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Um convite à carnavalização

Por Luciane de Paula

“Vamos para avenida, desfilar a vida, carnavalizar” (Tribalistas. “Carnavália”)

Este convite tem em mente a carnavalização como ato, tal qual reflete Bakhtin, em sua obra “Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais” (a minha versão é de 1987). Afirma o filósofo russo que, naquele momento histórico (Idade Média mais especificamente), as praças, ruas e demais espaços públicos, com suas festas populares (o carnaval, os espetáculos ao ar livre e as feiras), eram usados e tinham uma função de abertura e de desestabilização do poder oficial vigente (os sistemas ideológicos estruturados) porque nivelavam as pessoas e, com isso, apagavam as distinções hierárquicas, suspendiam certas normas estatais e religiosas, e promoviam a experiência de liberdade e de igualdade entre os sujeitos. Hoje não é assim? Não deveria ser? Talvez, seja o caso de tomarmos mais vezes com nossas vozes em atos esse espaço e restaurar sua força. Continuamos utilizando-os dessa maneira e com esse fim em alguns momentos: quando tomamos ruas e avenidas, no Brasil, em especial, muitas vezes, em grandes festas (a comemoração do futebol, as festas populares – não apenas o carnaval, mas também as festas religiosas, as regionais, as folclóricas, o final de uma novela nos bares, o réveillon, as viradas culturais, as danças de rua, o grafite, as pichações transgressoras etc), mas também em grandes manifestações “sérias” (como as passeatas, os pedágios, os piquetes, entre outras), o espaço público e coletivo continua com ou reivindica a sua função “carnavalizadora”. Falta resgatar que tais atos são políticos, responsáveis e responsivos. Esse locus é também topus da exclusão e da marginalidade (mendicância, prostituição, tráfico de drogas ilícitas, bandidagem, “vadiagem”, “malandragem”). Lugar da in-visibilidade. De todos e ninguém. “Terra de Marlboro”, como dizem. As festividades expressivas, como o carnaval (o mais resistente ritual pagão incorporado pelo calendário e “aceito” – sim, entre aspas – pela Igreja contra a sua vontade, ainda que de outra maneira, adaptado e punitivo – 4 dias de liberdade total, penitenciados com 10 vezes mais severidade pela prática do “pecado” da carne – trata-se dos 40 dias que se seguem. Sim, a quaresma, em que não se deve “comer carne”, teoricamente de nenhuma espécie, em nome da ressurreição de Cristo, que morreu. Morte do alto no ato baixo carnavalizado – extremamente interessante…via banquete, literal e figurado), naquele momento, em que ainda não era festa comercial em prol da lucratividade sistêmica (como hoje é institucionalizado), produzia a possibilidade de circulação de determinados discursos e formas de comunicação que, fora desse contexto, eram proibidas e censuradas. Assim, a linguagem carnavalesca, “autorizada” sob determinadas circunstâncias, era um ato político, pois estremecia, desestabilizava, parodiava, ironizava as ideologias oficiais com suas inversões do “alto” ao “baixo estrato corpóreo” (vísceras, genitália, umbigo…“Nádegas a Declarar”). A linguagem carnavalesca, segundo Bakhtin, caracterizava-se “pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, pelas permutações constantes do alto e do baixo (‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões” (1987, p. 10). Nesse sentido, a linguagem do carnaval instaura a possibilidade de ressignificação e re-surgimento de formas de vida com suas respectivas visões de mundo. Este convite à carnavalização do mundo, feito aqui por meio da citação de um verso da canção “Carnavália”, dos Tribalistas, de certa forma demonstra o intuito “Circular” do GED quanto às práticas cotidianas de se pensar e fazer pesquisa na e fora da academia. O conhecimento deve se trans-formar em sabedoria. E, para isso, não pode ficar confinado nos intramuros universitários – que sequer deveriam existir, uma vez que o vocábulo “Universidade” vem do latim (“universia”), que significa “comunidade”, “universo”, “universal”, “comum”. Precisa, portanto, pular tais muros, romper barreiras, derrubar paredes e tomar as ruas, a rede, o universo (para ser fiel ao léxico uni-versi-tário), constituído pela linguagem, em ato concreto. Vamos, então, carnavalizar com “Carnavália”, “Navalha na carne”. O humor de toda espécie (o deboche, a ironia, fina e ácida, o pastelão, a “torta na cara”) dá uma banana para a hipocrisia e segue, sem abalo às manobras e intrigas porque ri diante do inimigo, “ri na cara do perigo” e isso, sim, causa abalos sísmicos e altera profunda-mente o sistema. Por menores que pareçam, à primeira vista (e jamais assumidos), tais atos, aparentemente inconsequentes e “sem causa”, fazem história porque responsivos, dialógicos. A rebeldia não tem de ter causa aparente. Ela existe e caminha contra a hegemonia confortável e cômoda, como “Ode ao burguês”. Deixemos de homenagear e passemos a carnavalizar a vida em atu-ação filosófico-concreta. Carnavalizar: uma prática de resistência ao poder hierárquico e às ideologias oficiais de forma coletiva, ambivalente e bivocal, por meio do riso (carnavalesco/carnavalizado). Nas palavras de Bakhtin:

A praça pública no fim da Idade Média e no Renascimento formava um mundo único e coeso onde todas as “tomadas de palavra” (desde as interpelações em altos brados até os espetáculos organizados) possuíam alguma coisa em comum, pois estavam impregnados do mesmo ambiente de liberdade, franqueza e familiaridade (1987, p. 132).

Não seria a rede, famosa “world, wide, web” (o mundo navegando numa onda amarrada numa teia infinita), esse espaço público coeso de outrora ao qual se refere Bakhtin, junto com os locais físicos ainda existentes, mas em grande parte do tempo, redimensionados? Por que será que a “conexão” atrai tanto o homem? Por ser ele sujeito refletido e refratado pela e na linguagem, dialógico? Melhor “Circular” com sabor e pensar com escuta ativa esse saber de “homo-sapiens-demens” (Morin). Des-fiar a vida com as Moiras da linguagem. Carnavalizar. Vamos? 😉

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