Marcela Barchi Paglione[1]
Tratamos, nesse texto, de um assunto caro aos trabalhos contemporâneos que seguem a perspectiva do Círculo: a pertinência da teoria para tratar de linguagens não-verbais. Apesar de ter se dedicado quase exclusivamente às análises de obras verbais, tais como Dostoievski e Rabelais, seguimos uma perspectiva já anunciada por Haynes (1995) que se utiliza dos pensamentos do Círculo sobre a natureza da linguagem para outras materialidades, principalmente a visual[2].
A partir dessa abordagem, pretendemos discutir sobre a concepção bakhtiniana da figura do autor dada em seu processo dialógico diante da personagem, conforme foi discutido em Estética da criação verbal (2003) a fim de entendermos como esse mesmo processo se dá em uma abordagem da linguagem visual no retrato, a partir da construção de uma imagem de si e do outro em um exercício de posição exotópica.
O ato de criação estética
Bakhtin (2003) trata da questão da construção da personagem pelo autor na obra estética. Para ele, o autor responde à personagem, dá forma a seu todo. O autor é uma força englobante, arquitetonicamente estável, que dá forma e vida ao elemento criado.
É especificamente estética essa resposta ao todo da pessoa-personagem, e essa resposta reúne todas as definições e avaliações ético-cognitivas e lhes dá acabamento em um todo concreto-conceitual singular e único e também semântico. Essa resposta total à personagem tem um caráter criador, produtivo e de princípio. (p. 4)
O autor responde à personagem e no processo criador a constitui como sujeito. No processo de relação dialógica, o autor, como outro do eu-personagem, tem acesso ao seu todo. Ela está inserida em seu horizonte ideológico e, somente assim, pode receber finalização, acabamento estético pelo autor em um processo não-indiferente. De fora, o autor se aproxima da personagem, tenta colocar-se em seu lugar e lhe confere posições axiológicas, as quais devem organizar-se em um todo signiticativo.
Autor e a personagem entram em processo de responsividade reponsável, uma vez que o autor engloba o todo da personagem e deve responder a ela axiologicamente, responsavelmente como um outro sujeito. O autor tem a visão do todo, visão englobante e arquitetonicamente responsável. Ele a cria e, assim, torna-se autor. Somente na relação dialógica e de princípio criativo do ato estético as figuras do autor e da personagem podem se construir.
Apesar de tais concepções sobre o ato estético de construção da personagem terem sido propostas para pensar o romance, portanto, a linguagem verbal, também podemos estendê-la, conforme concebe Haynes (1995), para a visual, e até a verbo-voco-visual nas linguagens contemporâneas. Tais reflexões sobre a criação verbal, em realidade, se aplicam a uma reflexão sobre a natureza do ato estético. “He [Bakhtin] was concerned with how humans give form to their experience: how they perceive an object, text, or another person, and how they shape that perception into a synthesized whole, process by which we ‘author’ one another” (p. 4)[3]. Para Bakhtin, um autor é criado no ato estético, no qual ele dá forma à sua experiência, refrata a vida para a obra de arte, porém, tal ato só é possível graças à personagem.
Todo ato de criação estética deve levar em conta a consciência ativa presente no texto – concebido aqui em sentido amplo. Esse outro do texto-enunciado, depois de concebido e completado pelo autor, torna-se um sujeito autônomo, com posições avaliativas que não necessariamente são as mesmas do autor. Da mesma forma, o autor-pessoa, após o fim do ato estético, nada sabe sobre o processo criativo do autor-criador, que nasce e morre no processo dialógico ativo com a personagem no interior de uma obra.
O autor nasce no ato de criação estética, em diálogo com seus outros, mesmo que seja um autorretrato. Nesse sentido a criação da personagem acarreta responsivamente a criação do autor. De acordo com Haynes, tornar-se autor (to “author” oneself) é criar. O processo de autorização consiste em tornar-se autor no diálogo, pois o ato de criação não é monológico, mas dialógico, de forma que o autor sempre cria para outro e só pode criar ao separar-se do autor pessoa e dialogar em parte com o leitor e em parte com o terceiro, o herói.
Um ato estético só pode ser finalizado de fora, a partir de uma posição exotópica do autor em relação à personagem que lhe dá a possibilidade de ver seu todo e lhe dar acabamento, pois eu, do meu local único na existência, não me vejo no horizonte ideológico, logo, não posso me finalizar de dentro.
Em decorrência disso, o autorretrato se constitui como um exercício de visão exotópica de si. Nesse processo, o autor deve tornar-se exterior a si mesmo na medida do possível, deve tentar imaginar-se visto pelo outro, com outros olhos, fora de sua imagem de si, de seu espírito (dukh). O autor – seja escritor, pintor, escultor etc. – deve se desvincular de seu eu interno e, portanto, inacabado, para colocar-se em posição exotópica e ver sua imagem de fora. A figura do “eu-para-o-outro”, no entanto, é dada somente pelo outro e nunca será a mesma se vista de fora.
É necessário algum novo esforço para me imaginar a mim mesmo nitidamente en face, desligar-me por completo de minha autossensação interior; conseguido isto, somos afetados em nossa imagem externa por algum vazio original, por algo imaginário e um estado de solidão um tanto terrível desta imagem. A que isto se deve? Ao fato de que não temos para ela um enfoque volitivo-emocional à altura, capaz de vivificá-la e incluí-la axiologicamente na unidade exterior do mundo plástico-pictural. (BAKHTIN, 2003, p.28)
A dificuldade de um autorretrato – bem como de uma configuração escrita sobre si – se dá na tentativa de auto acabamento. O autor precisa “traduzir-se” da linguagem interna, de seu eu vivenciado de dentro, para a linguagem externa, expressiva, mas para tal, deve ter um ponto forte situado fora de si, para que possa responder-lhe axiologicamente. Sua imagem exterior, no entanto, é a imagem de uma personagem criada aos moldes do autor-criador. Bakhtin, no entanto, assume uma postura suspeita em relação à veridictoriedade dessa imagem, que lhe parece ter um “estado de solidão” ou um “vazio” decorrente da falta de uma posição volitivo-emocional da personagem.
A primeira tarefa do artista que trabalha o autorretrato consiste em depurar a expressão do rosto refletido, o que só é possível com o artista ocupando posição firme fora de si mesmo, encontrando um autor investido de autoridade e princípio, um autor-artista como tal, que vence o artista-homem. Aliás, parece que sempre é possível distinguir o autorretrato do retrato a partir de alguma característica um tanto ilusória do rosto, o qual parece não englobar o homem em sua totalidade, até o fim (…). (Idem, p.31).
Para Bakhtin (2003), o autorretrato tem em si uma característica ilusória decorrente da tentativa de afastar-se de si e de se autocontemplar. Ainda assim, a tentativa de acabamento de si nunca é a mesma da completude do outro exterior com o qual dialogamos, de forma que sempre haverá diferenças entre o retrato e o autorretrato de um sujeito. Ele comenta sobre o autorretrato de Rembrant ter em sua figura um vazio assustador. Similarmente, veremos agora como se dá essa prática em Van Gogh, autor de diversas pinturas de paisagens, retratos e autorretratos.
Van Gogh e a tentativa de visão exotópica de si
Van Gogh, célebre pintor holandês do século XIX, é conhecido mundialmente por suas pinturas de paisagens, principalmente The Starry Night (1889) e por seus girassóis. Ele também pintou diversos autorretratos entre os anos de 1886 a 1889 – mais de 30, segundo o site vangoghgallery.com.
Tal método, além de ser uma maneira de ganhar dinheiro, também é um exercício de “introspecção”, de olhar para si e ver-se com olhos de outrem e, de acordo com suas próprias palavras, é também uma tentativa de melhorar suas habilidades como pintor.
I purposely bought a mirror good enough to enable me to work from my image in default of a model, because if I can manage to paint the colouring of my own head, which is not to be done without some difficulty, I shall likewise be able to paint the heads of other good souls, men and women. (GOGH, V. s/d).[4]
Assim, vejamos a seguir alguns de seus autorretratos, agrupados abaixo. Organizamos alguns quadros para representar o compromisso estético de Van Gogh para com a imagem de si. Dentre os selecionados (aleatoriamente), os agrupamos em três grupos de acordo com as cores escolhidas para representar-se, para sua autorização, da mais clara e amarelada, passando por tons azulados e posteriormente mais escuros, com preto e marrom.
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Percebemos, nos quadros, uma preocupação em retratar-se basicamente em posição frontal, com mudanças horizontalmente, de maneira que vemos sempre com certa frequência ora o lado esquerdo ora o lado direito de seu rosto, o que nos faz pensar que uma faceta de si está em evidência, mas outra está escondida.
Seus quadros geralmente apresentam uma textura ao fundo, mais evidentes nos retratos amarelados acima na figura 1 e nos dois azulados claros da figura 2, de forma que sua pincelada carregada de tinta é reforçada. Desejo chamar a atenção aqui para a peculiaridade de cada retrato, únicos como cada enunciação e similares, por retratarem o mesmo sujeito. O mesmo?
Vemos nos retratos acima uma junção de novo e velho, a significação e o tema dado no acontecimento, o qual renova o enunciado. Há uma ilusão de que o rosto é sempre o mesmo, que o sujeito é sempre o mesmo, enquanto o que ocorre são reflexos e refrações da vida na arte com uma tentativa de acabamento (estético). Como o sujeito nunca é o mesmo – uma vez que só a morte finaliza a vida – e está em constante fazer-se no mundo ético, também seu acabamento estético é provisório. Assim, retratos e mesmo fotografias, as quais somente aparentam ser mais objetivas – pois também possuem acabamento –, são momentos da vida de um sujeito que materializa. Retratos captam feixes pré-selecionados do sujeito em tela a partir de um projeto de dizer autoral.
Cada retrato de Van Gogh capta um feixe de si em uma tentativa de dar-se acabamento, cada um munido de tons emotivo-volitivos do autor registrados textualmente no enunciado a partir de marcas conhecidas como características do pintor.
As cores utilizadas são vivas, gritam em tela pela junção lado a lado de matizes escuras e claras, principalmente as opostas azul e amarelo, quentes e frias, mas também preto e marrom, como nos retratos da figura 3. Juntamente com a oposição de cores, o efeito de turvação é proporcionado pelas pinceladas marcadas, pelo excesso de tinta aplicada diretamente do tubo, pelas cores puras sobre tela, justapostas. Ao contrário da limpeza e pureza dos traços realistas e românticos, Van Gogh provoca um efeito de turvação, de confusão dos olhos e da mente, visto que os as linhas se misturam e as cores, embora puras, confundem-se no conjunto. O efeito ocasionado é vermos de longe a ideia do todo, enquanto, de perto, vemos a tormenta. Van Gogh está sempre em conflito consigo mesmo. Sua alma plena de paixões lhe provoca um olhar melancólico sobre si e sobre o mundo, conflito presente em suas cores e pinceladas, no olhar de seu eu representado.
Seu estilo, porém, se combina com o estilo de sua época, de uma escola. Assim, vemos o olhar do pintor representado e representante (no caso dos autorretratos), a partir de sua ótica (pós)impressionista, contrária a contornos nítidos e à figuração. Importa-lhes a impressão visual, a nuance, o efeito causado pela fusão de cores e formas. A técnica de pinceladas a partir de cores puras também é herdada deste período:
As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário, devem ser puras e dissociadas nos quadros em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se óptica. (MARTINS; IMBROISI, s/d)
É a mistura de cores e pinceladas que causa o efeito, a ilusão de conjunto e de figuração nos traços. Mais especificamente, Van Gogh se encontraria entre os pós impressionistas, grupo que em parte recusava a estética impressionista em favor de uma expressividade intelectual e emocional dos efeitos visuais.
Impressionism recorded nature in terms of light and color. Post impressionists rejected these limitations and instead sought to be more expressive. They were not concerned with depicting the effects of light and other visual effects like those seen in the impressionism movement, they were less idyllic. They wanted to express their meaning beyond the surface appearance; they painted with emotion, intellect, and the eye. The post-impressionism painters stressed their personal view of the visual world and had a freely expressive use of color and form to describe emotions and movement. (VAN GOGH GALLERY, s/d) [5]
Como os enunciados são elos na cadeia discursiva (BAKHTIN, 2003), os autorretratos de Van Gogh se relacionam com outras pinturas suas, bem como com o estilo da época e de outros autores. Tal diálogo constitutivo do autor criador – assim como do sujeito do ser-evento – se manifesta na forma e no conteúdo e ora o aproxima ou afasta da considerada escola pós-impressionista.
Nessa configuração, compreendemos a construção dos autorretratos como únicos a partir de um tom emotivo-volitivo do eu se manifesta na profusão de cores e traços tortuosos característicos do estilo de Van Gogh. Os autorretratos são enunciados, o que os torna únicos como o sujeito representado a cada momento do fazer artístico, apesar da aparente repetição do objeto a ser representado, como uma personagem de si.
A dificuldade de se dar acabamento, além do local exterior é que a vida não pode ser acabada. A única coisa que delimita e dá acabamento estético ao evento da vida é a morte (HAYNES, 1995). Assim, vemos a dificuldade de dar acabamento a si em um autorretrato, de pôr fim à existência, dá-la um sentido. Não há finalização do sujeito, mas tentativas de acabamento de um eu sempre em construção, no caso por um eu que se coloca fora de si, em uma tentativa de ver-se pelos olhos de outro, diferente em cada ângulo representado, em cada cor proeminente, em cada pincelada do autor-criador.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. (russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
Gogh, V. Sem título. Disponível em: http://www.vangoghgallery.com/misc/selfportrait.html Acesso em: 21/11/2015.
HAYNES, D. Bakhtin and the visual arts. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
MARTINS, Simone R.; IMBROISI, Margaret H. Impressionismo. Disponível em: http://www.historiadaarte.com.br/linha/impressionismo.html Acesso em: 21/11/2015.
Post – impressionism. Disponível em: http://www.vangoghgallery.com/influences/post-impressionism.html. Acesso em: 21/11/2015.
WERNER, J. Van Gogh. Disponível em: http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/van_gogh.htm#ixzz3rwhG3Rtf Acesso em: 21/11/2015.
Imagens disponíveis em: http://www.vangoghgallery.com/. Acesso em: 21/11/2015.
[1] Aluna de mestrado do PPGLLP da Unesp, Câmpus de Araraquara. Atualmente desenvolve uma pesquisa em Análise Dialógica do Discurso sobre o gênero seriado e sua recepção social, sob a orientação de Luciane de Paula (PPLLP – Unesp FCLAR e Unesp FCLAS).
[2] Atualmente, conforme a pesquisa de Paula (2014), discutimos a questão da materialidade e pertinência teórica bakhtiniana para enunciados verbo-voco-visuais, como é caro ao GED e a pesquisadores do grupo, como as pesquisas de Paglione (2015), Santana (2015) e Novais (2015).
[3] “Ele [Bakhtin] estava preocupado em como os homens dão forma a sua experiência: como eles percebem um objeto, um texto ou outro homem, e como eles enformam tal percepção em um todo organizado, processo no qual nos tornamos autor” (Tradução livre).
[4] Eu trouxe, com um propósito, um espelho bom o suficiente para me permitir trabalhar com minha imagem, na falta de um modelo, porque se eu consigo chegar a pintar a coloração de minha própria cabeça, o que não será feito sem alguma dificuldade, eu devo conseguir pintar as cabeças de outras almas boas, homens e mulheres. (Tradução livre)
[5] O Impressionismo gravava a natureza em termos de luz e cor. O Pós-impressionismo rejeitou essas limitações e, ao contrário, procuraram ser mais expressivos. Eles não estavam preocupados em representar os efeitos da luz e outros efeitos visuais similares aos do movimento impressionista, eles eram menos idílicos. Eles queriam expressar sentidos por trás da superfície aparente; eles pintaram com emoção, com inteligência e com os olhos. Os pintores pós-impressionistas acentuaram sua visão pessoal do mundo e tiveram um uso expressivo das cores e formas para descrever emoções e movimento. (Tradução livre)
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