top of page

A CAVERNA-PERIFERIA E A CAVERNA-EDIFÍCIO DE LUXO: SEPARATISMO DE “VERDADES” SISTÊMICAS

Priscila da Costa Silva[1]

Luciane de Paula[2]

O presente ensaio tem como objetivo estabelecer relações entre o diálogo platônico O Mito (ou Alegoria) da Caverna com a obra fílmica dirigida por Fernando Meirelles em conjunto com Kátia Lund, Cidade de Deus e o documentário Alphaville – Do Lado de Dentro do Muro, de Luiza Campos e Gustavo Ribeiro, além de evidenciar que, mesmo após séculos da crítica feita por Platão o mundo permanece acreditando em sombras e se encontra fechada em suas cavernas.

Há situações, como retrata o filme Cidade de Deus, em que os sujeitos desfavorecidos de uma sociedade desigual não estão alijados de determinados espaços e realidades sociais porque querem, mas sim porque são submetidos a permanecerem em exclusão. Nesse caso, quem assume a responsabilidade pela produção sócio-político-cultural da desigualdade são aqueles que estruturam a sociedade de tal forma, ao colocarem em prática a crença ignorante na superioridade de uma “raça” sobre outras, declarada pela organização do espaço social (lugares específicos direcionados para grupos socioeconômicos próprios de determinada camada, designada por sua classe) de modo separatista hierárquico.

Bakhtin (2011, p. 271) afirma que todo enunciado é responsivo e responsável, uma vez que já nasce como resposta, tanto a enunciados passados quanto futuros, em um elo discursivo-histórico de sentido, o que implica na relação dialético-dialógica de uma obra com a outra, como sucede na obra de Platão e nos discursos que serão aqui analisados, mesmo apartados pelo tempo.

A metáfora existente no Mito da Caverna se relaciona com outros enunciados, mesmo que de espaço, tempo e sujeitos distintos, como é o caso do filme Cidade de Deus e do documentário Alphaville, que retratam cenários, temporalidades e sujeitos opostos entre si e remetem, cada qual a seu modo, ao mito platônico, ao configurarem a noção de aprisionamento em uma bolha (caverna), tendo em vista a estruturação socioeconômica, no caso, do Brasil (mas não só), como exemplos de típica estruturação sistêmica capitalista, alienadora de determinado ângulo, de dada realidade. Por um lado, o filme aqui analisado apresenta uma visão interna da comunidade do Rio de Janeiro e o documentário, por outro, retrata a visão dos moradores do condomínio Alphaville, em São Paulo, ambos vistos como “cavernas” de grupos sociais distintos, opostos, no caso, econômica e socialmente.

O Mito da Caverna é uma alegoria de Platão, filósofo da antiguidade e discípulo de Sócrates, presente no livro “A República”, escrito de forma metafórica, por volta de 380 a.C. A alegoria da caverna se apoia na filosofia de Platão sobre “o mundo das ideias e o mundo dos sentidos”, um mundo de formas e o outro, onde essas formas são materializadas.

Um diálogo entre Sócrates e Glauco dá início ao mito. No diálogo, Sócrates pede para que Glauco imagine uma caverna habitada por homens desde o nascimento. Esses homens possuem seus corpos amarrados e, por isso, sem liberdade de movimentos, só conseguem visualizar uma parede dentro da caverna e passam a vida limitados no espaço, seja o espaço de seu próprio corpo e de sua mente, seja o espaço físico da caverna. De acordo com a narração de Sócrates a Glauco, uma luz emitida pelo sol adentra a caverna e reflete sobre a parede o reflexo (a sombra) das coisas do mundo. Essa projeção se torna a representação da vida e a “verdade” para os habitantes da caverna que, afastados do mundo externo à força (não nos esqueçamos que se encontram amarrados), assumem a sombra como projeção do “real”. Um desses sujeitos, no entanto, consegue se libertar e foge da caverna.

Ao sair e olhar diretamente para o sol, a luz do mundo exterior, forte, o cega momentaneamente até se adaptar à nova realidade e conseguir enxergar as coisas do mundo por uma óptica diferente, não mais como ilusão em forma de sombra. Ao se dar conta (tomar consciência) de sua cegueira (alienação), ele volta à caverna e conta a seus outros sobre sua descoberta, na tentativa de libertá-los.

Os outros sujeitos, contudo, desconhecedores (alienados) da “realidade” por viverem nas sombras, presos, alijados do mundo, não acreditam na versão narrada por seu igual-fugitivo. Preferem acreditar na explicação criada por eles mesmos sobre o mundo e a vida a partir das únicas projeções a quem têm acesso do que na experiência diferente do outro, que conseguiu se libertar de sua prisão.

Diante da diferença e do diferente, os prisioneiros ao invés de se juntarem para conhecerem o que nunca antes puderam, preferem permanecerem excluídos, amarrados e alienados com suas “verdades”-sombras cômodas do que enfrentar uma realidade desconhecida, colocando a versão e a palavra do outro, fugitivo, em dúvida.

A liberdade que revelou a luz é, então, atacada e o sujeito diferente passa a ser atacado por sua visão de mundo heterogênea. A inversão diante do inusitado e desconhecido é valorada, por quem já não tem força para se libertar da violência cotidiana vivida, como negativa, falsa (“fake”) e até perigosa, a ponto daquele que vê diferente precisar ser afastado ou dizimado por intolerância à diversidade.

Em outras palavras, essa pequena e aparentemente simples narrativa metaforizada pela cegueira, pelas sombras e pela caverna alegoriza a condição de alienação existencial dos seres, que vivem suas certezas, presos às suas verdades, a partir de suas crenças valorativas. Isso, do viés linguístico, demonstra que cada signo possui sentidos distintos, a depender de quem vê, de onde vê, quando vê e como vê.

Desse ponto de vista, em uso, de modo vivo, na comunicação e na interação discursiva, o signo, seja ele verbal ou não, é prenhe de sentido e jamais neutro (a não ser em sua virtualidade arquivística não concreta), como nos ensina Volóchinov (2017, 99.): “(…) o signo é criado por uma função ideológica específica e é inseparável dela”.

Assim, se a palavra (entendida como um dos signos possíveis da comunicação) é neutra porque “(…) pode assumir qualquer função ideológica”, o signo, em ato material, escolhido por um sujeito, em uma interação situada tempo-espacialmente (cronotopicamente, portanto) surge, na vida (sintagmática) saturado ideologicamente.

Saussure (1916), no livro escrito por seus alunos, Curso de Linguística Geral, pontua que os signos se constituem por duas características intrínsecas indissociáveis: o significado, composto como ideia, como conceito mental semiológico (ou, nas palavras de Volóchinov (2017), “cognoscível”), construído socialmente pela relação do ser humano com o mundo, convencionado arbitrariamente por dada comunidade linguística; e sua representação material acústica, o significante, que expressa, também de forma convencional arbitrária, a simbologia verbo-vocal desse signo – o que expressa externamente a concepção mental.

Mais que isso, do ponto de vista da formulação bakhtiniana, como compreendida no Brasil, esse signo só possui sentido vivo na interação entre sujeitos, num dado espaço-tempo, de modo situado, pois não se trata de uma abstração generalizada, mas sim da singularidade enunciativa, como elo da comunicação discursiva.

Sob esse aspecto, o signo “caverna” metaforiza uma representação mental alegórica de mundo ilusório, no qual estamos limitados às nossas crenças, sem conseguirmos enxergar outras possibilidades de sentidos e existências. Nesse sentido, segundo Volóchinov (2017, p. 93), “Onde há signo há também ideologia. Tudo o que é ideológico possui significação sígnica” e não é possível pensarmos em uma concepção de língua e de linguagem neutras, isentas de valorações, a não ser de modo “virtual”, paradigmático, abstrato, fora do uso.

Os homens acorrentados do mito platônico assumem o papel alegórico da humanidade. O deslocamento para fora da e, de volta à caverna semiotiza a busca pelo conhecimento, pela descoberta, pelo desenvolvimento da “consciência possível”, como nos ensina Marx (1964). As sombras refletidas na parede simbolizam a ilusão de “verdade” e de “realidade” de quem desconhece outros modos de vida, outros pontos de vista, outras visões de mundo, diferentes e de outras “cavernas”/”bolhas”. E, por fim, a luz do sol representa uma possibilidade de “real”, que cega à primeira vista, se encarada diretamente, mas que se faz reveladora, depois de adaptados os olhos dos sujeitos, pois eles podem ver o mundo e a interação homem-mundo pelo viés da cultura e da sociabilidade, de outra maneira, diferente das meras sombras projetadas na parede escura da caverna de outrora.

Com a oposição sombra-luz do sol, o mito de Platão nos faz refletir sobre “verdades absolutas”, relativizando-as, tendo em vista a interação sujeito-mundo (prisioneiros-caverna; prisioneiro-mundo), sujeito-sujeito (prisioneiros-homem livre/desacorrentado) e suas escolhas de vida, como modos de existência, pautados no medo e no comodismo do habitual-conhecido e/ou no arrojo da experimentação da diferença, do novo-inusitado, do risco corajoso.

Quase como uma fábula, o texto do filósofo grego termina com uma espécie de moral: o desenvolvimento da consciência possível (“desalienadora” – se é podemos dizer desse modo) ocorre pelo risco corajoso, empático e amoroso daquele que se arrisca a sair do comodismo violento de sua caverna e abre-se ao novo, diferente, que pode até cegar momentaneamente (afinal, sair de uma zona de “conforto”, mesmo dolorida, mas conhecida, causa medo e, portanto, desconforto), mas pode iluminar outras possibilidades de visão de mundo, construção de novos-outros pontos de vista e quebra de paradigmas/correntes.

Ao mesmo tempo, o final da narrativa alegórica entre Sócrates e Glauco, na “República”, de Platão, também revela que não adianta tentar alertar ou abrir os olhos ou tentar livrar o outro de suas correntes se este se recusar e que este despertar da “consciência possível” é um movimento interno-externo responsivo e responsável que, de certa forma, também caracteriza o sistema em que vivemos, ousamos dizer, até hoje, a nossa República Democrática (o “Estado Democrático de Direito”) contemporânea, composta por Fake News, Inteligência Artificial, compartilhamento de ideias repetidas tantas vezes que se esvaziam de sentido e contribuem para a robotização mental humana.

Nossas cavernas, hoje, são outras tantas, mas ainda continuamos presos, de diversas formas e em esferas variadas, tanto individual quanto coletivamente e essa estrutura é propícia para a manutenção do poder e o controle dos sujeitos. O modelo estruturado desse modo no grande tempo da cultura, historicamente conhecido, é muito potente, pois ainda e até hoje muito eficaz a quem possui os meios de produção sobre os que só têm sua mão de obra para sobreviver e resistir.

Ao pensarmos no diálogo entre Cidade de Deus e Alphaville, ainda que esses sejam enunciados de gêneros distintos (uma obra fílmica de ficção, ainda que baseada em elementos vividos reais e um documentário, com entrevistas e pontos de vista colhidos em forma de depoimento, típico de uma ideia de “real”), a dicotomia entre “bolhas”/cavernas fica clara, ao pensarmos a divisão espacial (da geografia física – que, como nos ensina Milton Santos (2000), nunca é apenas física, uma vez que, sempre, também, social), essa estrutura de guetos que separam os grupos e as classes sociais, pautada em “verdades” estereotipadas construídas de “periculosidade” X “segurança”, “vagabundagem” x “produtividade”.

Um parêntese: não é casual ou fortuita a escolha do local retratado no filme aqui estudado ser constituído por uma das maiores e mais violentas favelas do Rio de Janeiro, nomeada com os signos “Cidade” e “Deus”, tendo em vista as visões estereotipadas da própria cidade do Rio de Janeiro: ao mesmo tempo, “cidade maravilhosa”, cidade violenta e a cidade “cartão-postal” do Brasil, do Cristo Redentor, de braços abertos para todos (quem compõe esse “todos” é outra questão).

Mais que isso, não é fortuita a escolha por retratar uma favela dessa cidade e não de outra. O Rio de Janeiro também é conhecido como a capital do samba e do funk carioca. Cidade dos morros e dos vales, de montanhas e de mares, da sinuosidade do “Pão de Açúcar”, das curvas femininas em sua natureza, das quebradas dos becos e do ritmo, tanto da cidade quanto da música de sua gente que, sem espaço físico, se amontoa e cria possibilidades de vida onde não seria provável essa pulsão.

Diante da resistência do pulso vivo e firme do Estado, nasce, em resposta a ele, o quadril malandro que re-quebra, em levada acelerada, e insiste, resiste e persiste em, mais que sobreviver, viver, dançando na corda bamba da incerteza, da retidão e da segurança. Esse Rio-mar-montanha é visto também como a cidade de outros deuses, cidade sem Deus, cidade da criminalidade e da diversidade cultural. Cidade “da bandidagem”, da “vabundagem” malandra Macunaímica que “não gosta” de trabalhar. Cidade pobre e rica, repleta de contradições, em todos os sentidos.

Em oposição, também não é fortuita a escolha de um condomínio de luxo para retratar a visão de mundo de um grupo que semiotiza valores de mais de uma classe, valores de sociedade e de existência capitalista eugenista estar localizado nos concretos residenciais paulistanos. A cidade de São Paulo é chamada por muita gente, também de modo estereotipado, como “a capital do trabalho”, a “locomotiva do Brasil”.

Cidade conhecida pelos prédios de bancos da Paulista e as boutiques dos Jardins, pelo grupo de empresários e acionistas da Faria Lima e por sua gastronomia internacional. Cidade cinza-concreto, asfalto e prédios, do rock estridente e metálico, do tilintar das moedas, o som do dinheiro da “capital mais rica do país”, com sua industrialização tardia, para onde emergem muitas pessoas, de todos os lugares, em busca de melhores condições de vida econômica. Cidade rica que gera miséria e tenta esconder-se dela, “higienizar” as ruas de seus grafittis, pixações e moradores. O lixo do luxo, que se quer, sem lixo, o “melhor”, o “superior” e a mais-valia supérflua dos condomínios separatistas homônimos a Alphaville.

Assim, Rio de Janeiro X São Paulo também, de certa forma, semiotizam super e infraestrutura, centralizadas no Sudeste do Brasil, interna e externamente, como cidades contrárias e contraditórias entre si. Cidades de Deus, mas um Deus de braços abertos apenas para quem pode pagar para viver em Alphaville. Cidades que remetem a outros tantos estereótipos e que ratificam, de certa forma, a noção de Rio de Janeiro como locus da violência, gerada pela pobreza majoritariamente preta e favelada e de São Paulo como capital da riqueza econômica e alienada, que se quer superior e é, por isso, separatista por escolha, para não se “contaminar” com o contato com a “sujeira” que ela mesma produz: a miséria produzida pela exploração do trabalho que enriquece alguns poucos “escolhidos”, segundo eles, por Deus…

Na estrutura desigual e hierárquica capitalista, liberdade e aprisionamento se con-fundem e pre(con)ceitos sociais de classe são ratificados: a ideia de que a classe privilegiada “precisa” de segurança e se separar das demais classes e grupos, aprisionando-se em sua caverna Alphaville porque o mundo, fora dessa “bolha”, é “perigoso”, “sujo” e “pobre”, indigno, portanto, de ser vivido; e a noção de que a comunidade periférica da favela é um lugar povoado por “violência”, “bandidagem”, “tráfico” e toda sorte de discriminações, confirmam fórmulas sociais padronizadas veiculadas pelas mídias de que esses dois grupos não podem conviver, de que essas cidades são rivais e opostas, de que o mundo é composto por polos de pessoas, sem deixar refletir sobre o motivo dessa estruturação estar organizada dessa forma por normas sociais do poder branco eurocentrado que reproduzimos em nosso terceiro mundo de mentalidade, ainda, colonizada e xenofóbica conosco e com nossos outros iguais, ao nos vermos, pelas sombras projetadas nas paredes de nossas cavernas, como descendentes de europeus e não de nativos indígenas ou de povos negros escravizados, nem de mamelucos, sararás e crioulos aqui gerados (muitas vezes, à força), pela miscigenação que nos constitui brasileiros – ricos e pobres, paulistas-cariocas, concretos e quebrados misturados em nossos lixos e luxos.

Como “sombra” refletida na “parede”, as pessoas de Alphaville se sentem livres, ainda que encarceradas por escolha própria (e se endividam para isso, pagando caro para terem, segundo elas, sua “liberdade” e “sua paz”, reproduzindo falas e comportamentos de exclusão segregadora que confirma a ideia eugenista de superioridade “natural” entre raças, classes e gêneros), enquanto, em Cidade de Deus, a falta de escolha pela falta de poder econômico encurrala as pessoas à “roda viva” da violência, dada a desigualdade social, econômica, instrucional e cultural a que são submetidos os sujeitos.

Essa estrutura não tem nada de natural. Ao contrário. Trata-se de uma estratégia de controle de poder muito bem planejada e tão potente que permanece, viva, até hoje, ainda de modo extremamente forte e pulsante, a ponto de se ressignificar e se reconfigurar, sem perder a essência sedenta pelo capital que gera cada vez mais desigualdades, adoecedoras de muitas formas.

A obra fílmica Cidade de Deus aborda a trama daqueles que vivem na comunidade mais perigosa do Rio de Janeiro, cujo nome é o mesmo do título da obra. No espaço narrado, as coisas acontecem de forma violenta. Zé pequeno, o protagonista da trama, chefe da comunidade, “manda e desmanda” no lugar e, como desde criança é apresentado ao crime, assume essa vida, ainda na infância até a vida adulta, com a lógica de poder do tráfico e demais criminalidades. O modus operandi que o engole como uma engrenagem sistêmica o aprisiona, fazendo com que não enxergue outra possibilidade de existência e de realidade, especialmente no que concerne ao modus vivendi de poder, além daquele apresentado como “verdade” única possível, como saída sem-saída diante das condições em que se encontra.

Como os presos acorrentados na caverna de Platão, a maioria dos sujeitos do filme em questão é narrada como passiva reprodutora (a exceção do narrador, fotógrafo que escolhe outra vida, permeada pelo estudo e por trabalho de remuneração insuficiente). As crianças crescem espelhadas pela imagem-sombra de Zé Pequeno como figura de sucesso e sonham ser como seu herói.

A própria comunidade, no filme, é mostrada como um ambiente isolado e de difícil acesso, excluído do resto do Rio de Janeiro. A alienação dos sujeitos de Cidade de Deus se pauta no “fetiche da mercadoria” (MARX, 1964) por armas e no controle do tráfico de drogas, que simbolizam, para essa população, riqueza (ostentada por correntes, dentes e demais ornamentos de ouro) e conquista afetivo-amorosa (as armas representam segurança e virilidade).

Para suprir esse desejo, os sujeitos galgam espaços hierárquicos de poder (via violência – quanto mais violento e mais cruel, maiores as chances de dominar o espaço social narrado, a ponto de existir uma divisão e uma guerra por disputa de território entre grupos da mesma e entre comunidades) no crime organizado. A cegueira pela busca de status leva à ausência de questionamento acerca da estruturação sistêmica desigual e da vida que levam.

Buscapé, o narrador, um jovem negro e periférico da comunidade, contudo, resolve seguir outro caminho, libertando-se das correntes que aprisionam os sujeitos de sua “caverna”. Ele luta contra o sistema e as estatísticas ao não entrar para a vida do crime e ao apostar e enxergar novas possibilidades, via educação e profissionalização do que mais gosta de fazer: tirar fotografias. Nesse sentido, Buscapé se assemelha ao homem que conseguiu se soltar das correntes em busca do saber e a luz solar é semiotizada pelas possibilidades que ele encontra, com muita luta, difícil, sendo, inclusive, descreditado por seus iguais, após se deslocar da comunidade e enxergar o mundo sob outra ótica.

A obra de mesmo nome do filme, de Santo Agostinho, De Civitate Dei (426 d.C), trata de uma narrativa comum de separação entre mundos real e espiritual, inspirado no próprio Mito da Caverna, de Platão. Ao dialogar os textos filosóficos e fílmico, enxergamos a dualidade entre sujeitos e mundos por mais uma perspectiva: o contraste entre realidade e espiritualidade, de modo a pensarmos, pelo escopo bakhtiniano, na relação concretude e abstração: o que se pensa sobre a possibilidade de real utópico e como a realidade sistêmica se apresenta e até, de certa forma, se impõe. Mas este é um outro tópico, para uma outra reflexão.

O documentário Alphaville também retrata um locus fechado, ainda que com outra infraestrutura, violenta em um outro sentido e tão alienadora quanto a caverna platônica. O documentário, diferente do filme, aborda questões sobre separatismo e divisão de classes. Alphaville é um condomínio luxuoso, a princípio, construído apenas na cidade de São Paulo (hoje, já existem diversos condomínios de mesmo nome, com a mesma proposta, em várias cidades do Brasil, sempre espelhados no condomínio paulistano que, por sua vez, reproduz a concepção separatista de vida de condomínios de luxo de outros países, como os Estados Unidos), longe do centro da cidade, afastado e composto como uma “cidade” para que os moradores possam viver ali praticamente sem precisar sair (a pretexto de comodidade e praticidade, mas como forma de separatismo social eugenista, marcado pela superioridade de classe).

O que separa o condomínio de luxo do que entendem como “periferia” é um muro, como em Berlim de outrora ou em outros condomínios espalhados pelo Brasil. A diferença é a infraestrutura das casas, a localização e o preço do Alphaville. Mas, o modus vivendi e o modus operandi são os mesmos: o viver preso na caverna, por escolha, por pretexto de segurança, afastado em uma espécie de “mundo paralelo”, com moradores alienados em uma realidade utópica, cuja existência de sujeitos diferentes deles (tanto pela compleição física quanto pela vida que levam, os papéis sociais que desempenham etc) os causa repulsa, mesmo sem conhecerem esses sujeitos e suas realidades. O condomínio é inteiramente blindado e os depoimentos dos moradores se baseiam em ideais preconceituosos e estereotipados a respeito do mundo externo ao Alphaville e das pessoas, principalmente, acerca daquelas que vivem na periferia, vistas por eles como sujas, perigosas, violentas e sem educação.

Os moradores do Alphaville, tanto quanto os da Cidade de Deus, ainda que configurados de modos diferentes, estão presos a uma realidade própria. Os dois grupos se caracterizam como prisioneiros de suas cavernas. No caso do condomínio, diferente da comunidade pautada pela violência armada e do tráfico, os sujeitos são obcecados pela busca exacerbada de mecanismos (em nome) de “proteção” contra aqueles que vivem do lado de fora (excluídos) do mundo “idealizado” e que, contraditoriamente, os aprisiona em sua caverna-Alphaville.

As correntes que amarram os moradores de Alphaville se configuram, ideologicamente, pela discriminação separatista preconceituosa eugenista, pautada em superioridade e inferioridade entre os sujeitos e grupos. Afinal, a marginalização da população periférica é oriunda de um modelo implantado historicamente, que nomeou e, consequentemente, caracterizou a figura do pobre como “sujo”, “favelado”, “bandido”, entre outros lexemas desse campo semântico que revelam uma ideologia discriminatória e que leva à ideia de inferioridade e superioridade entre sujeitos, grupos e classes sociais, políticos, econômicos e culturais.

O documentário nos permite observar uma lacuna que, na obra fílmica, não é profundamente abordada: a relação entre “o lado de dentro do muro” e “o lado de fora”, o lado do opressor colocando-se como “vítima” do lado oprimido, narrado como perigoso. Uma inversão da ordem sistêmica é flagrada nos depoimentos dos moradores, coletados e exibidos no documentário, pois caracterizado o condomínio como locus centrípeto representante daqueles que estão no poder e, portanto, aqueles que possuem as condições de produção e sustentam a ordem sistêmica econômico-social da divisão de trabalho, de classes e, consequentemente, a desigualdade entre sujeitos, grupos e classes, aqueles que se encontram destituídos de poder, donos apenas de sua mão-de-obra, discriminados e excluídos, sãos caracterizados como poderosos violentos e criminosos.

A estratégia retórico-argumentativa da inversão é recorrente historicamente à classe dominante, que se vitimiza pelo mal que ela mesma produz. Tanto que muitos dos depoimentos existentes no documentário se pautam em discursos racistas, voltados à “sujeira” dos pobres (e) negros “violentos”, “habitantes de vias públicas” e “mau cheirosos” (assim caracterizados nos depoimentos do documentário). Como sabemos, por questões históricas, a população preta ocupa, ainda nos dias de hoje, a maior parte das comunidades, por falta de oportunidades outras.

As discriminações aparecem, nos depoimentos, pelo rótulo pregado nos sujeitos-outros pela cor de pele e classe social (posição na sociedade). Tudo isso para sustentar a eugenia de que há, do ponto de vista daqueles sujeitos, a convicção de verdade, calcada na crença (valorativa) de que existe um sujeito, um grupo, uma raça e uma classe superior a outros.

Ao pensarmos nos dois enunciados aqui analisados como ilustrações dicotômicas significativas das correntes que aprisionam os sujeitos e estruturam o sistema econômico-social, a alegoria da caverna, de Platão, mostra-se não apenas eficaz para pensarmos a contemporaneidade de nossa República democrática, como também atemporal e ainda pertinente para refletirmos se é essa a estrutura social que, de fato, almejamos e como (e se) é possível nos safarmos dessa teia, dessas amarras, tão invisíveis quanto eficazes.

Ainda que as representações sígnicas “caverna”, “corrente”, “luz do sol”, “sombra” e “parede” sejam refletidas e refratadas de diferentes formas, a finalidade é semelhante: refletir acerca da cegueira (mediocridade) de uma sociedade e as diversas maneiras de alienação. Afinal, como afirma Volóchinov (2017, p. 93), “O signo não é somente uma parte de uma realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, ou percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante.”. A entrada da linguagem como modo de reflexão dos mecanismos de acorrentamento humano também é a entrada que nos faz refletir sobre essas estratégias e, ao fazermos isso, tomarmos consciência do processo para nos libertarmos de nossas próprias correntes.

Referências

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Edição Fundação Calouste Gulbenkian. 1996

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAMPOS, Luiza. “ALPHAVILLE DO LADO DE DENTRO DO MURO.” Www.youtube.com, 2009, youtu.be/RrUW_-5lZvA. Acesso em: 5 Junho 2023

CIDADE de Deus. Direção de Fernando Meirelles. Rio de Janeiro: Globo Filmes, 2002. Disponível em: https://youtu.be/TlhRRbfrUN4?feature=shared. Acesso em: 5 Junho 2023

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo Cultrix, 2008.

MARX, Karl. O trabalho alienado. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964.

PLATÃO. O Mito Da Caverna. A República. 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291

SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 2000.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

[1] Graduanda do curso de Letras – Licenciatura, da Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Assis, da Universidade Estadual Paulista – Unesp.

[2] Professora do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL), da Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Assis; do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – Câmpus de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista – Unesp; do Programa de Mestrado Profissional em Letras – ProfLetras; e Visiting Scholar do Dipartimento di Studi Umanistici, da Università del Salento (UniSalento), Lecce – Itália.

0 visualização0 comentário
bottom of page