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A razão humana

Éderson Luis da Silveira

A razão humana, num determinado domínio dos seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente suas possibilidades. (Kant)

Já se falou tanto em reticências, em olhares que se estendem ao infinito, em lugares incompletos, inalcançáveis, obscuros. Já se falou em complexidade, mencionaram-se solos plenos de estabilidade, lugares firmes para pisar, caminhar e se situar. Já se falou em planetas e em linguagem animal, já se falou e se desmitificou os rituais das abelhas e Benveniste a nos sussurrar do túmulo que não há língua(gem) sem homem que a utilize… Descobriu-se que nem tudo era estável no terreno da significação. Descobriu-se que nem sempre aquilo que digo é exatamente como eu vejo e que nossas visadas estão suscetíveis a posicionamentos. Depois disso, ou não necessariamente nesta ordem, Durkheim complicou mais ainda as evidências mencionando que o homem é um animal preso a uma teia de significados que ele mesmo teceu. E Darwin vem nos tirar a divindade e mostrar alguns ancestrais que não vieram de lendas e sopros divinos, tirou-nos do barro, não sem por isso ter sido penalizado pela loucura. Galileu e Copérnico tiraram-nos da órbita do universo. A psicanálise tirou-nos a primazia da razão. E as ciências cognitivas foram aos poucos estudando as maiores complexidades inerentes aos processos de significação. Processos, no plural… e assim as áreas foram alinhavando seus pontos de vista sobre a linguagem. Há até hoje quem acredite num modelo formal de comunicação em que uma pessoa diz algo que passa por um canal de comunicação e chega intacto tal qual foi mencionado. Também há quem veja nuances maiores e palavras por trás de palavras. Coisas ditas por trás do silêncio e até um deus de duas faces é acolhido como exemplo de cada verbo que traz seu oposto. Aqueles que leram parte do Gênesis, se não estiverem muito distraídos talvez percebam a importância da palavra, do signo, que cria mundos, que desconstrói, que destoa e imagina concretudes, tão abstratas quanto as visões daqueles que as imaginam. E então: quantas maçãs é preciso que eu tenha na minha frente para saber explicar o que é uma maçã? As concredutes podem beirar a abstração as significações podem ocorrer in absentia. E os valores que atribuímos às coisas: elas existem porque a elas fazemos referência ou fazemos referência porque elas existem (e lá vêm os gregos…). E então, entramos num terreno de perguntas e indecisões: como estudar o sentido (esta coisa sempre em movimento que nos escapa quando o tentamos engaiolar em certezas)? Qual o sentido que pode emergir de palavras ditas, ou desditas? E quanto à ironia (algo que se diz – na tentativa de – significar o oposto)? E quando houver intervalos que extrapolam as intenções do falante? As lacunas vão desregrando mundos inteiros, palavras que vão ampliando horizontes de significação e desestabilizando. Entramos no terreno das reticências. Quanto daquilo que escrevo é realmente meu? Existe algo que seja meu de fato? Conseguirei eu manter impregnadas àquilo que escrevo marcas de autoria suficientes que me tornem possível o reconhecimento dos leitores daquele que escreve? Percorrer caminhos de significação é descobrir limites, ampliar expectativas, relutar em perceber intervalos de significado e constituição de saberes além-dito, além sentido, além-evocado, além-interpretado…além-mar. E nesta multidão de hifenizações vou aos poucos me descobrindo tal qual identidade múltipla que pode vir a ser outra coisa a cada instante, tal qual fluidez que vai caracterizando aquilo que digo e sou. E manter o pé no chão… por tanto tempo foi o que se quis alcançar. Mas por baixo do solo se

ocultam tenras nuvens de algodão, por baixo das camadas das certezas, paira o desejo de nunca cessar de desejar. Desejemos, pois, responsivamente, indelevelmente, incontinuamente, e enquanto os prefixos forem modificando-se uns aos outros em relação a outros que não são aquilo que eles representam, restará o consolo de que há muito o que fazer. De todas as certezas que tive, restou-me esta que me segura, que me mantém e que me acalenta: a certeza de que os olhos são as janelas da alma, o caminho para encontrar o mundo, tal qual descreveu Da Vinci em algum de seus escritos, para que nos contentemos com nossa prisão humana do corpo e possamos desfrutar a beleza deste mundo que nos rodeia. Nossas certezas são tão ambíguas ou incompletas, inengaioláveis (existirá esta palavra – fiat lux – passou a existir no instante em que a digo) quanto o quadro “As meninas” de Velásquez ou como as sombrancelhas da “Monalisa”. No quadro, as sombrancelhas foram retiradas no século XVII por que um restaurador utilizou algum solvente impróprio, dissolvendo-as para sempre. Assim são as certezas, relegadas ao desaparecimento a cada instante…

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