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OS SIGNOS IDEOLÓGICOS QUE VALORAM UM SUJEITO COMO “BOM” E “RUIM” NA SAGA HARRY POTTER

Giovana Cristina de Moura

O signo ideológico para o Círculo de Bakhtin não é algo pronto. Ele se constitui na relação entre sujeitos de linguagem, no confronto, que se dá na interação. O indivíduo e as vozes sociais que dissemina são constituídos no e pelo social (VOLÓCHINOV, 2017). Os signos adentram na consciência individual dos sujeitos, porém, é na interação que esses signos são criados e ressignificados. Uma vez na consciência eles não permanecem ali, estáticos. São devolvidos ao solo social a cada dia, pois o signo é produto da interação (VOLÓCHINOV, 2019). Nesse sentido, os sujeitos-bruxos considerados como “bons” e “ruins” na saga Harry Potter são constituídos na relação desses com os seus outros. É o governo bruxo – Ministério da Magia –, a partir dos seus representantes, que consolida o “bom” (os bruxos sangue puro) e o “ruim” (mestiços, nascidos-trouxa, criaturas a seres).

A própria configuração da Escola, Hogwarts, corrobora para com a divisão dos bruxos em Casas. Cada Casa constitui-se a partir dos signos atribuídos a elas. A Grifinória e a Sonserina, duas das quatro Casas, rivalizam, a partir dos seus bruxos representantes, ao longo de toda a narrativa. Os signos “coragem” e “ambição” (no sentido negativo) também inserem certos estereótipos aos bruxos representantes. A Casa Sonserina é associada à pureza do sangue, à magia das trevas; a Grifinória, por sua vez, é caracterizada como a Casa na qual habitam os heróis (para um certo grupo de bruxos, aqueles não coniventes com o órgão que regula o mundo bruxo, o Ministério da Magia). Entretanto, para a superestrutura dominante, o Ministério da Magia, o “bom” é o oposto: aqueles que discriminam aqueles que não são “puros o suficiente” são recompensados e ocupam as melhores posições sociais dentro e fora deste governo.

Na interação, os sujeitos refletem e refratam vozes sociais coniventes e resistentes à hegemonia (da pureza do sangue, no caso da obra). Os interesses sociais são orientados de formas distintas na comunicação discursiva. A partir da materialização de tais vozes em um enunciado estético podemos analisar quem é o bom e o ruim para grupos sociais com pontos de vista antagônicos, conflitantes (MEDVIÉDEV, 2012). Para aqueles que se opõem as estratégias de dominação do órgão bruxo, os “bons” são os sujeitos que se posicionam de forma contrária à esta política (higienista e exclusória, pois apenas os bruxos “sangue puro” ascendem socialmente e são beneficiados por este governo); aqueles que resistem na infraestrutura. É na luta entre classes que os signos “bom” e “ruim”, “puro” e “impuro” são constituídos. O principal embate entre essas vozes se dá entre bruxos que representam as duas Casas, Sonserina e Grifinória.

Os bruxos que compõem a alta hierarquia do Ministério da Magia orgulham-se de seu “sangue puro” e utilizam-se deste discurso para perseguir, condenar e punir aqueles que não se encaixam nesta hegemonia, o “ruim”. Os bruxos considerados como “ruins” são, majoritariamente, da Casa Grifinória. A rivalidade entre as duas Casas se dá por conta deste embate. Harry Potter e Voldemort, vilão da saga, é o principal exemplo desta luta entre classes, porém, o confronto se dá entre as duas Casas e, também, entre o Ministério da Magia e aqueles que se opõem a ele (bruxos que não compactuam com suas políticas, que são higienistas, persecutórias e beneficiadora a um grupo específico, à classe dominante, voltada aos sonserinos). No quinto livro da saga, intitulado de “Harry Potter e Ordem da Fênix”, o embate entre as forças centrípetas e centrífugas é ainda mais potencializado.

As forças centrípetas, homogeneizadoras, monopolizadoras, censuram àqueles que se opõem à hegemonia; as centrífugas, por sua vez, na infraestrutura, reagem a esta monopolização da palavra, lutam para que as suas demandas sejam atendidas na infraestrutura (BAKHTIN, 2014). O movimento centrípeto é mobilizado pela representante do Ministério da Magia, Dolores Umbridge. Em nome desse Estado, suprime direitos daqueles considerados como “ruins” e “inimigos do Estado” (aqueles que se posicionam, de forma mais direta ou velada, quanto à intervenção do governo na Escola, Hogwarts). O movimento centrífugo é semiotizado pelos bruxos que, na infraestrutura, dentro e fora da Escola, articulam-se de forma contrária àquela esperada pela superestrutura dominante. Buscam mobilizar os outros bruxos acerca dos perigos de um governo que beneficia apenas os considerados como “dignos” de proteção.

Qualquer produto ideológico não é apenas uma parte integrante da realidade natural e social. Não é apenas um reflexo, um corpo físico, um instrumento de produção ou produto de consumo (VOLÓCHINOV, 2017). É, também, refração. O enunciado estético reflete e refrata uma realidade que encontra-se fora dos seus limites. Embora Harry Potter seja uma obra literária relacionada ao contexto inglês, britânico, as estratégias discursivas colocadas em prática pelo Ministério da Magia são, com uma outra configuração, próximas àquelas empregadas pelo Brasil governado por Jair Bolsonaro: os “bons” são aqueles considerados como “puros”. Os “ruins” são aqueles que lutam para que as suas demandas sejam atendidas, para que a sua integridade, enquanto seres humanos, seja respeitada. Esses sujeitos são agredidos por uma política que os cala, que os trata como inimigos, porém, como o signo é reflexo e refração, não deixam de resistir à uma política que os coloca à margem da sociedade.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7ª. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.

MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012.

PAULA, L. DE; SIANI, A. C. Uma análise bakhtiniana da necropolítica brasileira em tempos de pandemia. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 475-503, 17 dez. 2020.

VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

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