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Reverberações de uma não-adolescente: o machismo latente no século XXI

Luciane de Paula

Hoje, trago à tona uma reflexão tempo-espacialmente descontextualizada, mas nem tanto. Descrevo uma vivência do “dia da mulher” deste ano, mas que se repete e faz sentido em qualquer dia, por isso, ainda em ebulição em mim. Potencializou-se naquela data. Tal vivência me foi tão expressiva que ainda ecoa e reverbera, prenhe de respostas. Por isso, a vontade de externalizá-la e compartilhá-la com todos. O tema, é claro, é o machismo nosso de cada dia, exacerbado no dia que deveria fazer com que reflexões e tomadas de consciência se manifestassem em atos e constituíssem histórias diferentes, mas que, como não somos ingênuos, sabemos, não é o que ocorre. Espero que ao menos ao trazer o tema à tona, possamos pensar e conversar sobre ele.

Há muito tempo eu não saia sozinha. No dia internacional da mulher deste ano, depois de algumas mensagens e algumas flores, alguns sustos e algumas brigas, a mulher aqui resolveu jantar fora num restaurante italiano que eu adoro. Assim, do nada, sem reservas, como sou. Iniciou-se uma jornada surpreendente ao que deveria ser apenas um jantar agradável antes de uma cirurgia que se aproximava.

Ao chegar ao restaurante, para a minha surpresa (mas nem tanto), senti-me um “E.T.”. Isso mesmo. Fui alvo da atenção de todos. A simples presença de uma mulher sozinha num restaurante num sábado à noite de “comemoração” à mulher causou estranhamento. Nos outros. Em mim, o estranhamento se deu pelo estranhamento expresso e gerado sem sentido. A maioria presente era composta por casais aparentemente apaixonados e algumas poucas famílias que ali se reuniam. Mais parecia um dia dos namorados (sem copa do mundo) do que dia da mulher.

Sem nem pensar numa possibilidade remota do que vivenciei, causei constrangimentos e agitações. A princípio, isso se materializou nos olhares, burburinhos e nos atos dos garçons, que não sabiam como lidar com a situação de me receber, acomodar em uma mesa e perguntar qual o meu pedido. Sem alvoroço, perguntei se havia uma mesa disponível para mim. “Só uma pessoa?”, foi a pergunta. Sim e em mim, como em Fernando Pessoa, já habitava uma multidão!

Um dos garçons se apressou em me oferecer uma rosa e me parabenizar pelo “seu (meu) dia”. Outro, mais “safo”, cuidou de me direcionar a uma sala “reservada”, provavelmente para que a “lunática” aqui não mais incomodasse a tradição familiar e não causasse indigestões. Fiquei, já, desde o primeiro contato, inevitavelmente, perguntando-me o que significava esse tal dia e o que os estudos bakhtinianos tinham a ver com aquilo tudo. Só vinha à minha mente as palavras-chaves ética, responsabilidade, não-álibi do sujeito, constituição do eu-outro…e, especificamente com relação a esta, eu, definitivamente, não era composta pela imagem daqueles outros que não-queriam, mas, sim, me compunham. Outros estranhos. Melhor, eu estranha a eles. Exotópica, deslocada. Eu, mulher sozinha, solteira, hetero e emocionalmente bem resolvida com alguns de meus tantos fantasmas, não era o eu-para-o-outro que ali se encontrava. Também não queria que eles fossem os outros-para-mim, mas, nisso, não temos escolha. Apenas fiquei pensando, em frações de segundos, como a revolução feminista ainda faz sentido e o quanto as mulheres ainda precisam caminhar.

Sentei-me na tal sala “reservada” e disse que não conhecia aquele ambiente, já que conheço e aprecio a casa. A resposta imediata que recebi foi: “Ah, quase não usamos esse ambiente, mas acho que você vai se sentir mais à vontade nele”. Eu esbocei um sorriso, pensei em responder, mas resolvi pedir o menu e escolher o prato. Pensassem o que quisessem, a sala era bonita e, naquele momento, exclusiva, como era conveniente ao senso comum. Este, sim, incomodado comigo. Eu, na minha, feliz e louca para saborear a gôndola de espinafre com queijo brie que tanto gosto, sem querer, mas adorando, estava demonstrando uma grande lição a todos os bossa-novas da vida, carnavalizando com minha presença feminina, independente e feliz.

Fui pegar os antepastos e quando estava me deliciando com a entrada, toda à vontade entre queijos, pães e sardelas, o senhor que toca acordeom não se conteve: adentrou a sala, tocou uma canção de Vinícius para mim e, inconformado, veio até a mesa e me perguntou: “Você está sozinha hoje? Por que? Coitadinha! Quer que eu toque alguma música específica pra você?”. Eu ri muito. Olhei para ele e disse que todos somos sozinhos e acompanhados dos outros que nos cercam, como dele, naquele momento. Mesmo que não tivesse vindo falar comigo e emitir sua opinião e sentimento de dó. Disse que precisamos aprender o que é nosso e o que é do outro, de fora e que, acima de tudo, somos quem somos, sem olhares, julgamentos de desconhecidos e, mesmo com eles, podemos nos auto afirmar. Disse que ele estava equivocado ao pensar que eu estava triste ou que havia levado um fora e, por isso, estava sozinha. Não era o caso. Eu gosto da minha independência e preciso de momentos comigo mesma, meus eus-outros de mim. Além disso, só mulheres muito mulheres têm coragem de enfrentar a hipocrisia social e anunciar ao mundo que são quem (e não o que) são sem precisar de um homem ou aparentes companhias como muletas para existirem. Nossas existências são vida e morte processuais e ininterruptas. Conjuntas e isoladas. Não há como fugir. E penso ser preciso enfrentar de peito aberto essa torrente de vida e morte que nos toma para se resolver, tentando trazer à consciência os atos da vida. Arrematei, docemente, dizendo que ele precisava rever os seus conceitos, bem como qual a significação de 08 de março. Como ele estava muito sem graça, eu disse que queria uma música, sim. Italiana. Comemorativa. A mim. Às mulheres. Às feministas. Ele tocou “Volare” e saiu. Ninguém mais entrou na sala, a não ser para servir-me o prato pedido (que, por sinal, estava dos deuses), o cappuccino e a conta (felizes porque o estorvo aqui, finalmente, iria sair do recinto e a ordem “natural” das coisas iria ser reestabelecida).

Fiquei cá com meus botões pensando: quantos daqueles casais não estavam ali de corpo presente, mas completamente solitários (com seus outros internos), distantes emocional e mentalmente? Por que uma mulher sozinha não pode estar bem e incomoda tanto? Se fosse um homem, será que as reações seriam as mesmas? Com certeza, não. Quando é que vamos conseguir avançar e quebrar com totens e tabus machistas tão arraigados? Que atos serão ainda necessários para sermos re-conhecidos como seres humanos, como iguais com suas peculiaridades e semelhanças? Em pleno século XXI, a sensação que tive é que muitos sutiãs ainda precisam ser queimados! E há quem, até hoje, não entenda (ou não queira compreender) a importância do papel de Simone de Beauvoir, Chiquinha Gonzaga, entre outras tantas que nos abriram caminhos até para que, agora, eu, aqui, possa trazer essa discussão à baila!

Nada contra casais ou famílias. Nada contra celebrarmos o dia 8 de março, tendo-o como marco de uma história muito mal contada: a história das mulheres, escondida na vida privada, na cozinha e na alcova, junto a escravos negros, a homossexuais e tantos outros excluídos, chamados de marginais, invisíveis, como tentaram me fazer ficar na sala “reservada” de um restaurante na referida data, em pleno século XXI! Tudo contra o preconceito machista de que “é impossível ser feliz sozinho” (não foi à toa que o sanfoneiro veio tocar Vinícius como introdução a uma conversa com tom de piedade. Ele, com certeza, ainda se sentiu gentil e lisonjeiro por se dirigir a mim. Vejamos como são os pontos de vista…). Seja como for, em casal, em família ou sozinha, o que importa é o respeito ainda inexistente e hipócrita, que devemos exigir pra além dos cumprimentos e posts nas redes sociais!

Até parece que o relato reflexivo acima se referiu a um evento cotidiano de preconceito atemporal naturalizado (nada natural). A minha indignação não é, como canta Skank, “uma mosca sem asas” que “não ultrapassa as janelas de nossas casas”. Temos de falar sobre isso. Temos de gritar e não nos “acostumar” com esse tipo de re-ação. A sensação continuará sendo essa se nada fizermos a respeito. E o machismo impregnado em todos só se fortalece se continuarmos agindo como se os fatos banais fossem nada. Incorporado em nós. Mudar não depende apenas de mim, mas também dos outros todos que constituem a sociedade, os sujeitos (interna e externamente), sejam eles de que gênero for, na relação real, vida vivida a cada dia, na pequena que se transforma em grande temporalidade! Em tempo de redes sociais: “#ficaadica”!

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