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(DES)OBRIGAR(-SE) (D)O OUTRO: UMA INQUIETAÇÃO BAKHTINIANA

Marco Antonio Villarta-Neder/ GEDISC-UFLA[1]

Tem me incomodado, desde há muito tempo, um conjunto de discursos que se fundamenta na exclusão ou no extermínio do outro. Há duas razões para minha perplexidade.

A primeira é por uma questão ética. Sou daquelas criaturas – talvez fracas e chorosas – que se indigna com o genocídio, a opressão e a destruição de um ser humano por outro. Encontrei no campo dos estudos bakhtinianos um lugar de abrigo. Em seu texto Arte e Responsabilidade, o filósofo da linguagem e pensador russo Mikhail Bakhtin discute a relação entre arte e vida:

O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar uns aos outros na unidade da culpa e da responsabilidade. (BAKHTIN, 2011, p. xxxiv)

Essa responsabilidade decorre da alteridade. É de um lugar-outro ao que ocupo – e somente dessa distância – que posso conferir-me acabamento, inteireza. É, portanto, desse lugar de um OUTRO, que não eu-mesmo, que posso atribuir sentido a mim mesmo. Portanto, esse lugar do outro é RESPONSÁVEL pela minha constituição. E esse outro que ocupa esse lugar é responsável por isso. Reversamente, eu sou outro de alguém. Posso conferir acabamento e inteireza a esse outro. Ele, de seu próprio lugar, não pode fazê-lo. Assim, cada ato, cada gesto, está impregnado dessa responsabilidade recíproca.

Pois bem… vamos voltar à questão do início. Vamos deixar de molho a questão da responsabilidade ética. Depois voltaremos a ela.

A segunda é conceitual. Se é o outro que me permite que eu me constitua no mundo, exterminá-lo seria suicidar-me. Talvez pior. Sem o outro, eu sequer me reconheceria, não existiria como sujeito, não teria um lugar a partir do qual pudesse olhar (para) o mundo.

Lembro-me sempre de um conto do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, intitulado William Wilson. Nesse conto o protagonista estuda em um colégio interno e conhece um alter ego que representa uma censura aos hábitos desregrados que mantém. Depois de uma trajetória conflituosa, o protagonista acaba assassinando seu alter ego, cujas últimas palavras são essas:

– Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo. (POE, 1981, p. 107)

Nesse caso, a morte do outro aniquila o eu. O alter ego do protagonista do conto William Wilson, de Poe, é um duplo. O mito do duplo é antigo e tem tido várias versões em culturas diversas e em semioses e produções estéticas diferentes. Às vezes, as pessoas que compõem esse duplo são mutuamente destrutivas. Em Platão, no texto O Banquete, o andrógino, poderoso ser que combinava homem e mulher é separado em dois pelos deuses do Olimpo, terem tais seres se voltado contra seus deuses. Essa cisão causa, na visão mítica do personagem Aristófanes, uma busca pelo outro:

Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. (PLATÃO, 1972, p. 28)

Parece haver, portanto, a ideia de um mito de Idade do Ouro, de Paraíso Perdido, que se manifesta nesse fascínio e nesse horror pelo outro. Em Jorge Luís Borges, no conto O Outro, é um Borges jovem que se senta ao lado, num banco, em lugares e tempos distintos, com um Borges mais velho. Não há destruição física, mas há a incomunicabilidade, o que não deixa de ser destrutivo.

Se pensarmos na arquitetônica bakhtiniana, é dentro de um circuito de construções de subjetividade que essa relação alteritária se estabelece. É entre as representações de um eu-para-mim, eu-para-o-outro e outro-para-mim que se constrói esse acabamento relativamente instável, fugidio, mas necessário para a constituição dos sujeitos e dos sentidos.

Nesse contexto, meu estranhamento e minha indignação se debruçam sobre um enunciado deôntico (que expressa dever, assumindo uma relação autoritária com o interlocutor) Tem que + verbo de ação com significado de ação punitiva e violenta (“Tem que matar”; “Tem que prender” etc.). Às vezes, a expressão deôntica é precedida pelo nome que alude a um mal a ser extirpado, do ponto de vista do enunciador (“Bandido tem que morrer”; “Gay tem que morrer”; “Mulher tem que ter marido” etc.)

Cabe indagar, a partir da arquitetônica bakhtiniana, as posições enunciativas e os lugares no mundo que esses sujeitos ocupam para se constituírem no diálogo com outros sujeitos. A expressão deôntica é emblemática. Do ponto de vista do eu-para-mim, o sujeito se representa como um lugar de autoridade, com legitimidade não somente para emitir uma opinião, mas para dar uma ordem, definitiva. Lugar do demiurgo, autocrático.

A representação do eu-para-o-outro lembra a do senhor de escravos. Um eu que se representa como quem, para o outro deve ser (do ponto de vista compatível com o do eu-para-mim) como alguém a ser obedecido, temido pela ferocidade de seu juízo de valor e pelo ethos de quem comanda. Já o outro-para-mim pode ser visto, a partir dessa atitude enunciativa, como alguém a ser subjugado pela força da opinião do primeiro.

O mais impactante é se pensarmos nos sujeitos que são o tema do enunciado. Para Volóchinov (2017, pp. 227-228), o tema é o sentido da totalidade do enunciado. […] Ele expressa a situação concreta histórica que gerou o enunciado. Mas… enunciado para o Círculo é outra coisa, não é? Sim. É bom nos lembrarmos que, como diz Bakhtin, “[n]ão pode haver enunciado isolado. Ele sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro ou o último. (BAKHTIN, 2011, p. 371).

Essa cadeia que o enunciado representa implica considerar que cada enunciado procede de alguém e se dirige a alguém. E que a própria compreensão já significa estabelecer esse diálogo:

Compreender um enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente. Em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas. […] Toda compreensão é dialógica. A compreensão opõe-se ao enunciado, assim como a réplica opõe-se a outra no diálogo. A compreensão busca uma antipalavra à palavra do falante. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232)

Em função, disso, no contexto da arquitetônica, em que medida dizeres como “Tem que matar”, “Gay tem que morrer”, “Bandido tem que morrer” constituem réplicas a outros dizeres e são dizeres projetados a outros?  Que lugar constitui e é constituído por esse sujeito que diz essas coisas?

E antes que se eleja, de maneira simplista, o binômio bem x mal, cabe discutir esses signos no contexto representacional desses sujeitos, dentro da arquitetônica, do diálogo e da responsabilidade.

Qual o escopo da palavra bandido no enunciado “Bandido tem que morrer”?

Aplica-se a crimes de colarinho branco? A serial killer? A acusados de promover chacinas?  Qual o lugar desse sujeito que recorta e retoma o sentido da palavra bandido como um subtipo – pobre, sempre -, o do pé-de-chinelo, o vagabundo, o pária? De que lugar vem esses dizeres recortados? E para quem se dirigem? Para os governantes, muitas vezes culpados de um duplo crime (o de gerar as condições para a existência de criminosos e de serem eles próprios criminosos na gestão da coisa pública)? Para os bandidos (desse subtipo) como um animal vociferando em seu território ante a aproximação de um intruso?

Qual o escopo da palavra mulher em “Mulher tem que ter marido”? Não pode ter extensão máxima e referir-se a todas as mulheres. Porque senão, estariam incluídas as crianças do sexo feminino, as idosas, as que decidiram não se casar, as religiosas celibatárias, as homossexuais. É um enunciado metonímico, como no caso anterior. É um subgrupo. A das mulheres em idade e condições de terem vida sexual. Têm que ser objeto do desejo e do controle – masculino (machista).

Bakhtin, ao tratar da relação de alteridade diz que “[a] mim não são dadas as minhas fronteiras temporais e espaciais, mas o outro me é dado integralmente. ” (BAKHTIN, 2011, p. 383). Esse eu deôntico, raivoso, é o discurso aniquilante desse outro que o constitui. Podemos brincar um pouco e fazer aludir aqui uma comparação com o mito platônico do andrógino: esse sujeito constitui-se no lugar que pune os homens pela insubordinação humana. É suicida, narcísico. Categoriza, classifica, seleciona e higieniza esse outro que deve totalizar e do qual depende para definir suas fronteiras temporais e espaciais.

E, por falar em categorização, lembro-me, finalmente de Michel Foucault. No prefácio de seu livro As Palavras e as Coisas, Foucault começa declarando que deve essa obra à leitura de um conto de Jorge Luís Borges, no qual o escritor argentino constrói uma categorização paradoxal e insólita, atribuída a uma enciclopédia chinesa. O filósofo francês vai discorrendo sobre as implicações do absurdo da categorização borgeana e, num dado momento, a localiza:

A monstruosidade que Borges faz circular na sua numeração consiste, ao contrário, em que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado. O impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se. Os animais “i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo” — onde poderiam eles jamais se encontrar, a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a transcreve? (FOUCAULT, 1999, p. 8)

Invoco, aqui, a voz de Foucault nesse excerto para questionar, como ato responsável, qual é essa voz (aparentemente) imaterial que enuncia. Sob que ardil enunciativo se esconde, constituindo-se arquitetonicamente numa alteridade recusada e seletiva. Numa eugenia discursiva cujos limites entre o (re)conhecer-(se) (n)o outro e julgar(-se) (n)o outro dispersam-se, esfumam-se. Nada estranho para uma sociedade em que os lugares do julgar, do investigar, do sentenciar e do encarcerar são, muitas vezes, os mesmos. Divinizados, sacralizados.

Na incompletude de cada elo da grande cadeia de enunciados, no âmbito micro no interior do grande tempo, constituo-me, responsavelmente, por essas indignações.

Referências

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

PLATÃO. O Banquete. In Os Pensadores – Platão. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

POE, Edgar A. William Wilson. In Histórias Extraordinárias. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

VOLÓCHINOV, Valentin V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução do russo de Sheila Grillo e Ekaterina Volkova. São Paulo: Editora 34, 2017.

[1] Doutor em Letras (Unesp-Araraquara). Docente da Graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras. Coordenador do GEDISC (Grupo de Estudos Discursivos sobre o Círculo de Bakhtin) que, desde 2013 tem-se ocupado com análise de semioses não-verbais sob o ponto de vista bakhtiniano.

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