José Antônio Rodrigues Luciano
Introdução
Desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, a Rússia viveu um conturbado momento sociopolítico com sucessivas transformações no regime de governos e na estrutura da sociedade. A título de ilustração, podemos citar a Revolta Dezembrista de 1825 na passagem para o reinado do czar Nicolau I até a Revolução de Outubro em 1917, que deu início à União Soviética. Em ambos os acontecimentos históricos, destaca-se um período de perseguições políticas a opositores, exílios, aparelhamento do Estado e censura.
Diante de todo contexto pouco favorável aos intelectuais e à multiplicidade de ideias tanto na Rússia czarista quanto na soviética, resultou em uma ausência de estabilidade na sociedade civil ainda emergente em ambos os períodos, contribuindo para a formação espontânea de círculos informais, em um “subsolo filosófico” (TIHANOV, 2017). Esse processo de instabilidade sociopolítica afetou, direta e particularmente, as ciências humanas bem como a arte, pois a linguagem, nesta época, foi prejudicada (lexemas foram proibidos, assuntos restringidos, e, dessa forma, já não havia vocabulário para a produção científica).
Em consequência dessa palavra autoritária, intelectuais começaram a formular um novo discurso tanto nas Ciências Humanas e quanto nas artes com experimentos de e na linguagem. A reflexão em torno da linguagem estética era uma forma de observar e formular indiretamente críticas a respeito da realidade russa na forma de teoria da arte, evitando a censura e perseguição por parte do Estado. Por exemplo, a influência da literatura e das revistas por onde eram publicados os textos se intensificou com nomes como o de Púckhin, Gógol, Tchaádaiev, Liérmontov e Koltsov. Além da Inglaterra, em nenhum outro lugar a importância das revistas foi tão grande quanto na Rússia. Nomes como O Telégrafo [Telegraf], O mensageiro de Moscou [Moskóvski Viéstnik], O Telescópio [teleskop], Biblioteca para a Leitura [Bibliotieka dliá Tchtiénia] e outros democratizaram e difundiram conhecimentos, conceitos, ideias e textos literários. Protagonismo que voltou a acontecer posteriormente, a partir da Revolução Russa de 1917, seguida da instauração do regime soviético.
Assim, podemos entender a opção pela continuidade da reflexão da realidade por meio do material estético, pois “o relacionamento e as fronteiras entre estética e ética como dimensões da vida e da cultura” (BRANDIST, 2002, p. 34, tradução nossa[1]).
No início do século XX, então, foi que os processos de criação e estudo da linguagem alcançaram seu ápice. De acordo com Boris Schnaiderman (2010, p. 18), “a interpenetração das artes encontra então seu momento privilegiado”. Nesse cenário, é possível observarmos:
A relação dos poetas cubo-futuristas russos com a pintura e o cinema; a preocupação dos próprios simbolistas, sobretudo Andréi Biéli, com a problemática do signo; as experiências teatrais de Meyerhold, Taírov, Vakhtangov e outros, que ampliaram o campo de ação do teatro, visto na totalidade dos elementos visuais e sonoros, enquanto a própria semiótica do teatro já era iniciada com os trabalhos de P. Bogatirév; os projetos arrojadíssimos de Tátlin, em que a escultura e a arquitetura se fundiam e criavam-se conjuntos giratórios emissores de sons; as experiências gráficas de El Lissitski, que elevavam a tipografia à condição de arte maior; enfim, são realizações e mais realizações, todas no sentido de expressar uma das aspirações máximas do século: arte, ciência e técnica, fundidas numa totalidade e oferecidas ao homem para uso cotidiano. (idem, p. 18-19)
Somam-se, ainda, a esses trabalhos, as realizações de Eisenstein no teatro e no cinema com seu interesse pela sinestesia; os projetos Víctor Chklóvski e Óssip Brik como roteirista; as fotomontagens de Ródtchenko, em colaboração com Maiakóvski e o cineasta Dziga-Viertov (SCHNAIDERMAN, 1971); os estudos linguista Nicholas Yakovlevich Marr (marrismo) sobre a origem da linguagem dos gestos como predecessora da língua verbal e a relação do surgimento desta com o uso de instrumentos e os de Mikhail Mikhaylovich Ivanov, crítico musical que possui trabalhos como Púchkin em música. Como nos aponta Ivanova (2011), trata-se de uma situação geral de pesquisa neste período entre o final do século de XIX e começo do XX, com apogeu nos anos 20. A linguística soviética buscou novidades em outros campos criativos (no teatro, na música, na literatura, nas belas-artes etc) durante esse período, com o intuito de criar objetos, materiais e caminhos e metodologias. Nesse sentido, podemos expandir tal afirmação ao evidenciar que não apenas a linguística se caracteriza nessa condição, mas um movimento amplo entre os intelectuais da época.
Por conseguinte, é partir desse lugar que temos neste trabalho o objetivo propor reflexões iniciais, do ponto de vista teórico, acerca da convergência entre o pensamento de Kandinsky e as ideias do grupo de pensadores russos, conhecido como Círculo de Bakhtin (ou, ainda, Círculo B.M.V), sobretudo em relação à concepção de linguagem, compreendida de maneira interrelacional e indissociável (isto é, ao mesmo tempo verbal, visual e sonora), que perpassa as reflexões dos autores, como parte de um contexto maior de investigação sobre a interação tridimensional das linguagens, na qual Kandinsky e o Círculo de Bakhtin estão inseridos. Essa proposta integra nossas pesquisas que vimos desenvolvendo, as quais estão voltadas ao contexto russo e, principalmente, na compreensão da noção tridimensional da linguagem verbivocovisual da/na filosofia bakhtiniana (PAULA e LUCIANO, 2020; LUCIANO, 2021).
A hipótese é que, no cenário de intensas pesquisas e experimentações com/sobre a linguagem, artistas e pensadores de diferentes áreas buscavam compreender os signos não apenas como um instrumento de representação semiótica, mas como a própria constituição material da realidade humana, ou seja, da existência. Desse modo, os signos (verbal, visual e sonoro) ganham unidade concreta no sujeito, por meio do qual se articulam para a expressão da realidade social.
Para o desenvolvimento do trabalho, além de escritos de Schnaiderman (1971; 2010), Ivanova (2001), Brandist (2002) e Tihanov (2017) na breve recapitulação histórica acima feita, tomamos também as obras do Círculo e de Kandinsky, deste último, em especial, Do espiritual na arte (1996) e Ponto, linha e plano (1970). Com isso, o intuito do trabalho é poder lançar um novo olhar na compreensão da linguagem e no entendimento das reflexões postas pelos teóricos e pelo pintor russos.
A interrelação tridimensional da linguagem: uma aproximação de Kandinsky e Círculo de Bakhtin
Antes de adentrarmos propriamente ao pensamento teórico do Círculo B.M.V e de Kandinsky, cabe-nos ressaltar as respectivas formações intelectuais, as quais decerto contribuíram para suas reflexões. A composição do coletivo pensante bakhtiniano era constituída por filósofos, musicistas, biólogo, literatos, poetas, dentre outros, que tinha a linguagem como o ponto central nas discussões do grupo, de modo que os olhares heterogêneos em torna dela propiciaram uma reflexão ampla na formulação filosófica desses estudiosos. De maneira semelhante, Kandinsky pode ser visto como um multi-intelectual, uma vez que, durante sua carreira, dedicou-se à música, à poética e à pintura, ainda que seja reconhecido quase exclusivamente por esta última. Além disso, o pintor russo lecionou em Bauhaus entre os anos de 1922 e 1933 (ano de fechamento pelos nazistas), escola de vanguarda que tinha como uma de suas propostas a combinação entre a pintura, arquitetura, música, teatro e outras artes. Eis que encontramos, aqui, as primeiras convergências que nos indicam para uma compreensão interrelacional da linguagem.
Tal posição de Kandinsky e do Círculo se manifestará desde a abordagem que cada autor[2] desenvolverá em suas produções teóricas. O primeiro, ao analisar o movimento de interiorização do homem na arte, debruça-se sobre o procedimento na literatura, na música e na pintura, de maneira a compreender como ocorre em cada materialidade semiótica a partir de suas especificidades técnicas. Por exemplo, em Maeterlinck, a palavra poética é determinada na alma pela entonação em que é pronunciada, gerando uma complexa vibração interior. Na música, isso ocorre por meio de leitmotiv puramente musical, no caso das obras de Wagner. E na pintura aparece com as manifestações impressionistas, na quais tendem para o abstrato (KANDINSKY, 1996).
Ao estudar as categorias de espaço e tempo, Bakhtin (2011) utiliza o mesmo recurso tomado pelo pintor russo. O filósofo aponta o nível de abstração que há na categoria espacial, sendo plenamente realizada nas artes visuais devido ao material externo e menos concretizada na música, que se manifesta mais plenamente na forma temporal do material externo.
Todavia, a aproximação efetiva entre Kandinsky e o Círculo B.M.V no que se refere a uma concepção interrelacional da linguagem se dá explicitamente no entendimento da geral da arte, e da linguagem, expostas por cada autor em seus textos. Assim encontramos em Do espiritual da arte, do pintor, e em “O Problema do texto” do filósofo:
Cada arte, ao se profundar, fecha-se em si mesma e separa-se. Mas compara-se às outras artes, e a identidade de suas tendências profundas as leva de volta à unidade. Somos levadas assim a constatar que cada arte possui suas forças próprias. Nenhuma das forças de outra arte poderá tomar seu lugar. Desse modo se chegará, enfim, à união das forças de todas as artes. (KANDINSKY, 1996, p. 59, grifos nossos)
Todo sistema de signos (isto é, qualquer língua), por mais que sua convenção se apoie em uma coletividade estreita, em princípio sempre pode ser codificada, isto é, traduzido para outros sistemas de signos (outras linguagens); consequentemente, existe uma lógica geral dos sistemas de signos, uma potencial linguagem das linguagens única (que, evidentemente, nunca pode vir a ser uma linguagem única concreta, uma das linguagens). (BAKHTIN, 2011, p. 311, grifos nossos)
Nos excertos acima, observamos não apenas a possibilidade de uma unidade geral das linguagens, mas também a independência de cada material semiótico, sem viabilidade de que um seja capaz de substituir o outro, visto que cada materialidade – com seus meios, formas e princípios – expressa diferentes aspectos da realidade interior e exterior do homem e untas constituem a existência do ser e do mundo. A linguagem encontra-se sua unidade no sujeito, por meio dela ele ganha existência, assim como, o signo só passa a ter concretude ao ser in-corporado pelo homem na busca pela expressão de si e da realidade que o circunda.
Considerações Finais
Certamente, os apontamentos feitos ao longo deste trabalho requerem e merecem maior aprofundamento sobre tema, que pretendemos realizar no decorrer do nosso projeto de Doutorado, como um eixo complementar. Contudo, algumas apreciações são já nos permitida:
A primeira, e talvez a mais evidente, refere-se à abertura para a possibilidade de investigação teórica acerca da relação entre as ideias de Kandinsky e as do Círculo de Bakhtin, sobretudo vista inserida dentro de um contexto maior de pesquisa na União Soviética, entre artistas e cientistas da linguagem (papeis que, muitas vezes, se confundiam em um único sujeito).
Em segundo lugar, é possível notarmos aparente recorrência metodológica nos estudos desenvolvimentos no regime soviético na época em questão. Trata-se da acentuação, enquanto método consciente e sistemático de pesquisa, procedimentos comparativos entre as artes no estudo das categorias conceituais da linguagem. Isso nos fica evidente não apenas reincidência que mostramos nos dois pensamentos apresentados e relacionados, mas nas palavras de Kandinsky (1996), em que afirma não bastar apenas comparar os procedimentos entre as diferentes artes, é preciso “ajustar-se aos princípios de uma e de outra. Uma arte deve aprender de outra arte o emprego de seus meios, inclusive os mais particulares, e aplicar depois, segundo seus próprios princípios, os que são dela e somente dela” (p. 58), sem esquecer-se que cada meio corresponde à particularidade de cada linguagem. Ainda segundo o pintor, é em função disso a busca por ritmo na pintura. Ademais, essa prática aparece também nos trabalhos de Fortunatov (2010) que vai pensar a ritmo na prosa literária na relação com arquitetura, na música e nas artes plásticas. Uspênski (2010), de modo semelhante, reflete sobre os elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte, em especial, na literatura e na pintura. O que nos parece, aqui, é que tal método, ao possibilitar compreender as aproximações e particularidades de cada arte/linguagem, também permitiu realizar as inovações e experimentações de/com linguagem na Rússia soviética. Observação que converge com os dizeres de Kandinsky no prefácio à segunda edição de sua obra Ponto, linha e plano (1970, p. 23), ao expor que o desenvolvimento analítico e sintético “afectou não só a pintura mas também as outras artes ao mesmo tempo que as ciências ‘positivas’ e ‘humanas’ ”.
Por fim, uma última constatação, volta-se para o entendimento de uma noção de linguagem interrelacional, tridimensional, que permeia os estudos desse período, em que as dimensões verbal, sonora e visual estão constantemente no horizonte dos intelectuais russos. É claro que a abordagem e enfoque na realização dessa prática são os mais diversos possíveis, o que resultam em conclusões distintas em certa medida, por exemplo, Kandinsky o faz a partir do viés subjetivo, pois buscava a emancipação da arte (posição semelhante à dos Formalistas Russos), em resposta às tendências materialistas da época, que objetivavam ser o objeto estético imitação direta da realidade. Ao contrário, o Círculo B.M.V formula suas reflexões sob o viés do sociologismo, considerando a linguagem um objeto imanentemente social, em oposição às correntes formais. Todavia, o que nos parece passível de constatação é a compreensão de uma unidade geral da linguagem, a qual abrange as dimensões verbivocovisuais, presente nas pesquisas na União Soviética.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRANDIST, Craig. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. London: Pluto Press, 2002.
FORTUNATOV, Nikolai Mikhailovich. O ritmo da prosa literária. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. In: SCHNAIDERMAN, B. (org.). Semiótica russa. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 219-220.
IVANOVA, Irina. O diálogo na linguística soviética dos anos 1920-1930. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, [S.l.], n. 6, p. 239-267, nov. 2011. ISSN 2176-4573. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/6089 >. Acesso em: 23 maio 2020.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte: e na pintura em particular. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
_____. Ponto e linha sobre plano: contribuição à análise dos elementos da pintura. Lisboa: Edições 70, 1970.
LUCIANO, José Antonio Rodrigues. Filosofia da linguagem bakhtiniana: concepções verbivocovisuais. 2021. 278f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa) — Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara), Araraquara, SP 2020. Disponível em: < http://hdl.handle.net/11449/204473 >
PAULA, Luciane de; LUCIANO, José Antonio Rodrigues. Filosofia da linguagem bakhtiniana: concepção verbivocovisual. Revista Diálogos – RevDia. Cuiabá (MT), v. 8, n. 3 (2020), p. 132-151. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia/article/view/10039. Acesso 30 de outubro 2020.
SCHNAIDERMAN, Boris (org). A poética de Maiakóvski através de sua prosa. São Paulo: Perspectiva, 1971.
___. Semiótica na U.R.S.S.: uma busca de “elos perdidos” (á guisa de introdução). In: SCHNAIDERMAN, B. (org.). Semiótica russa. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 9-27.
TIHANOV, Galin. Filosofia e pensamento social russo: continuidades depois da Revolução de Outubro. Estudos Avançados, v. 31, n. 91, p. 9-24, 1 dez. 2017.
USPÊNSKI, Boris Andreevich. Elementos estruturais comuns às diferentes formas de arte: princípios gerais de organização da obra em pintura e literatura. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. In: SCHNAIDERMAN, B. (org.). Semiótica russa. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 163-220.
[1] No original: “the relationship and boundaries between aesthetics and ethics as dimensions of life and culture”
[2] Em relação ao Círculo de Bakhtin, compreendemos uma única autoria realizada coletivamente. Por isso, referência ao grupo como “um autor”.
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