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Entre perder e dedicar: descompassos ideológicos da educação no Brasil

Karin Adriane Henschel Pobbe Ramos[1]

 No início de 2016, circulou, nas redes de televisão abertas de todo o Brasil, uma campanha publicitária, patrocinada pelo Ministério da Educação, cujo objetivo foi a divulgação das datas para as inscrições nos programas do Governo Federal SISU (Sistema de Seleção Unificada), PROUNI (Programa Universidade para Todos) e FIES (Fundo de Financiamento Estudantil). O público alvo eram os estudantes que haviam prestado o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2015.

Ao assistir ao anúncio pela primeira vez, chamou-me a atenção a reiteração do verbo escolhido por aqueles que fizeram o texto para designar a atitude dos estudantes ao se prepararem para fazer o exame: “perder”. Dizia o texto:


Você perdeu noites, [perdeu] finais de semana, perdeu até o namorado. E se você que fez o ENEM, perder o prazo de inscrição do SISU, do PROUNI e do FIES, além de perder a chance de definir o seu futuro, você vai perder noites de novo, vai perder finais de semana de novo, você vai perder até o namorado de novo. E perder o namorado de novo não dá, né? Não perca o prazo de inscrição e siga o caminho de oportunidades. Uma pátria educadora se faz com educação de qualidade.[2]


Curiosamente, uma semana depois, o texto foi modificado. O primeiro verbo “perdeu” foi substituído por “dedicou”, e o segundo, que ficava elíptico, foi substituído pela expressão “abriu mão”, ficando assim:

Você dedicou noites, abriu mão dos finais de semana, e até perdeu o namorado. E se você que fez o ENEM, perder o prazo de inscrição do SISU, do PROUNI e do FIES, além de perder a chance de definir o seu futuro, você vai perder noites de novo, vai perder finais de semana de novo, você vai perder até o namorado de novo. E perder o namorado de novo não dá, né? Não perca o prazo de inscrição e siga o caminho de oportunidades. Uma pátria educadora se faz com educação de qualidade.[3]


 A princípio, a veiculação da campanha causou polêmica nas redes sociais, pois, apesar de apresentar uma garota como protagonista assume uma postura androcêntrica, na qual a mulher, mesmo que esteja pleiteando uma vaga em universidade, ainda assim, precisa de um namorado. Vejam-se alguns dos comentários, extraídos da página do Youtube em que o anúncio foi divulgado pela primeira vez[4]:


(01)       Alguém ensina pro idiota que criou essa propaganda que namorado NÃO é prioridade, por favor? [BakooraLover]

(02)       então a gente precisa de um namorado que ainda não entende que o estudo é essencial pra gente e não pode ficar o tempo todo com ele??? QUE PORRA É ESSA MEC [Ana Ribeiro]

(03)       Só no Brasil mesmo pra acharem que “perder namoro, praia e diversão” é normal se quiser entrar numa faculdade, onde supostamente o estudante também nao terá “vida social”. Parabéns aos que passam madrugadas estudando e conseguem a aprovação, mas não deveria ser esse sacrificio todo. A adolescencia é uma periodo importante que precisa de lazer e tb de responsabilidades, mas perder 1 ou 2 anos de “vida” pra entrar na faculdade só mostra o quão injusto e falho é o sistema educacional desse país. [Kárim Ribeiro]


Há também os que, nas redes sociais, defenderam a campanha, ressaltando o “bom humor” e a “sensatez” do texto:


(04)       Caraca, como tem pessoas que não tem um mínimo de bom humor, puts estudamos o ano inteiro e estamos preparados para outro ano de estudo. Mas será que uma PROPAGANDA não pode fazer um clima mais ameno/divertido para os estudantes? [Mateus m]

(05)       Acho que o comercial deu protagonismo a menina, achei isso bacana. Não é um rapaz perdendo a namorada (até pq se fosse, estariam reclamando que a mulher está em um local periférico da propaganda). Achei a propaganda bacana, não vi em momento nenhum a garota dando prioridade ao namorado, apenas que ela não quer perder o namorado por ter que estudar de novo, o que me parece bem sensato. Se for algum mal-entendido meu, espero que alguém me responda para eu abrir os olhos. Obrigado! (Na boa, lição de moral eu tô dispensando. Estou aberto a conversa apenas). [Eliezer Borges]


Entretanto, apesar dessas polêmicas suscitadas pela propaganda, o objetivo desta reflexão é discutir os descompassos ideológicos dos enunciados, no que diz respeito ao modo como a educação é concebida no Brasil. Sei que não se pode generalizar uma questão como essa, mas existe um discurso enraizado historicamente na cultura brasileira que tende a atribuir um valor de perda à educação.

Miotello (2010), ao discutir o conceito de ideologia a partir do pensamento do Círculo Bakhtiniano, define-a como expressão de uma tomada de posição determinada. E continua:


Todo signo, além da dupla materialidade, no sentido físico-material e no sentido sócio histórico, ainda recebe um “ponto de vista”, pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando-a como verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o signo coincidir com o domínio do ideológico. Logo, todo signo é signo ideológico. O ponto de vista, o lugar valorativo e a situação são sempre determinados sócio historicamente. (MIOTELLO, 2010, p. 170)


Nesse sentido, se pensarmos do ponto de vista da enunciação temos que o Ministério da Educação contratou os serviços de uma agência de publicidade para divulgar, entre os que prestaram o ENEM, as datas de inscrição nos programas governamentais de acesso ao ensino superior no Brasil. Esse processo não é tão simples. É necessário que haja uma licitação e nem sempre os que são escolhidos são os que prestarão o melhor serviço. Podemos dizer que esses mecanismos, de certa forma, fazem parte do que Foucault (2010) denominou de governamentalidade, ou seja,


[…] táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não deve competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto, o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da governamentalidade. (FOUCAULT, 2010, p. 292)[5]


Sem dúvida, divulgar nas mais diferentes mídias os programas de acesso ao ensino superior, financiados pelo governo, é uma tática de governamentalidade, na medida em que tira o foco dos reais problemas que a educação no Brasil enfrenta, tais como, péssimas condições de trabalho, formação docente inadequada, tendo como pano de fundo, uma concepção de educação totalmente diversa do que esse processo deveria representar em uma sociedade que preza pela dignidade de seus cidadãos.

Entretanto, a palavra enunciada traz consigo vários significados que foram sendo construídos sócio historicamente, denunciando não apenas a posição do enunciador, mas todo o constructo exotópico no qual está inserido. Valho-me, aqui, do conceito de exotopia, apresentado por Amorim (2010, p. 104-105), como o ponto espaço-temporal a partir do qual o autor considera os acontecimentos que narra; um ponto em que vozes, nem sempre conscientes, ecoam, refratando mundos dos quais se derivam valores. No caso, a reiteração do verbo “perder”, mesmo na segunda versão, que tenta salvar o leite derramado, depois de todo o trabalho de produção do anúncio, substituindo o primeiro “perder” por “dedicar”, indica um ponto marcado por todo esse descaso que, ano após ano, governo após governo, assombra a educação brasileira.

De acordo com Bakhtin/Voloshinov:


[…] toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a indicação de um acordo ou de um desacordo com alguma coisa. Os contextos não estão simplesmente justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros: encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1988, p. 107)


Essa situação conflitante deflagra como olhares distintos se fusionam nos enunciados. Nesse caso, há, pelo menos, duas vozes em tensão. Uma que quer mostrar à população que o governo federal desenvolve programas os quais considera, segundo o texto da propaganda, como “caminhos de oportunidades” de “uma pátria educadora” que “se faz com educação de qualidade”. E outra voz em desacordo, que emerge no “perder”, que modaliza a vida dos jovens que se preparam para ingressar na universidade.

Como sabemos, no Brasil, não temos uma tradição histórica de valorização da educação como um processo institucionalizado de produção de saberes. O que se tem, desde os tempos da colonização, é uma tentativa de adequação às práticas sociais dos grupos dominantes. E, nesse contexto, para a grande massa da população brasileira, educação é sinônimo de perder. Perder a identidade oriunda de um saber desprestigiado socialmente, considerado inculto, popular, vulgar. Estudar passa, então a ocupar um lugar valorativo da perda. Isso não quer dizer que, muitas vezes, no processo de produção de conhecimento temos de fazer escolhas entre ir para uma balada ou ficar em casa estudando. Mas essa atitude não poderia ser considerada como perda, e sim como ganho.

O que aconteceu entre o perder e o dedicar? Certamente, alguém se deu conta desse equívoco e chamou a atenção dos produtores da campanha a respeito da escolha infeliz do signo ideológico “perder”, utilizado na propaganda. No entanto, diante do que se configura e que aqui brevemente tentei esboçar, a partir da análise de tal campanha, é preciso muito mais do que uma simples substituição de vocábulos, os quais, nesse contexto, acabam trazendo a mesma carga ideológica, para que a educação no Brasil ganhe um enfoque distinto. É necessário que haja uma conscientização crítica a respeito da história da educação no Brasil para que, em algum momento, passemos a considera-la como ganho e real possibilidade de transformação social.


REFERÊNCIAS


AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 95-114.

BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, [1929] 1988.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado.  Rio de Janeiro: Graal, 2010.

MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 167-176.

[1] Docente do curso de Letras da UNESP – Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis; e do Programa de Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS), Câmpus de Assis/Araraquara. karin.ramos1@gmail.com

[2] Assista à propaganda no link: https://www.youtube.com/watch?v=-QGmHmP7JEE

[3] Assista à propaganda no link: https://www.youtube.com/watch?v=7E8dMZwb6cc

[4] Os codinomes foram mantidos, por se tratar de uma publicação em rede social.

[5] Apesar das ressalvas que Foucault faz ao conceito de ideologia, consideramos pertinente citá-lo nesta reflexão.

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