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A QUESTÃO MUSICAL NO CÍRCULO B.M.V: OS ESTUDOS DE IVAN SOLLERTÍNSKI

José Antônio Rodrigues Luciano

Embora tenha tido grande recepção no campo dos estudos literários e, posteriormente, nos estudos culturais, a filosofia bakhtiniana não se ocupou apenas do signo verbal. O grupo de intelectuais russos conhecidos como Círculo de Bakhtin (ou, ainda, Círculo B.M.V, conforme Vauthier [2010]) tinha por objeto a linguagem (seja ela enquanto materialidade verbal, visual, sonora ou sincrética). Por exemplo, Bakhtin (2011) debruçou-se sobre a pintura, bem como chegou a desenvolver uma filosofia da música a partir de Schelling, que fora abandonado pensador russo, e a lecionar nessa disciplina no Conservatório em Vitebsk,. No período em que foi reitor da Universidade de Proletária de Vitebsk, função que também serviu como equivalente a prefeito da cidade, Medviédev participou da “Irmandade” do Teatro Itinerante, dirigido pelo ator e poeta P. P. Gaidebúrov, e tornou-se diretor de repertório e redator da revista Zapísski peredvijnógo teatra (Notas de um teatro itinerante). Além de linguista, Volóchinov (2019) também foi musicista e escreveu artigos sobre música, dentre eles, “O estilo do concerto”, de 1923, e “Problemas da Obra de Beethoven” em duas partes (1922) e (1923) – lembremos: seis anos antes de Bakhtin publicar o livro quase homônimo Problemas da Obra de Dostoiévski (1929).

Os apontamentos feitos acima bastar-nos-iam para ilustrar o quanto o foco deste grupo de pensadores estava na questão da linguagem e não somente na língua/literatura. Contudo, ao percorremos as obras do Círculo, podemos acrescentar, ainda, conceitos advindos de outras áreas e que nos remetem ao visual e ao sonoro, como é o caso de polifonia, homofonia, voz (social), entonação, acento, arquitetônica, imagem de autor, imagem externa, dramatização. Por fim, um terceiro pilar que sustenta nossa posição está na composição do grupo com formações heterogêneas, a saber, físico, biólogos, filósofo, poeta, escultor e músico, os quais se reuniam em torno de um objeto em comum: linguagem. Conforme dissemos em outros trabalhos (LUCIANO, 2021; PAULA & LUCIANO, 2020) a partir de Emerson (2003) e Volóchinov (2017), o texto verbal teve uma predominância, se assim podermos dizer, nos estudos dos autores por três principais fatores: I) devido à impossibilidade em se abordar o fenômeno amplo da linguagem, com suas particularidades e especificidades; II) o signo verbal acompanha todos os campos da vida, o que o torna mais sensível para as percepções da realidade social e; III) a literatura era a própria vida real no duro regime soviético. Contudo, isso não impediu que fossem desenvolvidos simultaneamente estudos sobre música, pintura.

A título de ilustração, neste texto, destacaremos brevemente alguns trabalhos de Ivan Sollertínski, membro do Círculo, musicólogo de prestígio na União Soviética, professor no Conservatório de Leningrado, Diretor Artístico da Filarmônica da mesma cidade e amigo íntimo de Dmitri Chostakóvich, a quem influenciou fortemente nas composições.

De acordo com Fairclough (2001), ao compararmos os escritos de Sollertínski com um dos mais iminentes teóricos da música da União Soviética, Boris Asafiev, podemos observar um estilo de caráter semiótico do que formal propriamente dito, o que explica um maior interesse do Ocidente na obra deste último do que do primeiro. O musicólogo do Círculo havia um olhar para a música com um viés filosófico e literário, de modo que nunca escreveu sobre harmonia, forma do ponto de vista técnico – esta é uma característica de Asafiev. Ainda segundo a pesquisadora britânica, Sollertínski “preferiu discutir música de uma perspectiva sociofilosófica, valendo-se da experiência em teatro clássico europeu, filosofia e literatura para o contexto histórico”1 (p. 367, tradução nossa). Nesse sentido, óperas como Don Giovanni e A Flauta Mágica são vista a partir das noções de plurilinguismo e plurivocidade, as quais foram definidas pelo Círculo, sobretudo em relação à linguagem literária. Com isso, notamos a convergência na maneira de se pensar a linguagem, muito cara ao pensamento bakhtiniano. 

Embora os textos de Sollertínski estejam publicados na Rússia, poucos estão disponíveis nas línguas Ocidentais. Em russo, encontramos a publicação do livro sobre Gustav Mahler (1932), duas coletâneas organizadas por Mikhail Semenovich Druskin, I. Sollertinsky: Kriticheskie stat’iy [Critical Articles] (1963) e I. Sollertinsky: Istoricheskie etyudï [Historical Studies] (1958). Nesta última, estão os escritos mais expressivos do musicólogo russo, como The Problem of Symphonism (1929), Shakespeare and the World Music (1939) e Historical Types of Symphonic Dramaturgy (1941). Além disso, há também duas biografias sob a curadoria de sua nora Liudmila Mikheeva, Pamyati I. I. Sollertinskogo: Vospominaniya, materiali, issledovaniya [In Memory of I. I. Sollertinsky: Reminiscences, Materials, Articles] (1978) e I. I. Sollertinsky: Zhizn’ i naslediya [I. I. Sollertinsky: Life and Works] (1988).

No Ocidente, o acesso aos trabalhos de Sollertínski é escasso. Destacamos, aqui, a obra de Eric Roseberry Style, Content, Thematic Process, and Ideology in the Symphonies, String Quartets, and Cello Concertos of Dmitri Shostakovich (1989), na qual se encontra a tradução para o inglês do texto “Historical Types of Symphonic Dramaturgy” e o sumário do livro sobre Mahler Musica. Do mesmo modo, em língua italiana, temos a coletânea de textos Musica e letteratura al tempo dell’​Unione Sovietica, organizada por Samuel Manzoni. Todavia, a maneira mais frequente de nos depararmos com a obra do musicólogo russo é por meio de fragmentos presente em pesquisas em música, principalmente na área da (nova) musicologia e nos trabalhos relacionadas à obra de Chostákovich, pois “quase qualquer pessoa interessada na música de Shostakovich sabe alguma coisa sobre Ivan Sollertinsky”2 (FAIRCLOUGH, 2001, p. 367), dada a proximidade de ambos e pelo compositor relatar recorrentemente a amizade com musicólogo em seu Testimony (1979)3. 

Na Itália, ainda, contamos as pesquisas de Cassoti que buscou refletir a ressonância musical no Círculo na relação Bakhtin, Sollertínski e Yudina – trateremos dela no próximo Ato. Em texto traduzido para o português, a pesquisadora italiana aborda o texto “Historical types of symphonic dramaturgy”, citado acima, no qual Sollertínski estuda diversos tipos de dramaturgia sinfônica e define um tipo particular de sinfonismo chamado “sinfonismo shakeasperizante”, que encontrará plena realização em Beethoven. Essa categoria se trata de uma representação objetiva e sintética da realidade e dos processos conflituosos que nela ocorrem ou, em outros termos, de um sinfonismo dramático. Nas palavras de Cassotti (2010, p. 154), baseando-se nos estudos de Cohen, dramático, pois,

uma vez que “o drama é processo, ação, em que há não somente uma, mas diversas consciências humanas que entram em embate umas com as outras” (…). Em suma, um sinfonismo do tipo shakeasperizante, de acordo, com Sollertínski, baseia-se “no princípio não monológico, mas dialógico”, de acordo com o princípio da “pluralidade de consciências”, da “pluralidade de ideias e vontades que opõe resistências”, na afirmação do princípio de “eu outrem” [io altrui].

Dessa forma, vemos que Sollertínski lança mão de conceitos como dialogismo, multiplicidade de vozes, carnavalização para analisar e descrever os fenômenos das obras não só de Mozart, mas de Beethoven e da música de maneira geral, compreendendo-a como um acontecimento social, uma linguagem por excelência.

Cassoti cita também as análises das óperas de Mozart, Don Giovanni e A Flauta Mágica, a partir das concepções elaboradas pelo Círculo. Nesta leitura das peças, Sollertínski aponta uma relação entre o trágico e o cômico juntos, a qual se liga diretamente à obra Cultura Popular, de Mikhail Bakhtin. Inclusive, este último afirma, neste texto, que o próprio Shakeaspeare – presente nas obras de Mozart – fez de forma significativa a coexistência e o reflexo mútuo do sério e do cômico, associando-se à noção de carnavalização. Segundo Cassoti (2010)

Na ópera lírica combina simultaneamente vários sistemas semióticos verbal, visual, gestual e musical. Nele coexistem mais canais de comunicação paralela, às vezes em harmonia e outras vezes em mútua interferência. A ópera, e em particular o “Singspiel”, com sua alternância particular de partes faladas e partes cantadas, pode ser definida como um gênero baseado no plurilinguismo, na plurivocidade, na pluridiscursividade, categorias definidas por Bakhtin em relação à linguagem literária (…). Em todo caso, é possível falar de plurilinguismo a propósito de A Flauta Mágica porque nela coexistem não somente uma pluralidade de expressões não só no plano estritamente estilístico mas também no ideológico (…). (p. 161, grifos nossos)

Assim, por meio da discussão feita pela pesquisadora italiana, evidencia-se a proposta de Sollertínski, mencionada no início, voltada para uma abordagem sociofilósofica da música ou, se preferirmos, a música como discurso. Acrescentamos a isso, também a compreensão da filosofia do Círculo B.M.V orientada para a linguagem em sua manifestação ampla, de maneira que as categoriais conceituais formulada pelos intelectuais russos são produtivas não apenas aos fenômenos literários ou linguísticos, mas também para signos visuais ou sonoros, conforme fica latente na obras desses autores por seus apontamentos teóricos, bem como em práticas analíticas realizadas pelos membros.

Com essa breve apresentação e reflexão, portanto, esperamos ampliar o entendimento acerca do pensamento bakhtiniano, em especial à concepção de linguagem tridimensional verbivocovisual, por meio da divulgação de trabalhos de outros membros que tanto quanto contribuíram para a construção do que podemos denominar de uma filosofia dialógica da linguagem.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CASSOTTI, Rosa Stella. Ressonâncias musicais no Círculo de Bakhtin – Ivan I. Sollertinsky, intérprete de Mozart. In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. Círculo de Bakhtin – teoria inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010. (Série Bakhtin: inclassificável, v. 2).

EMERSON, Caryl. Os 100 primeiros anos de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.

FAIRCLOUGH, P. Mahler Reconstructed: Sollertinsky and the Soviet Symphony. The Musical Quarterly, Volume 85, Issue 2, Summer 2001, pp. 367–390.

PAULA, Luciane de; LUCIANO, José Antonio Rodrigues. A tridimensionalidade verbivocovisual da linguagem bakhtiniana. Revista Linha D’Água, São Paulo (SP), v. 33, n. 3 (2020), p. 105-134. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/171296 >. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v33i3p105-134. Acesso em: 17 dez. 2020.

LUCIANO, José Antonio Rodrigues. Filosofia da linguagem bakhtiniana: concepções verbivocovisuais. 2021. 278f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa) — Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara), Araraquara, SP 2020. Disponível em: < http://hdl.handle.net/11449/204473 >

MEDVIÉDEV, Iúri Pavlovitch; MEDVIÉDEVA, Dária Aleksándrovna. O Círculo de M. M. Bakhtin: sobre a fundamentação de um fenômeno. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, [S.l.], v. 9, p. 26-46, jun. 2014. ISSN 2176-4573. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/11535 >. Acesso em: 20 maio 2020.

VAUTHIER, Bénédicte. Auctoridade e tornar-se autor: nas origens da obra do “Círculo B.M.V.” (BAKHTIN, MEDVEDEV, VOLOCHINOV). In: PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). Círculo de Bakhtin – teoria inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 279-292 (Série Bakhtin: inclassificável, v. 1).

VOLÓCHINOV, Valentin. A palavra na vida e a palavra na poesia. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019.

____. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

[1] He preferred instead to discuss music in a sociophilosophical way, drawing on his expertise in European classical theater, philosophy, and literature for historical context. [2]  Almost anyone interested in Shostakovich’s music knows something about Ivan Sollertinsky. [3]  Há controvérsias quanto à biografia ser oficialmente de Chostákovich, mas não adentraremos a questão neste espaço delimitado.

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