Alexis Henrique Albuquerque Matarazzo
Para o Círculo de Bakhtin, ao pensarmos em gêneros discursivos, devemos saber que as diversas áreas de atividade humana estão ligadas ao uso da linguagem, bem como o efeito da língua se efetua em forma de enunciados, sejam orais sejam escritos (BAKHTIN, 2003). No que tange à definição de gêneros discursivos, sabe-se que o discurso é único e irrepetível, todavia, cada área da linguagem elabora gêneros relativamente estáveis, ou seja, a junção de enunciados que se transforma em gênero discursivo apresenta uma forma composicional, que pode ter traços mais ou menos típicos e outros em transformação, de modo que um gênero, constituído também por uma dada temática e traços estilísticos autorais, pode receber contribuições de novos enunciados e/ou partes de outros gêneros, arquitetando, assim, outros gêneros discursivos, sempre relativamente estáveis. Segundo Bakhtin (2003, p. 262):
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica em um determinado campo.
Quando abordamos o gênero História em Quadrinho (HQ), notamos uma semelhança estética com outros gêneros, como as tiras cômicas, tiras seriadas e, no caso do recorte deste texto, as charges e os cartuns. Certamente, essa pluralidade de gêneros causa certa confusão em relação às características discursivas de suas temáticas, formas, enfim, de seus respectivos gêneros.
Conhecer como um gênero se elabora esteticamente, segundo Ramos (2009), é primordial para uma leitura mais aprofundada e crítica. Além disso, no caso dos quadrinhos, uma contribuição para uma melhor elaboração de práticas pedagógicas na área da educação, visto que até meados dos 80 no Brasil, a utilização de quadrinhos na sala de aula era algo inaceitável. Todavia, com a crescente demanda do gênero, principalmente com a acessão da tradução de tiras para o português, os diversos gêneros ligados ao ramo dos quadrinhos passaram a integrar provas de vestibular, bem como a forte distribuição de obras nos materiais do ensino regular.
O jornal Folha de S. Paulo, em seu portal digital (www.folha.uol.com.br), na seção “Cultura”, encontramos um tópico denominado “Quadrinhos”. Nessa página, já intitulada “Folha Cartum”, verificamos uma discrepância no que tange à caracterização do gênero em questão (cartum). Abaixo, duas imagens da página:
Figura 1: Início da página “Folha Cartum”, no portal digital do jornal Folha de S. Paulo.
Figura 2: Continuação da página “Folha Cartum”
O que encontramos na referida página são tiras (como a do Garfield e do Hagar), cartuns (“Caderno de Esboços”, de Angeli) e charges (“Hora do Café”, de Laderly) em um espaço destinado a cartuns diários. Com base nessa divisão, delimitamos a reflexão aqui apresentada, voltada às características das charges e dos cartuns.
As charges são, segundo Ramos (2009), textos humorísticos que fazem referência a algum fato ou tema ligado ao noticiário ou a situações cotidianas. Isto é, recriam o fato de forma ficcional, estabelecendo um diálogo com a notícia ou os fatos. O cenário político é prato cheio para esse gênero e, por isso, costumam aparecer na seção de política ou de opiniões dos jornais. Um exemplo:
Figura 3: Charge publicada na seção “Opinião” do Jornal Folha de S. Paulo, no dia 19 de julho de 2014. Autor: João Montanaro
Na charge acima, observamos a transformação do assunto veiculado em noticiários (como a copa, a guerra na faixa de Gaza e crise na Ucrânia) serem transformados numa narrativa humorística crítica. Essa transformação ocorre quando um diálogo entre pombas brancas, uma segurando um jornal com as manchetes sobre os assuntos e outra retratada como a pomba da paz, por sua caracterização com o ramo de oliveira, conversam e uma delas fala à outra sobre o desvio da atenção do mundo – dos problemas reais, ocorridos independente de qualquer competição esportiva para a Copa do mundo, recém-finalizada (precisamos, para entender o gênero charge, sempre considerar o contexto de sua produção, já que ela cola-se ao momento histórico retratado com ironia e acidez. O efeito de sentindo obtido por meio do balão de fala “Tá vendo o que acontece quando você para pra ver a copa???” dá acabamento ao hibridismo desse gênero sincrético.
Quando falamos de cartum, estamos falando de uma narrativa, geralmente, construída em um único quadro e que não possui referência a um assunto noticiado específico ou a alguma situação datada. Essa é a principal diferença entre charge e cartum. Para melhor visualização, segue um cartum produzido por Quino:
Figura 4: Cartum com sátira do contato humano, retirado do site http://lumejardim.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html
Não compete ao cartum, como vemos pelo exemplo acima, retratar assuntos políticos ou jornalísticos, datados ou modismos, mas sim assuntos sociais amplos, típicos de um tempo (no caso, o uso do celular na contemporaneidade e a crise das relações humanas, sempre, hoje em dia, intermediadas pelas tecnologias que, ao mesmo tempo que as aproximam, também as distanciam).
Do ponto de vista bakhtiniano, o enunciado é sempre marcado por ideologias e inserido em um contexto social, entoado por sujeitos que semiotizam vozes sociais. Por isso, numa abordagem discursiva, os temas, marcados linguisticamente, nunca são desvinculados de um “grande tempo”, que revela uma translinguística enunciativa. Isso é o que ocorre com o cartum.
Como dito anteriormente, os gêneros do discurso são relativamente estáveis, ou seja, possuem sua forma, mas podem ser mudados, dando forma a novos gêneros. Com vistas nisso, podemos pensar na construção arquitetônica da tira, pois, por meio da inserção de novos enunciados ao gênero cartum, houve o surgimento da tira, que nos oferece material para uma nova conversa, num outro post (uma vez que, para compreendermos a relação entre esses gêneros, precisamos realizar uma reflexão mais ampla, não pertinente à temática aqui proposta, especialmente, ao considerarmos o espaço que possuímos para a composição de um texto num blog).
Para finalizar esta breve reflexão aqui apenas iniciada, deixamos claro que o objetivo deste texto não se volta à elaboração de uma crítica aos veículos que entendem os gêneros discursivos advindos dos quadrinhos como sinônimos, mas explicitar a peculiaridade de cada um deles e pensar a riqueza temática e formal dos enunciados da charge e do cartum. Com isso, pretendemos instigar e introduzir novos estudos para estes materiais discursivos. Esperamos ter atingido alguns e continuar essa reflexão, de maneira mais aprofundada.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN. M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RAMOS. P. A Leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.
Figura disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/#20/7/2014. Acesso em 20 de julho de 2014
Figura 2: Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/#20/7/2014. Acesso em 20 de julho de 2014
Figura 3: MONTANARO. J. Disponível em http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/26755-charges-julho-2014#foto-420552. Acesso em 20 de julho de 2014.
Figura 4: QUINO. Disponível em http://lumejardim.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html. Acesso em 20 de julho de 2014.
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