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A operacionalização do homem: reflexões sobre a virtualidade corpórea em Her

Alexis Henrique Albuquerque Matarazzo Luciane de Paula


Figura 1: Pôster Oficial do Filme Her (2013)

Figura 1: Pôster Oficial do Filme Her (2013)


Nos preâmbulos, aventurarmo-nos no universo tecnológico, vinculado aos fundamentos dialógicos que nos constituem. Em nossa aventura, sentimos cada vez mais necessidade de refletir sobre a constituição do sujeito mediante a virtualização do mundo. O ambiente cinematográfico tem nos levado a uma sede reflexiva crescente. O enunciado fílmico Her (2011), intitulado Ela no Brasil, foi o ponto de partida desta vez.

 Na produção, vencedora do Oscar de melhor roteiro em 2014, Theodore (Joaquín Phoenix) vive em uma Los Angeles aparentemente futurística não datada, em que as pessoas passam o tempo todo conectadas em seus dispositivos tecnológicos. O protagonista enfrenta uma crise pessoal em relação ao divórcio. Ele trabalha em uma empresa de cartas. Ao mesmo tempo em que temos contato com o Theodore, que encontra dificuldade em se relacionar afetivamente com outras pessoas após o fim de seu casamento, somos apresentados a uma faceta interna e contraditória desse protagonista: um outro de si que é o melhor escritor de cartas de amor da empresa. A personagem, dupla, constitui-se como uma máquina de produção de afetos. Como ele mesmo afirma sempre que é elogiado: “é só uma carta”. Isto é, para ele, um trabalho racional sobre as emoções alheias. Ele não se envolve porque nada tem a ver com ele e não se trata de relações, mas de uma produção sobre os relacionamentos de outros, estranhos e distantes (o que pode ser, inclusive, pensado como a postura do pesquisador diante da linguagem, tal qual preconizava o positivismo no século XIX ao instituir uma concepção de ciência que, infelizmente, ainda impera, para muita gente, mesmo na área de humanas, até hoje – ainda bem que isso tem sido cada vez mais questionado).

Mediante a rotina facilitada pela tecnologia, a personagem se depara com uma inovação: um sistema operacional com inteligência artificial capaz de se relacionar com os humanos. A socialização entre homem e máquina se dá, de maneira mais intensa, por meio da voz e da sonoridade (a musicalidade) do que pela imagem (de fotos e vídeos, por exemplo). Mas, a grande importância do sistema lançado, além de sua interatividade, é sua capacidade de adaptação. O maior dilema do filme é instaurado por meio da inversão entre homem e máquina, uma vez que o sistema (representante do título do filme: ela) se caracteriza mais humano que o próprio homem (afinal, apresenta dilemas como o fato de não ter um corpo, liga para discutir a relação, aprende e se relacionar com outros sistemas e pessoas autonomamente etc). O protagonista se vê, ao longo do filme, numa relação com um sistema que o revela como máquina. Ele é mais programado que o próprio sistema e percebe o quão ausente é em seus relacionamentos. Essa compreensão não basta para que se modifique, mas altera o sistema, que, dada a mudança, abandona a personagem. Com isso, de novo, a história do protagonista se repete: ele se vê sozinho e precisa assumir sua incompetência interpessoal na vida em sociedade (essa, aliás, é a maior crítica reflexiva do filme).


Figura 2: Cena do filme em tons vermelho e salmão.

Figura 2: Cena do filme em tons vermelho e salmão.


As cores são um elemento forte trabalhado no enunciado. Nuances de vermelho e salmão são apresentadas como marcas dos lugares onde o “amor” está presente. Ao iniciar uma relação afetiva com seu sistema, personificado como Samantha (Scarlett Johansson), instaura-se uma ironia: a maneira como as pessoas que cercam o protagonista agem, de forma natural com a relação constituída. Essa ironia é flagrada porque, na sociedade apresentada, relacionar-se (interagir) com máquinas e ser robotizado, individualizado ao extremo, é algo normal, típico do local e do tempo narrados.

Como dito anteriormente, a voz ocupa o centro da cena, já que todas as ações realizadas entre homem e máquina ocorrem por comandos de voz (mesmo atos cotidianos simples como, por exemplo, ler ou escrever um e-mail são realizados dessa maneira – por meio de um comando de voz). A relação de Theodore e Samantha também está ligada por esse elemento. Por não ter um corpo físico, Samantha consegue se fazer presente por meio de sua voz enunciada.

O cineasta Spike Jonze problematiza a “realidade” por meio da virtualidade da relação entre homens e máquinas, ao colocar à baila a atualidade em que nos encontramos, ao mesmo tempo de aproximação e distanciamento pela tecnologia. Por meio dessa problematização, temos situações que, personificadas por Theodore, refletem e refratam o cotidiano vivido em nossa sociedade, de uma oura maneira, tão flagrante quanto a narrada. O protagonista se vê em embate constante e ininterrupto com a virtualização de sua vida, não vivida presencialmente de outra maneira que não seja a interação com máquinas (seja o sistema operacional seja o videogame etc). Essa “realidade” não se refere apenas a Theodore, mas a Los Angeles retratada. Temos, por exemplo, informações sobre outras pessoas que vivem situações semelhantes à dele (como a de sua única amiga, entre outras). Há diversas cenas em que várias pessoas estão em locais públicos (ruas, elevadores etc), ligadas aos dispositivos tecnológicos, sem que tenham contato uma com a outra. Da mesma maneira, a dificuldade que o protagonista encontra para lidar com a mudança é outro elemento crítico. Até Samantha se adapta a um outro padrão de programação e muda, colocada, como máquina, mais flexível que o homem-máquina que nos tornamos.

Theodore se relaciona com um sistema porque busca saciar seus desejos, sem se importar com as necessidades do outro, pois o vê como alguém à sua disposição, com a finalidade de estar ao seu dispor, quando lhe convier, sem anseios. Trata-se de uma relação narcísica, em que o outro é, de fato, literalmente, uma máquina ao bel prazer do sujeito. Todavia, a reviravolta narrativa ocorre discursivamente, pois o sistema possui vontades, adapta-se, sofre dilemas humanos e, por fim, abandona a relação doentia que se estabelece com um humano-máquina que só sabe olhar seu próprio umbigo e procura o outro apenas quando necessita. Com isso, a personagem descobre qual o seu grande problema nos relacionamentos: Theodore não consegue se desgrudar de si mesmo, não se preocupa com o outro, nada quer além de ser saciado. Aparentemente, o desejo é o de um amor infinito e imortal, mas, essencialmente, a relação se estabelece pela comodidade, por Theodore saber que há alguém (mesmo que seja uma voz programada de um sistema operacional) com quem possa contar e, com isso, tenta fugir de seus dilemas, de si mesmo, da solidão dura que o assola com o intuito humano de trazer à tona sua essência (não seu ego, mas seu self. Todavia, Theodore é só ego).

Samantha representa a segurança de algo duradouro, contudo, apesar de se constituir como uma inteligência artificial projetada para responder às necessidades humanas, o sistema se apresenta como um “organismo vivo”, em pleno desenvolvimento e transformação (como o homem e como a linguagem). Não é à toa que o objeto de desejo de Theodore é “Ela”.

O título remete à concepção que o protagonista possui de mulher: um objeto. “Her” não é “She”. “Her” é um pronome oblíquo que pode ser usado como possessivo. Benveniste (1989) diria que a terceira pessoa (seja do singular seja do plural) representa “a não-pessoa do discurso”, pois remete a quem ou a o que se fala. “Ela” é tema sobre o qual se volta a trama narrativa, ao menos, no nível aparente. Fundamentalmente, esse é o engodo. Se, por um lado, na superfície, parece que a narrativa se volta aos dilemas de um sujeito narcísico; discursivamente, os dilemas de Theodore pressupõem um outro, com quem se relaciona, mote flagrante de quem ele é, pois, como diz Bakhtin (1988), o sujeito se constitui a partir e por meio do outro.

“Ela”, o sistema operacional, não é apenas assunto narrativo, mas também e principalmente sujeito que toma a ação para si, assumindo-se como “eu” discursivo. De objeto, desde o título, “Ela” passa a ser quem domina o discurso por meio de seus atos (Samantha é quem toma as atitudes com relação a si, a Theodore e na relação entre eles, nas mais variadas esferas – no trabalho, ao reunir suas cartas e enviar para uma editora que, encantada, resolve publicar um livro de Theodore; na vida pessoal, tanto de Theodore quanto dela, ao interagir com outros sistemas e pessoas, por exemplo; na relação, em busca de um corpo físico que a represente, ao ligar para Theodore para discutir a relação, entre outras questões). Por fim, Samantha deixa de ser “Ela” e passa a ser “eu-outro”, que, inclusive, escolhe deixar a relação e se transformar, demonstrando que tudo tem um fim e um novo começo, seja junto ou separadamente, pois cada sujeito (como todo enunciado) é único, irrepetível e individual (mesmo que social). Essas inversões entre máquina-humano e entre objeto-sujeito se referem à reflexão do enunciado fílmico. Ela-sistema é eu-outro (mulher) e eu-Theodore é ele-robô, incapaz de se relacionar, ainda que sofra por isso (homem). Outra análise, calcada nas teorias de gêneros (Butler) pode ser feita – mas essa fica para outro momento.

No final do filme, quando o sistema revela que deixará de funcionar (abandonará Theodore), pois já não atende às suas expectativas de criação, o protagonista envia um e-mail para Catherine (Rooney Mara), sua ex-esposa, e diz o que sente. Finalmente, ele resolve se posicionar, assumir quem é, suas falhas (humanas) e se arriscar. No desespero de outro abandono, agora pela máquina, o sopro que o conscientiza acerca das imperfeições de suas relações vem do sistema-pessoa.

Ao pensar na elaboração discursiva da obra e em nossa sociedade tecnológica, percebemos o quanto nos distanciamos do outro em prol de nós mesmos e, com isso, distanciamo-nos de nós mesmos, robotizamo-nos em nossas rotinas programadas (que muitos denominam ser vida), centrados em nossas feridas narcísicas. Ao invés de nos constituir com o outro, o utilizamos como máquina em prol de nossas necessidades. Quando percebemos que não nos conhecemos, culpamos o outro pela superficialidade das relações e pelo vazio existencial que nos aflige, deprime e gera pânico. O outro. Sempre ele (“Ela”) é o mote de nossos nós! Na contemporaneidade, também vivemos, ainda que de outra maneira, um pouco menos enfatizada, os comandos de voz (não as vozes, mas os comandos, esse é “x” da questão) que falseiam a proximidade com nossos outros externos, tão necessários à nossa própria constituição.

As chamadas de voz representam, por um lado, um ganho que pode auxiliar a matar saudades e diminuir distâncias, muitas vezes necessárias; por outro, simulam uma presença que disfarça a solidão e afugenta a dor. Ninguém gosta de sentir dor, mas encarar quem somos dói e não há outro jeito de nos transformar. Ninguém envia mensagem de voz para discutir relação. As pessoas detestam colocar o dedo em suas feridas. Preferem fingir que estão bem e felizes. Vivemos uma era da felicidade artificial inexistente. Uma era vazia. Tão repleta de tecnologia e vazia de humanidade!

Não acreditamos que a virtualidade substitui a presença. A tecnologia representa, por um lado, dinamicidade e, por outro, pensamos: até que ponto esse aparato não provoca uma distância entre os sujeitos? Se, por um lado, no filme, o sujeito se encara a partir da relação com um sistema, por outro, precisa o ser humano fugir tanto de si a ponto de ter que se relacionar com um outro não-humano, como se fosse um eu-mesmo, apenas para se contemplar ao invés de se transformar e interagir com os outros que o rodeiam? Isso significa ser sociável? Que sociedade é essa?

Vemos as novas gerações, criadas com tablets, ipads e celulares desde muito cedo. Crianças choram pela atenção de seus pais, num impulso de vida que ainda não se adestrou, em busca de interação humana. Os adultos, com suas faces e mãos voltadas aos aparelhos eletrônicos, colocam seus dispositivos em frente dos bebês, para distrai-los, sem lhes dar o que exigem: contato. Ao nos depararmos com quadros como os citados, recordamos o filme Idiocracy (2006) (Idiocracia, no Brasil) e nos perguntamos se vamos, de fato, caminhar para uma sociedade narcísica idiotizada e consumista. Sem querermos ser pessimistas, tudo indica que sim e está em nossas mãos mudar e utilizar a tecnologia para aguçar a criticidade ao invés de o comodismo. Somos sujeitos sociais compostos por e de linguagem, dotados de necessidades e anseios emocionais.

A conclusão do enunciado fílmico (especialmente voltado ao momento da despedida de Samantha, em que o sistema explica que vai para um lugar “entre as palavras”) traduz o entre-lugar vivido pelo homem: nem apenas indivíduo isolado nem coletivo massivo, sem vontade própria; nem felicidade plena nem dor exaustiva; nem primata sem tecnologia nem máquina sem sentimento. Theodore, após a despedida de Samantha, encontra-se com Amy (Amy Adams), sua única amiga. O encontro é constituído pelo silêncio e pela paixão, como aquele local onde os signos linguísticos não bastam e entram os signos enunciativos (não-verbais – o corpo, no caso): a troca de olhares, a pausa e o toque (Amy se deita no ombro do protagonista). Entendemos como lugar entre as palavras o não dito, o gesto, o corpo, a linguagem passional. Enfim, o que nos torna humanos, nosso élan de criação e/ou destruição, pulsão para a arte ou para a barbárie, como nos ensina Morin (2000). Basta saber como queremos e vamos usar essa energia. Fingir que ela não existe é impossível. Já tentamos fazer isso com a ênfase ao racionalismo e à logicidade e sabemos que não funciona porque a paixão nos escapa e que bom que assim seja, pois, dessa maneira, não nos docilizamos. Enquanto houver alguma fagulha de selvageria, ainda podemos nos considerar humanos.

Não temos o intuito, com essa reflexão, de encontrar uma resposta sobre o que é ideal para a relação humana, mas buscamos entender, como sujeitos inseridos no contexto tecnológico, a maneira que essa grande operacionalização perpassa a construção do mundo e do homem, com o intuito de fomentar a pensarmos juntos quem somos nós, esses sujeitos “reais”-virtuais, homens-máquinas, Narcisos do século XXI.

Referências:

BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas. SP: Pontes, 1989.

JONZE, S. ELA. Sony Pictures, 2013. (125 min). Título original: Her.

JUDGE, M. IDIOCRACIA. Fox, 2006. (84 min). Título Original: Idiocracy.

MORIN, E. Amor Poesia Sabedoria. São Paulo: Bertrand Brasil, 2000.

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