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Reflexões iniciais sobre a relação da linguagem concretista e a filosofia da linguagem bakhtiniana

Rafaela dos Santos Batista

O movimento concretista, iniciado em 1950 pelo grupo Noigandres (Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari), renovaram a tradição poética no esteio mallarmeano de superação do verso e estrutura. Ao verem a palavra com personalidade e habilidade de se manifestar de diferentes maneiras, a poesia concreta recebe a linguagem como um lugar de não sepultamento da ideia, por isso, vai ao centro da palavra para a viver (DE CAMPOS, 1975). A linguagem entendida e empregada é, como eles denominam com o termo joyceano, verbivocovisual, porque:

– o poeta concreto vê a palavra em si mesma – campo magnético de possibilidades – como um objeto dinâmico, uma célula viva, um organismo completo, com propriedades psicofisicoquímicas tacto antenas circulação coração: viva. (DE CAMPOS; 1975, p.44)

Com essa percepção, o movimento concretista repensa a poesia nessa linguagem que leva em conta os âmbitos verbais, visuais e sonoros, sem privilégio de nenhuma dimensão, todas são partes da criação poética e essa é igualada a uma construção matemática. Assim, essa vanguarda radicaliza a tradicional poesia versificada e linear, que passa a ser explicada pela estrutura onde forma e conteúdo se ligam na linguagem que fala por/de si própria, pois não há eu-lírico e a palavra é trabalhada na máxima potência.

A construção matemática do poema e a posição de cada palavra, com suas diferentes cores, nada tem de arbitrária. Não é apenas focada na expressão de um apelo visual, mas demonstra em si uma profunda relação entre a visualidade e o conteúdo. A discrepância entre forma e conteúdo, que estamos acostumados a observar numa concepção poética mais canônica, não tem espaço no concretismo, pois a profunda intimidade entre eles transforma o poema em uma unidade icônica e verbivocovisual. Podemos analisá-lo em suas formas, espaços em branco, em sua semântica não tradicional, em sua não linearidade. Todos esses elementos são parte fundamental da poesia concreta e, consequentemente, fazem parte de seu processo de criação. (CAMPOS, 2019, p. 109)

A perspectiva bakhtiniana no que tange a linguagem, se centra na noção do enunciado composto por signos ideológicos que refletem e refratam concepções de mundo na/pela linguagem constituída por esses signos. A palavra é o lugar de realização dos fios ideológicos de todas as áreas da comunicação social e é também o indicador das mudanças sociais (VOLÓCHINOV, 2017). A dialogia, fio condutor do pensamento do Círculo russo, mostra a relação de alteridade entre o sujeito (eu/outro), a gerar trocas ideológicas em embate vivo, a linguagem ideológica faz dos enunciados arena de luta de ideias, dessa forma, ideologias surgem nos sujeitos e são tomadas por eles como realidade absoluta, em seus atos responsáveis e em suas vozes sociais.

Somado a isso, os enunciados ideológicos não são apenas verbais para o grupo bakhtiniano, visto que “Qualquer fenômeno ideológico sígnico é dado em algum material: no som, na massa física, na cor, no movimento do corpo e assim por diante” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 94). Mesmo que não focalizada em outras dimensões, há indícios de que vão além do verbal e se estendem para o vocal e visual. Na filosofia da linguagem do grupo bakhtiniano, existe uma visão de certa linguagem geral, estabelecida pós-reuniões do Círculo (entre 1959-1961):

Todo sistema de signos (isto é, qualquer língua), por mais que sua convenção se apoie em uma coletividade estreita, em princípio sempre pode ser codificada, isto é, traduzido para outros sistemas de signos (outras linguagens); consequentemente, existe uma lógica geral dos sistemas de signos, uma potencial linguagem das linguagens única(que, evidentemente, nunca pode vir a ser uma linguagem única concreta, uma das linguagens). (BAKHTIN, 2011, p. 311)

A materialização dos enunciados coloca a linguagem geral verbivocovisual no amparo das especificidades da esfera de comunicação discursiva, com regras e objetivos limitadores da construção enunciativa. A verbivocovisualidade não é explicitada no material externalizado, mas aparece nas marcas enunciativas, como também pode se manifestar de forma clara nos signos interiores ao passo da compreensão ativa que se apoia nas marcas dos enunciados, logo, a significação de qualquer enunciado acontece a partir da relação interior e exterior que revelam a verbivocovisualidade da linguagem, base que recobre os enunciados desde a formulação até a construção interativa de sentido à luz dos traços entonacionais.

Disso, Paula (2017) propõe essa visão teórico-analítica verbivocovisual na seara bakhtiniana, que avançam esse estudo nessa forma metafórica de encarar a linguagem do Círculo: ao entender a próto-linguagem alargada e também ao perceber a materialidade enunciativa da linguagem, que pode ser tridimensional, a depender do projeto arquitetônico autoral, genérico e do estilo que reflete e refrata voz social, que a filosofia bakhtiniana da linguagem é ampliada.

Começa-se a pensar a relação entre os dois campos aqui citados, o concretismo entende a linguagem de forma parecida que o Círculo de Bakhtin, apesar das diferenças grupais. Com influências parecidas, o movimento concreto trabalhou com essa possível linguagem geral na sua criação verbivocovisual que desafia a compreensão do leitor que precisa atuar na leitura, numa espécie de “adentramento” que o faz participar da linguagem e da criação poética, em certa relação alteritária eu/outro.

Isso é visto no poema Rever, com a primeira versão em 1972, mas com diversas releituras em múltiplos suportes. Esse poema conta com a palavra “rever” escrita com o “E” e “R” finais invertidos. O entendimento se dá na própria forma do poema, ou seja, na palavra palíndromo, que ao ler de trás para frente, ainda é “rever” e as letras invertidas mostram a relação da forma com o que significa.

Figura 1 – Poema Rever (Augusto de Campos – 1972)

No clip-poema, do CD-ROM do livro Não, a relação palindrômica é potencializada no círculo dividido ao meio pelas cores vermelho e verde, com “rever” espelhado. No vídeo, o movimento de ir e voltar, em rotação, e para frente e para trás, com o tamanho do círculo diminuindo e aumentando, trazem no verbal e visual a leitura em sentido contrário e normal que a palavra oferece. As cores, em alguns momentos, são invertidas à luz da palíndromo, e as letras em branco se transformam em preto. Há certa continuidade no recurso de looping, o poema nunca termina, fica em constante retorno que alude a palavra rever e sua leitura. Ainda, há a sonoridade do poema que representa o movimento do círculo nessa relação palindrômica.

Figura 2 – clip-poema Rever (2003)

Fonte: retirado do Youtube. Disponível em: https://youtu.be/MVN-RL4Oj5k. [1]

Tais reflexões precisam ser aprofundadas, mas fica claro que há diálogo entre as noções de linguagem, portanto, a poesia concreta pode ser analisada no campo bakhtiniano a pensar a linguagem verbivocovisual.

Referências

BAKHTIN. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAMPOS, Raquel Bernardes. Entre vivas e vaias: a visualidade concreta de Augusto de Campos. 2019.

DE CAMPOS, Augusto. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos, 1950-1960. Livraria Duas Cidades, 1975.

DE CAMPOS, Augusto. Não poemas. Perspectiva, 2003.

PAULA, L. de. Verbivocovisualidade: uma abordagem bakhtiniana tridimensional da linguagem. Projeto de Pesquisa em andamento. Assis: UNESP, 2017. Mimeo, s/d.

VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Rio de Janeiro: 34, 2017.

[1] Sequência disponível em: 00:01, 00:02,00:04,00:11.

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