles criaram. Somos um em nossos lares, somos outros em nossas empresas. O eu que se apresenta ao chefe, diferencia-se daquele conhecido pelo amigo, o qual se diferencia ainda daquele conhecido pelo esposo. Somos vistos de uma determinada maneira agora, e de outra totalmente diferente daqui a pouco. A palavra ‘eu’ possui uma pequenez aparente que se mostra inversamente proporcional à complexidade da existência do sujeito. O eu só existe na medida em que pensamos na existência do outro. O eu só se forma na medida em que se relaciona com esses outros, sendo para cada outro um eu diferente. Um sujeito possui diferentes eu’s. Um eu possui diferentes sujeitos que o constituem. Segundo Bakhtin (2012), a consciência não nasce formada e não se constitui pela ação do próprio ser sobre si, mas está em um contínuo e inacabável processo de formação nas diversas interações estabelecidas em sociedade. O ser só se torna sujeito humano diante da existência do outro. Agimos tendo em vista sempre a imagem que o outro terá de nós, a construção de uma imagem externa. É verdade que na até na vida procedemos assim a torto e a direito, avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em conta o valor da nossa imagem externa do ponto de vista da possível impressão que ela venha causar no outro (BAKHTIN, 2011, p. 13) O Eu gramaticalmente classificado como singular, na verdade é múltiplo, constituído dos outros com que se relaciona. Eu é sempre multidão. No entanto este nunca está pronto e acabado pois, se cada interação permite sua alteração, ele está sempre em processo de acabamento, nas vária relações com os diferentes outros, sendo inconcluso. Observemos como na obra Paranoic Visage de 1935 de Salvador Dali para pensarmos como essa constituição do sujeito, do ser humano se dá: A obra acima é composta por vários sujeitos. Estes são diferentes entre si e ocupam determinados lugares na sociedade em que se situam. Juntos eles compõem um outro, cada um de uma forma, um forma o olho, outro forma a boca, outro o nariz e assim consequentemente. No entanto, o sujeito formado não tem a visão completa de seu acabamento, só nós, na condição de seu outro, é que temos acesso a essa imagem externa. Porém esse acabamento é momentâneo, pois a medida que a relação entre os sujeitos se modificarem, um outro rosto (um outro sujeito) pode se formar. Da mesma forma nós nos fazemos seres humanos, pelas diversas interações com os diversos outros em sociedade. Só sujeitos é que constituem sujeitos. Só na relação com outros que eu me faço ser humano. Não nasço pronto, e sozinho não recebo a qualidade de humano, mas me torno humano em cada viver com o outro, me completando em cada relação e nunca estando completo. Para Manoel de Barros “A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.” Ser humano é ser sempre incompleto e precisa a cada momento do outro. Um sujeito não é humano sozinho, mas precisa dos outros para se formar, se alterar e se renovar. Assim como a borboleta tem uma vida de constante alteração, de lava ,a casulo, a borboleta, nós sujeitos estamos sempre inconclusos e em processo de mudança na multiplicidade de sujeitos (outros) em nossa vida. Como diz Bakhtin, na citação que inicia esse texto, nunca diremos a nós mesmo a palavra concludente, pois esta só pertence aos diversos outros, com os quais convivemos ao longo de um viver todo. Referências BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. Barros, M. Disponível em: http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/ DALI, S. Paranoic Visage. Disponível em: http://www.salvador-dali.org/cataleg_raonat/fitxa_imprimir.php?obra=404&lang=en

  • Só acho!

    Rosineide de Melo Permito-me pela primeira vez divagar acerca das concepções de Bakhtin. Divagar, porque a intenção aqui não é apresentar nenhum estudo científico (embora o GED seja um grupo sério e cujos estudos são rigorosos). Então, só “achismos” a partir de agora! Em passado recentíssimo, assistimos à diversidade de discursos circulantes nas redes sociais por ocasião das eleições – só para falar dos discursos dos eleitores e não dos candidatos! Dos mais lúcidos aos mais insanos; dos mais coerentes aos sem quaisquer coerências; dos embasados aos levianos; dos que suscitavam reflexão aos que intencionavam a manipulação; dos fatos, às evidências e às invenções. Independentemente dos candidatos/partidos em disputa, o que assistimos e participamos foi a um efetivo reflexo e refração das polarizações maniqueístas tão presentes em nossa sociedade contemporânea:  bem x mal; céu x inferno; certo x errado; comunismo x capitalismo… quando entendo que deveríamos dar lugar ao “bem E mal”! Fiquei imaginando o que Bakhtin (sujeito social e não o empírico) diria disso tudo: das indiretas, dos discursos enviesados e tendenciosos; dos discursos, por vezes, discriminatórios e preconceituosos; dos discursos tidos como de ódio (daria até para acionar a Análise do Discurso Francesa e estudar as formações discursivas, estabelecendo um rico diálogo metodológico com a Análise Dialógica do Discurso!) Sabemos da inexistência da neutralidade do signo, que traz em si todas as apreciações axiológicas (estéticas e éticas) e ideológicas (históricas, políticas, culturais), em busca da construção do sentido: apesar de sabermos que não mudaríamos a opinião do outro (do errado?!), os embates foram travados nas redes sociais: explicitação da arena! Assim, o tom valorativo a favor de um candidato só trazia aspectos positivos (ou pseudos) sobre ele e negativos (ou pseudos) sobre o outro e vice-versa. O argumento virava contra-argumento à luz das entoações valorativas, a partir dos horizontes apreciativos. Os signos com mesmos significados construíram sentidos diferentes de acordo com o que se queria mostrar. Fiquei pensando então acerca das concepções de alteridade, exotopia e de que “O signo se torna arena onde se desenvolve a luta de classes” (Volochinov/Bakhtin, 1995 [1929], p. 46). Acho que Bakhtin não se espantaria, pois já havia anunciado, lá em Marxismo e Filosofia da Linguagem, que: Na realidade, todo signo ideológico vivo, tem (…) duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária (p.47). Sinto que Bakhtin notaria que faltou aos eleitores em debate exercer a exotopia, vivenciar a noção de excedente de visão e, conforme bem escreve Freitas (2013): Essa noção de excedente abre espaço para outros conceitos como os de empatia e de exotopia (…). A exotopia mostra significativamente como o outro, que está fora de mim é quem tem condições de me completar, porque vê o que não tenho possibilidade de ver em mim, tanto em meu aspecto corporal e espacial como nos meus atos que expressam meu modo de ser. Nesse processo de completar o outro a partir de meu excedente de visão, Bakhtin (2003) situa a empatia como um primeiro passo, no qual eu me coloco no lugar do outro procurando ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê. Esse é um movimento de fusão, identificação com o outro que deve ser completado pelo movimento de retorno ao meu lugar. De volta ao meu lugar, é que tenho condições de contemplar o horizonte do outro, com tudo que descobri do lugar que ocupo fora dele e dar forma e acabamento o que contemplei nele e completá-lo com o que é transcendente à sua consciência (FREITAS, 2013, 192). Só acho que faltou – nos faltou – colocar-se no lugar do outro, buscar compreender o ponto de vista desse outro, exercitar a empatia. Sempre que lia na rede social um “absurdo” – da minha apreciação valorativa – procurava entender o que havia levado uma pessoa (tão amiga, tão identificada com meus princípios?!) politicamente analisar as informações de forma tão diferente da minha… nem melhor nem pior, diferente… ler e interpretar  indicadores sociais ou econômicos – tão exatos -, por exemplo, de forma bem diferente… o exato cedendo lugar ao subjetivo (também tenho lá meus pensamentos maniqueístas!) armadilhas da linguagem…ou efetivamente a construção/apreensão de sentidos. Sabemos que sentido constrói-se no/do contexto, no/do momento histórico, cultural, ideológico; nas/das condições de produção, circulação e recepção; nos/dos sujeitos sociais em interação e com tudo que os constitui. Sentido “da faculdade de julgar” (Houaiss;Villar,  2009, p.682), do sentir, e aí o eu sente diferente do outro! E só o processo exotópico permite-nos exercitar o outro em mim e o eu no outro. Confesso que repensei meus conceitos… sempre defendi que o Brasil estava acima de alguns comportamentos medievais, que havíamos superado um pouco o machismo; que estávamos convivendo melhor com as diferenças religiosas e de gêneros; que vivenciávamos um certo nacionalismo, valorizando os regionalismos na contemporaneidade cada vez mais  multicultural…. sim e não! Essas eleições foram históricas não somente pelo fato de ser um acontecimento histórico em si, mas pelo que provocou em termos de discussões nas redes sociais. Acho que se por um lado perdemos a oportunidade de realizar um debate político mais maduro, por outro, ratificamos o quão é importante poder falar, lembrando que o conflito é inerente à arena discursiva. As redes sociais fazem valer, de uma forma implacável, o caráter irrepetível e único dos textos/enunciados! Certamente Bakhtin ficaria fascinado com elas, com esse espaço discursivo privilegiado e formaria um corpus inesgotável de textos/enunciados circulantes no período eleitoral! E porque continuaria à frente do seu (do nosso) tempo, constataria que suas teorias estariam cada vez mais pertinentes e vanguardistas… Quanto à ausência de uma postura exotópica, que nos proporcionaria uma certa tolerância com o outro, acho que ele, dialogicamente invocando nosso querido Lupicínio, diria “esses moços, pobre moços… ah se soubessem o que sei…”. #Só acho Referências FREITAS, M.T.A. Identidade e alteridade em Bakhtin. In: PAULA, L. STAFUZZA, G. Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas,SP: Mercado de Letras, 2013. (Série: Bakhtin: Inclassificável, v.3). p. 183-200. HOUAISS, A. VILLAR, M.S. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 3ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. VOLOCHINOV, V. N./BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem.  ed. São Paulo: Hucitec, 1995[1929]. Trad. Michel Lahud. Yara Frateschi Vieira. #diálogo #exotopia #política #sujeito

  • Só acho!

    Rosineide de Melo Permito-me pela primeira vez divagar acerca das concepções de Bakhtin. Divagar, porque a intenção aqui não é apresentar nenhum estudo científico (embora o GED seja um grupo sério e cujos estudos são rigorosos). Então, só “achismos” a partir de agora! Em passado recentíssimo, assistimos à diversidade de discursos circulantes nas redes sociais por ocasião das eleições – só para falar dos discursos dos eleitores e não dos candidatos! Dos mais lúcidos aos mais insanos; dos mais coerentes aos sem quaisquer coerências; dos embasados aos levianos; dos que suscitavam reflexão aos que intencionavam a manipulação; dos fatos, às evidências e às invenções. Independentemente dos candidatos/partidos em disputa, o que assistimos e participamos foi a um efetivo reflexo e refração das polarizações maniqueístas tão presentes em nossa sociedade contemporânea:  bem x mal; céu x inferno; certo x errado; comunismo x capitalismo… quando entendo que deveríamos dar lugar ao “bem E mal”! Fiquei imaginando o que Bakhtin (sujeito social e não o empírico) diria disso tudo: das indiretas, dos discursos enviesados e tendenciosos; dos discursos, por vezes, discriminatórios e preconceituosos; dos discursos tidos como de ódio (daria até para acionar a Análise do Discurso Francesa e estudar as formações discursivas, estabelecendo um rico diálogo metodológico com a Análise Dialógica do Discurso!) Sabemos da inexistência da neutralidade do signo, que traz em si todas as apreciações axiológicas (estéticas e éticas) e ideológicas (históricas, políticas, culturais), em busca da construção do sentido: apesar de sabermos que não mudaríamos a opinião do outro (do errado?!), os embates foram travados nas redes sociais: explicitação da arena! Assim, o tom valorativo a favor de um candidato só trazia aspectos positivos (ou pseudos) sobre ele e negativos (ou pseudos) sobre o outro e vice-versa. O argumento virava contra-argumento à luz das entoações valorativas, a partir dos horizontes apreciativos. Os signos com mesmos significados construíram sentidos diferentes de acordo com o que se queria mostrar. Fiquei pensando então acerca das concepções de alteridade, exotopia e de que “O signo se torna arena onde se desenvolve a luta de classes” (Volochinov/Bakhtin, 1995 [1929], p. 46). Acho que Bakhtin não se espantaria, pois já havia anunciado, lá em Marxismo e Filosofia da Linguagem, que: Na realidade, todo signo ideológico vivo, tem (…) duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária (p.47). Sinto que Bakhtin notaria que faltou aos eleitores em debate exercer a exotopia, vivenciar a noção de excedente de visão e, conforme bem escreve Freitas (2013): Essa noção de excedente abre espaço para outros conceitos como os de empatia e de exotopia (…). A exotopia mostra significativamente como o outro, que está fora de mim é quem tem condições de me completar, porque vê o que não tenho possibilidade de ver em mim, tanto em meu aspecto corporal e espacial como nos meus atos que expressam meu modo de ser. Nesse processo de completar o outro a partir de meu excedente de visão, Bakhtin (2003) situa a empatia como um primeiro passo, no qual eu me coloco no lugar do outro procurando ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê. Esse é um movimento de fusão, identificação com o outro que deve ser completado pelo movimento de retorno ao meu lugar. De volta ao meu lugar, é que tenho condições de contemplar o horizonte do outro, com tudo que descobri do lugar que ocupo fora dele e dar forma e acabamento o que contemplei nele e completá-lo com o que é transcendente à sua consciência (FREITAS, 2013, 192). Só acho que faltou – nos faltou – colocar-se no lugar do outro, buscar compreender o ponto de vista desse outro, exercitar a empatia. Sempre que lia na rede social um “absurdo” – da minha apreciação valorativa – procurava entender o que havia levado uma pessoa (tão amiga, tão identificada com meus princípios?!) politicamente analisar as informações de forma tão diferente da minha… nem melhor nem pior, diferente… ler e interpretar  indicadores sociais ou econômicos – tão exatos -, por exemplo, de forma bem diferente… o exato cedendo lugar ao subjetivo (também tenho lá meus pensamentos maniqueístas!) armadilhas da linguagem…ou efetivamente a construção/apreensão de sentidos. Sabemos que sentido constrói-se no/do contexto, no/do momento histórico, cultural, ideológico; nas/das condições de produção, circulação e recepção; nos/dos sujeitos sociais em interação e com tudo que os constitui. Sentido “da faculdade de julgar” (Houaiss;Villar,  2009, p.682), do sentir, e aí o eu sente diferente do outro! E só o processo exotópico permite-nos exercitar o outro em mim e o eu no outro. Confesso que repensei meus conceitos… sempre defendi que o Brasil estava acima de alguns comportamentos medievais, que havíamos superado um pouco o machismo; que estávamos convivendo melhor com as diferenças religiosas e de gêneros; que vivenciávamos um certo nacionalismo, valorizando os regionalismos na contemporaneidade cada vez mais  multicultural…. sim e não! Essas eleições foram históricas não somente pelo fato de ser um acontecimento histórico em si, mas pelo que provocou em termos de discussões nas redes sociais. Acho que se por um lado perdemos a oportunidade de realizar um debate político mais maduro, por outro, ratificamos o quão é importante poder falar, lembrando que o conflito é inerente à arena discursiva. As redes sociais fazem valer, de uma forma implacável, o caráter irrepetível e único dos textos/enunciados! Certamente Bakhtin ficaria fascinado com elas, com esse espaço discursivo privilegiado e formaria um corpus inesgotável de textos/enunciados circulantes no período eleitoral! E porque continuaria à frente do seu (do nosso) tempo, constataria que suas teorias estariam cada vez mais pertinentes e vanguardistas… Quanto à ausência de uma postura exotópica, que nos proporcionaria uma certa tolerância com o outro, acho que ele, dialogicamente invocando nosso querido Lupicínio, diria “esses moços, pobre moços… ah se soubessem o que sei…”. #Só acho Referências FREITAS, M.T.A. Identidade e alteridade em Bakhtin. In: PAULA, L. STAFUZZA, G. Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. Campinas,SP: Mercado de Letras, 2013. (Série: Bakhtin: Inclassificável, v.3). p. 183-200. HOUAISS, A. VILLAR, M.S. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 3ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. VOLOCHINOV, V. N./BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem.  ed. São Paulo: Hucitec, 1995[1929]. Trad. Michel Lahud. Yara Frateschi Vieira. #diálogo #exotopia #política #sujeito

  • CADA VOZ, UM TOM; CADA VEZ, UM SOM: TULIPA, FILIPE E A PLATEIA NUM DIÁLOGO BOM

    Schneider Pereira Caixeta ♪ “Tire sua fala da garganta e deixa ela passar por sua goela, e transbordar da boca” Numa primeira lida, esta primeira linha da canção “Cada Voz”[1], de Tulipa Ruiz, soa como uma ordem, de alguém que quer ouvir a um outro alguém que não quer/não pode falar. Pode-se inferir que se alguém urge para que a fala seja tirada da garganta, é porque há certa dificuldade em se falar. Sendo a garganta a porta por onde a fala sai e vai percorrer o mundo, é compreensível que seja ela também o lugar em que as palavras tendem a gostar de se entalar. De qualquer maneira, não é fácil tirar a fala lá entalada, pois sabemos que, ao fazê-lo, teremos consequências, as quais tememos enfrentar. Daí, entramos no impasse: falo e enfrento/assumo as consequências ou me calo? Caso falemos, podemos até escolher não enfrentar as consequências e tentarmos nos esconder delas, mas não poderemos, no entanto, afastarmo-nos da responsabilidade sobre elas. Nossa “fala que passa pela goela” não é um simples transbordar de palavras. Bakhtin (2011) afirma que somos responsáveis pelo que dizemos. Temos (que ter) uma atitude de respondibilidade (responsabilidade + responsividade), o que quer dizer que somos responsáveis pelos nossos próprios atos, enquanto respondemos a alguém/algo. Diz-nos o filósofo russo que “O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da responsabilidade”.[2] Além disso, falar não é um simples “tirar da goela”, porque dizemos de um determinado lugar e nosso dizer é moldado pelo outro. A maneira como eu tiro minha fala da minha garganta é determinada pelo outro. E sou justamente eu que defino o outro. Sou eu por causa dele, que é ele mesmo por causa de mim (eu). Em uma recente apresentação da canção “Cada Voz”, Tulipa Ruiz parece demonstrar na prática o que canta nos versos que compôs. Ao perceber na plateia o também cantor Filipe Catto, a cantora resolve dividir com ele os vocais da canção. No começo do vídeo, temos Tulipa dando a Filipe a oportunidade de cantar. Assim, a frase “tire sua fala da garganta”, se concretiza como ordem, uma vez que, diferentemente de duetos previamente combinados e ensaiados, em que o artista convidado é anunciado e sobe ao palco, o que se pode assistir no vídeo é a cantora se dirigindo a Felipe na plateia e colocando o microfone em sua boca para que este cante. Ao se considerar que o show é de Tulipa e que Filipe encontra-se ali na condição de expectador, essa é uma oportunidade relativamente grande que o cantor/expectador tem de fazer soar a sua própria voz. É preferível referir-se à condição de Filipe Catto, no momento, como cantor/expectador, pois, mesmo que esteja ele entre o público que foi ao show para assistir à apresentação de Tulipa, em nenhum momento ele perde seu status de novo talento da MPB, título partilhado também com a cantora em cartaz. Interessante notar que é Tulipa quem segura o microfone – aqui, claramente um instrumento de poder, que eleva quem o porta à posição de detentor da voz e do direito de falar – no momento em que Filipe canta e o inverso também é verdadeiro, sendo Filipe quem segura o microfone quando Tulipa canta seu solo, o que enfatiza esse caráter de diálogo que se instaura nesse dueto não planejado. Para Bakhtin e Voloshinov (2006), O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.[3] E o diálogo prevalece no decorrer de todo o vídeo até o final, não somente entre os dois cantores, mas entre eles e a plateia também, que, ou cantando a canção em acompanhamento ou gritando elogios, dialoga com os outros participantes do dueto, que já não é mais dueto, mas um diálogo entre vozes incontáveis. ♪ “Deixa solto no ar, toda essa voz que tá aí dentro, deixa ela falar” Tudo o que falamos está repleto de discursos anteriores e também reverbera em discursos posteriores. Pode-se dizer que, de certa forma, fica “solto no ar”. Ora, ao se concordar com a afirmação de Bakhtin (2011), quando diz que todo enunciado tem um princípio e um fim absoluto: “antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros”[4], há de se acreditar que um enunciado nunca é proferido e morre, mas, muito pelo contrário, está sempre numa relação inegável com outros discursos. Filipe Catto só pôde cantar sua parte na canção por já tê-la ouvido antes daquele momento. Ele já havia ouvido discursos outros de Tulipa e isso é notável na maneira como ele canta a canção, que é, na maior parte, idêntica à forma gravada pela cantora em seu disco. Por isso, Filipe já havia sido influenciado pela maneira como Tulipa já havia cantado a canção, assim como Tulipa também ficaria marcada pela maneira como Filipe a cantou naquele dia. ♪ “Você pode dar um berro, quem sabe não pinta um eco pra te acompanhar” Nossa fala não é verdade absoluta e tudo o que dizemos pode ser e é questionado. Nossa verdade pode não ser a do outro e, preparamo-nos, pois, na maioria das vezes, nossa “verdade” é só nossa mesmo. O que dizemos não será conclusivo e indiscutível, pelo contrário, será questionável e será apenas o início de outros questionamentos à espera de novas réplicas. No vídeo, Tulipa acompanha Filipe, que também a acompanha, e são acompanhados pelo público, que também canta. Além disso, estão presentes ali as vozes dos que não falam, por falta de vontade, ou de oportunidade, ou de direito, bem como as vozes dos que berram em busca de serem ouvidos. Essas vozes todas, numa orquestração dialógica, acompanham-se umas às outras numa canção que, mesmo sendo a mesma, pode ser diferente a cada vez em que é entoada. ♪ “Cada voz tem um tom. Cada vez tem um som” Brait e Melo (2012), ao tratarem do enunciado na perspectiva bakhtiniana, explicam que “Uma mesma frase realiza-se em um número infinito de enunciados, uma vez que esses são únicos, dentro de situações e contextos específicos, o que significa que a ‘frase’ ganhará sentido diferente nessas diferentes realizações ‘enunciativas’”.[5] Isso significa que o momento gravado e visualizado no vídeo é único e peculiar. Mesmo podendo assistir ao vídeo repetidas vezes, cada vez será diferente de outra porque os sujeitos que o veem serão outros, modificados a cada leitura do texto/discurso da obra e isso torna o enunciado não repetível. O enunciado de Tulipa, de Filipe, do público, a situação composta daquela maneira é única e não se repet(e)(irá), mesmo que esses enunciados sejam evocados futuramente em contextos que possam ser semelhantes ao que assistimos. ♪ “A orquestra já tocou e o maestro até se despediu. Todos querem ver você cantar” Todo discurso tem uma resposta, mesmo que esta seja o silêncio. Ainda que a “compreensão ativamente responsiva” ao que foi ouvido não se explicite imediatamente após o enunciado, ela existe como processo. Na performance contemplada no vídeo, há uma resposta instantânea, uma vez que, no decorrer de toda a performance da canção e, mais acentuadamente, com o retornar da cantora ao palco, é audível a participação da plateia na canção, como que atendendo ao chamado de Tulipa para cantarem e tirarem da goela a voz. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (BAKHTIN, 2011, p. 271).[6] E é essa “transformação” do ouvinte em falante, característica tão marcante do diálogo, o auge do vídeo em análise aqui. É nítido e muito forte o processo de interação dialógica existente na performance, não mais somente de Tulipa, mas também de Filipe e de todo o público. Processo esse que Bakhtin (2011) descreve como a situação em que “o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva”.[7] Muitos dos presentes no show ouviram a ordem de Tulipa e tiraram a voz da garganta, cantando juntamente com os cantores e se tornando, eles próprios, cantores. Muitos também talvez não o tenham feito, apesar de terem, sim, respondido, mesmo que em silêncio, aos vários discursos proferidos na ocasião. Porém, aquela canção provavelmente ecoou em suas cabeças no período que se seguiu ao show, pois o discurso resultante desse encontro musical não morre: ele pede bis. [1] RUIZ, T. Tudo Tanto. Independente, 2012. [2] BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. XXIII. [3] BAKHTIN. M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. p. 125. [4] BAKHTIN, M.. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 275. [5] BRAIT, B.; MELO, R. de. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos chave. São Paulo: Contexto, 2012. p. 63. [6] BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. 271. [7] Idem, p. 275.

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