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As chamas de Borba Gato e a natureza dialógica da linguagem

Ana Carolina Siani

No dia 24 de julho de 2021, um incêndio tomou a estátua de Borba Gato em Santo Amaro, bairro localizado na zona sul da cidade de São Paulo[1]. O ato que se configurou como uma manifestação política foi assumido pelo grupo de ativistas nomeado como “Revolução Periférica”, o que culminou na criminalização e prisão de alguns de seus membros. Como se tem registro nos últimos anos, esta não foi a primeira vez que o monumento idealizado pelo escultor Júlio Guerra e inaugurado em 1957 como uma homenagem ao bandeirante Manuel de Borba Gato (1649-1718) foi alvo de protestos. Em 2016, a estátua de Borba Gato e o Monumento às Bandeiras, localizado no Parque do Ibirapuera, amanheceram pichados com tinta colorida[2].

Contextualizados por um debate atual que busca repensar e ressignificar monumentos que retratam personalidades históricas envolvidas com a dominação e exploração de povos subalternizados, esses diferentes atos de protesto nos revelam uma crítica ao papel dos bandeirantes na história brasileira, uma vez que o grupo esteve comprometido com missões em determinadas regiões do Brasil e que envolviam a caça e escravização das populações indígena e negra no período colonial. No bojo de uma disputa entre narrativas, as diferentes intervenções são valoradas diferentemente pela opinião pública, e no caso do incêndio da estátua de Borba Gato, o ato foi avaliado como “vandalismo” por uma parcela da população brasileira, ao mesmo tempo em que foi tido como “revolução” por outra, bem como instaurou debates entre especialistas acerca do real papel de Borba Gato na prática bandeirante e da necessidade de se preservar este monumento e outros por seu valor de registro histórico.

Se considerarmos a natureza dialógica da linguagem tal como compreendiam os estudiosos do Círculo de Bakhtin (tomados aqui pelos escritos de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev), podemos retomar seu papel como material dos fenômenos ideológicos, o que nos permite refletir acerca do caráter valorativo do monumento de Borba Gato enquanto um signo ideológico.

Como uma perspectiva que leva em conta seu caráter de atividade e de mediação entre sujeitos socialmente organizados, os escritos do Círculo de Bakhtin nos possibilitam pensar a linguagem de forma ampla, o que nos permite conceber o monumento de Borba Gato como uma criação ideológica. Elaborada por um autor-criador, a estátua como uma obra de arte se estabelece como um enunciado artístico, o que também nos revela a natureza social da arte enquanto uma forma de linguagem.

Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Volóchinov (2017) destaca a linguagem como materialidade por meio da qual encarnam-se as ideologias: “Qualquer fenômeno ideológico sígnico é dado em algum material: no som, na massa física, na cor, no movimento do corpo e assim por diante” (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 94). Uma vez materializados pela/na linguagem, os fenômenos ideológicos podem ser considerados em sua dimensão sígnica, isto é, como elementos que constituem a realidade natural, ao mesmo tempo em que refletem e refratam uma outra realidade para além de seus limites.

Por uma perspectiva dialógica, o monumento de Borba Gato como um ato de linguagem nos leva além de seus limites e de suas particularidades materiais, pois se encarado como um enunciado concreto, como fenômeno social e histórico carrega um valor, isto é, nos revela um determinado posicionamento social que se constitui pela relação que trava com outros posicionamentos e valores. Segundo Medviédev (2012), como povoado por signos, o meio ideológico é a consciência social que se encontra materialmente expressa. No caso da construção de monumentos como a estátua de Borba Gato, é válido contextualizarmos que a obra se inscreve na esteira de um processo histórico de “heroicização” da figura do bandeirante, que passa a ser valorado como “herói paulista” a partir do fim do século XIX e início do século XX, no contexto de ascensão econômica de São Paulo, um movimento de ressignificação que se materializa na forma de monumentos e estátuas, nomeação de ruas, avenidas, rodovias etc.[3].

Deste modo, podemos dizer que todo enunciado se constitui como uma orientação avaliativa frente à realidade, assim como participa de um diálogo social em larga escala. Se compreendida a ideia de diálogo por seu funcionamento amplo e como motor da comunicação entre sujeitos, podemos considerar que antes de consenso e concordância, a linguagem pressupõe relações de embate e divergência. Em seu teor avaliativo e de resposta ao horizonte ideológico de uma dada época, potenciais homenagens às figuras históricas comprometidas com o genocídio e dominação dos povos indígenas e negros na forma de monumentos comporta sempre duas faces, pois nos conta a história da colonização por um determinado ponto de vista: “O signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante” (VOLOCHÍNOV, 2017, p. 93).

De fato, como colocado por Medviédev (2012), o horizonte ideológico de qualquer época não é constituído por uma única verdade, mas por várias verdades divergentes. Bakhtin (2010) nos diz que um mesmo acontecimento quando em relação com o “eu” e com o “outro” recebe uma valoração diferente, o que nos permite perceber que uma mesma realidade pode ser percebida diferentemente pelos grupos em disputa. A linguagem manifesta essa luta de classes, na qual a estátua de Borba Gato destaca-se como um palco do embate entre diferentes grupos sociais e seus interesses (VOLÓCHINOV, 2017).

Neste contexto de disputa de narrativas e luta pelos sentidos, a compreensão e recepção de um determinado enunciado também se dá como uma resposta (BAKHTIN, 2011). Enquanto manifestação e ato de linguagem, o incêndio de uma estátua ou monumento também diz e está igualmente imbuído de valor. Como resultado de uma tendência global em que grupos historicamente subalternizados reivindicam novas formas de representação, bem como a ressignificação de determinados signos ideológicos; o próprio fato de tais figuras históricas e seus atos do passado estarem sendo revistos “responde” a um diálogo maior, pois situa-se na esteira de outras ações como propostas de mudança do nome de ruas, projetos de leis que propõem a retirada de determinados monumentos do espaço público e sua transferência para museus, a construção de outros monumentos para homenagear figuras históricas importantes que representariam o outro lado da história etc.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010a.

______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Martins Fontes, 6ª ed., 2011.

MEDVIÉDEV, P. M. O método formal nos estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo São Paulo: Contexto, 2012.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Rio de Janeiro: 34, 2017.

 

[1] “Estátua de Borba Gato é incendiada em São Paulo”. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/noticia/2021/07/24/estatua-de-borba-gato-e-incendiada-por-grupo-em-sao-paulo.ghtml (Acesso em 14 de agosto de 2021).

[2] “Monumentos amanhecem pichados com tinta colorida em SP”. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pichados-com-tinta-colorida-em-sp.html (Acesso em 15 de agosto de 2021).

[3] “Como os bandeirantes, cujas homenagens hoje são questionadas, foram alçados a ‘heróis paulistas’”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53116270 (Acesso em 16 de agosto de 2021).

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